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Como o pensamento africano resiste ao apagamento e influencia o Ocidente

Léopold Sédar Senghor, escritor e presidente do Senegal, durante conferência dos Estados africanos em Adis Abeba, na Etiópia, em maio de 1963 - FPG/Archive Photos/Getty Images
Léopold Sédar Senghor, escritor e presidente do Senegal, durante conferência dos Estados africanos em Adis Abeba, na Etiópia, em maio de 1963 Imagem: FPG/Archive Photos/Getty Images

Beatriz Sanz

Do UOL

13/11/2020 04h00

Dados do Google mostram que a busca pelo termo "negritude" sempre atinge picos na semana de novembro em que o Brasil celebra o Dia da Consciência Negra. O que poucos sabem é que o termo "negritude" foi cunhado pelo poeta e político martinicano Aimé Césaire.

A palavra fez sua estreia no vocabulário mundial em "Diário de um retorno ao país natal" (1939). A falta de interesse pelo trabalho dos pensadores africanos e afro-diaspóricos — que pode ser explicada pelo racismo, pelo apagamento da produção cultural e intelectual do continente africano e pelo fato de que a maioria desses autores escrevia em inglês ou francês — fez com que o livro só fosse publicado no Brasil em 2012, quase 73 anos depois de seu lançamento.

Césaire não é exceção. As contribuições de pensadores como Edward Blyden, Frantz Fanon, Marcus Garvey, George Padmore, Richard Wright, Amílcar Cabral e outros — cada um a sua forma e com suas próprias teorias — para a luta anti-colonialista, a independência dos países africanos na segunda metade do século 20 e até mesmo para a luta contra o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, foram deixadas de lado por muito tempo. "Houve, claramente, um apagamento dos intelectuais negros nas ciências sociais brasileiras, talvez pelas próprias necessidades históricas brasileiras no que diz respeito ao pensamento sobre o capitalismo periférico e o desenvolvimentismo", explica ao TAB o sociólogo e pesquisador congolês Serge Katembera.

No campo das ideias, os pensadores africanos e afro-diaspóricos criaram e modelaram conceitos que seguem até hoje, como pan-africanismo, personalidade africana e negritude, por exemplo. Para Muryatan Barbosa, pesquisador e professor da UFABC (Universidade Federal do ABC), o pensamento africano foi mais relevante para as artes e para a teoria social do que para as questões específicas advindas da especialização das ciências humanas e sociais. Ainda assim, Barbosa ressalta que os estudos sobre o continente, mesmo os não conduzidos por pesquisadores africanos, "foram muito relevantes para a renovação destas ciências [humanas e sociais] no 'Ocidente' (Europa e América do Norte), desde então".

O jamaicano Marcus Garvey Jr., líder do movimento Back to Africa, circula de carro pelo bairro do Harlem, em NY (EUA), por volta de 1920   - Michael Ochs Archives/Getty Images - Michael Ochs Archives/Getty Images
O jamaicano Marcus Garvey Jr., líder do movimento Back to Africa, circula de carro pelo bairro do Harlem, em NY (EUA), por volta de 1920
Imagem: Michael Ochs Archives/Getty Images

Agregar e discordar

Muitos desses pensadores foram contemporâneos e se aliaram para criar organizações que combatessem o racismo e o colonialismo, buscando uma independência política, econômica e cultural da Europa. Apesar disso, essa união nunca foi incondicional.

Muitos dos pensadores discordavam entre si — mesmo que, na maioria das vezes, evitassem fazê-lo em público. É o caso, por exemplo, de Césaire e do político senegalês Léopold Senghor. Ambos estavam empenhados em criar soluções para a África. Porém, eles discordavam quanto ao significado de negritude, que na época da criação era entendida como um movimento mais intelectual, como explica Barbosa, autor do livro "A razão africana: Breve história do pensamento africano contemporâneo" (2020), em que relata grande parte das contribuições desses pensadores.

Enquanto para Césaire, o criador do termo, a negritude poderia ser segregada ou diluída na "universalidade eurocêntrica", Senghor a entendia como uma essência, como explica Barbosa em seu livro. "Senghor e Césaire cunharam o conceito de negritude tirando dele toda a carga negativa e insistiram no orgulho de se reconhecer como negro. Mas é importante insistir, também, na dimensão utópica do conceito de negritude em Senghor, que propõe que ele seja compreendido como uma redenção possível para a humanidade", resume Katembera.

O escritor e ativista liberiano Edward Wilmot Blyden (1832-1912) - Library of Congress/Corbis/VCG/Getty Images - Library of Congress/Corbis/VCG/Getty Images
O escritor e ativista liberiano Edward Wilmot Blyden (1832-1912)
Imagem: Library of Congress/Corbis/VCG/Getty Images

Além das discordâncias entre si, havia também discussões externas. O filósofo francês Jean-Paul Sartre foi um grande apoiador dos intelectuais negros francófonos. Ele escreveu o texto "Orfeu Negro" como a introdução de uma antologia coordenada por Senghor.

No texto, Sartre discorre sobre a ideia de um "racismo antirracista" por parte dos negros, que seria necessário na busca pela igualdade das raças.
Contudo, o pensador branco foi duramente criticado pelo psicanalista Frantz Fanon no livro "Pele negra, máscaras brancas" (2020). Segundo Fanon, Sartre teria "destruído o estusiasmo negro" com seu texto.

Cristianismo e marxismo

Levando em consideração os últimos 200 anos da produção intelectual na África e na diáspora, percebe-se a movimentação de duas grandes forças sobre esses pensadores: o cristianismo e o marxismo.

Barbosa deixa claro que o cristianismo teve maior relevância, por conta de fenômenos como o missionarismo e, posteriormente, a própria colonização. Ainda assim, ele destaca que "os africanos não foram meros repetidores do que lhes era ensinado". Segundo ele, a religião ainda teve um papel importante no processo de descolonização do continente, que se deu na segunda metade do século 20. "A geração da descolonização também carregava o cristianismo em sua formação. Mas ambos criaram uma orientação própria para tal cristianismo, dando-lhe um caráter emancipador. O mesmo ocorreu na diáspora, desde diferentes vieses. Lembremos, por exemplo, do protestantismo negro de um Martin Luther King", argumenta. Já o marxismo ganha espaço entre os pensadores africanos e da diáspora no início do século, também tendo forte impacto nas lutas pela independência.

Para Katemera, era lógico que o movimento intelectual negro incorporasse essa crítica na sua própria maneira de se opor à dominação do colonialismo, racista e imperialista. Contudo, o sociólogo congolês analisa que, para muitos pensadores, a situação parecia uma faca de dois gumes.

"Isso teve também seu lado negativo, porque acabou criando uma impressão de que os intelectuais africanos tinham dois caminhos a trilhar: o liberalismo e o marxismo. Outras ideias foram mais ou menos paralisadas no cruzamento dessa briga entre duas correntes intelectuais no Ocidente", destaca.

O poeta, dramaturgo e escritor Aimé Césaire, ao lado do presidente francês Jacques Chicac, em 1987 - Philippe GIRAUD/Gamma-Rapho/Getty Images - Philippe GIRAUD/Gamma-Rapho/Getty Images
O poeta, dramaturgo e escritor Aimé Césaire, ao lado do presidente francês Jacques Chicac, em 1987
Imagem: Philippe GIRAUD/Gamma-Rapho/Getty Images

Para entender melhor como o marxismo impactou no pensamento africano, Muryatan Barbosa cita as obras de George Padmore, Kmawe Nkrumah, Amilcar Cabral, Frantz Fanon, Huey P. Newton, Chris Hani, Steve Biko. "Além destes, temos o marxismo mais acadêmico desde os anos 1970, como em Angela Davis (EUA), Norman Girvan (Jamaica), Walter Rodney (Guiana), Harold Wolpe (África do Sul), Cedric Robinson (EUA), Samir Amin (Egito), Issa Shivji (Tanzânia) ou Sam Moyo (Zimbabue)", conta.

O professor lembra que os trabalhos de Karl Marx também influenciaram intelectuais do Brasil, como Solano Trindade, Joel Rufino dos Santos, Wilson Barbosa, Milton Barbosa, Henrique Cunha Jr., Clóvis Moura e Hamilton Cardoso.

As lições antirracistas

O trabalho dos intelectuais africanos de todos esses períodos foram forjados sob a pressão do racismo, seja na época do colonialismo, do entre guerras ou dos movimentos de supremacia — que voltam a ganhar força em diversas partes do mundo.

Katembera e Barbosa apontam duas razões diferentes para o crescimento dos movimentos racista. Enquanto para o sociólogo ele se deve a "uma nova juventude [negra] decidida a não ceder diante do racismo e do colonialismo", o professor da UFABC culpa a crise do capitalismo. Para Barbosa, isso acontece porque "o racismo justifica e naturaliza as políticas de repressão e desumanização instauradas pelas classes dominantes". Assim, para combater esse fenômeno — independente da origem — Barbosa avalia que é preciso entender a estrutura racista das sociedades."Os teóricos mais antigos, como Frantz Fanon, souberam explicar o caráter sistêmico de forma peremptória, eu diria. Mostraram inclusive que é preciso um movimento de autodefesa do negro contra tais práticas racistas, que são sempre em última instância genocidas", diz.

Por outro lado, Katembera defende que a saída pode ser a inovação. "Não sei se Brasil, EUA ou alguns países da Europa precisam de lições da parte do movimento intelectual africano ou do pensamento africano", defende. "Vejo, no entanto, uma urgência de criar canais de trocas entre esses lugares e conectar os intelectuais de todas as partes. Essas trocas permitem identificar as múltiplas facetas da opressão, tanto do capital quanto do racismo".