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Brasil já teve uma investidora bilionária; a história de Eufrásia Leite

Retrato de Eufrásia Teixeira Leite, em quadro a óleo exposto no Museu Casa da Hera em Vassouras (RJ) - Autor desconhecido/Reprodução
Retrato de Eufrásia Teixeira Leite, em quadro a óleo exposto no Museu Casa da Hera em Vassouras (RJ) Imagem: Autor desconhecido/Reprodução

Guilherme Castellar

Colaboração para o TAB, do Rio

29/12/2020 04h01

Mariana Ribeiro era a única analista financeira de um banco de investimentos, em São Paulo, quando descobriu a história de Eufrásia Teixeira Leite. A brasileira foi uma das primeiras mulheres do mundo a investir na bolsa de valores, na virada do século 19 para o 20.

Em 1873, com a irmã, Eufrásia partiu jovem e rica para viver em Paris com a herança que o pai, um comissário de café de Vassouras (RJ), deixou para ambas. Nunca se casou nem teve filhos. Voltou ao Brasil milionária, 55 anos depois. Foi tão bem-sucedida que o inventário de sua fortuna, após sua morte em 1930, no Rio de Janeiro, levou 22 anos para ser concluído, tamanha era a complexidade e a dispersão do seu portfólio de investimentos.

Quando leu a reportagem, em 2011, Mariana ficou intrigada. "Como Eufrásia realizou essa proeza numa época em que mulheres nem podiam votar? Aqui no Brasil, até 1962 a mulher tinha que ter o consentimento do marido para ir trabalhar", lembra a analista.

Em 2020, as mulheres são 24% dos investidores em bolsa, segundo o IBGE.

Eufrásia Teixeira Leite (em pé), sua prima e sua irmã, Francisca Bernardina Teixeira Leite - Reprodução - Reprodução
Eufrásia Teixeira Leite (em pé), sua prima e sua irmã, Francisca Bernardina Teixeira Leite
Imagem: Reprodução

Machismo na letra miúda

A analista notou que mesmo a fama de Eufrásia, diminuta perto de suas realizações, era enviesada por um machismo implícito. A investidora pioneira estava mais para coadjuvante na biografia do jornalista, político e diplomata Joaquim Nabuco do que para heroína com independência financeira. Eufrásia foi a "eterna amante" do líder abolicionista e fundador da Academia Brasileira de Letras. "Eles namoraram por 14 anos, eram jovens e ele não era casado. Como ela poderia ser 'amante' dele?", questionou-se Mariana.

O "amor impossível" de Zizinha e Quincas é o enredo principal de dois livros que têm a investidora como personagem principal: "Mundos de Eufrásia", de Claudia Lage (Record, 2009) e "Um mapa todo seu", de Ana Maria Machado (Alfaguara, 2015).

Mariana é mais crítica da primeira obra. "Eufrásia é estereotipada, uma mulher do pecado, volúvel, impulsiva e cheia de desejos e emoções. O livro mal trata de sua atividade na bolsa."

Incomodada com a carência de pesquisas acadêmicas e a falta de reconhecimento da milionária, Mariana decidiu pesquisar por conta própria a vida de Eufrásia. Tirou uma semana de férias e foi para Vassouras fuçar o acervo da investidora no Museu Casa da Hera, localizada na chácara deixada pelo pai conservada com rigor, mesmo à distância.

Mariana foi acompanhada da mãe, que foi vigiar a artrite que tornava as caminhadas da filha dolorosas — em razão do lúpus que começava a se manifestar. Já nas primeiras conversas no hotel, Mariana sentiu que Eufrásia parecia fazer mais parte do folclore do que da história aristocrática da cidade, a terra dos "barões do café".

"A pintavam como uma mulher excêntrica, que deixou dinheiro para o burro Pimpão viver à base de pão de ló. Diziam que as palmeiras da Casa da Hera foram plantadas para cada um dos seus amantes", lembra Mariana.

No "Diário Carioca", a notícia da inauguração do hospital Eufrásia Teixeira Leite, em Vassouras (RJ), em 1941 - Reprodução - Reprodução
No "Diário Carioca", a notícia da inauguração do hospital Eufrásia Teixeira Leite, em Vassouras (RJ), em 1941
Imagem: Reprodução

O testamento

A diretoria do museu foi solícita. Permitiu que ela examinasse e fotografasse o acervo de objetos pessoais, indumentária, mobiliário, livros, cartas e documentos. Mariana se impressionou com a sofisticação dos vestidos de festa, casacos e trajes de montaria de Eufrásia — muitos assinados por Charles Worth, considerado o pai da alta-costura.

Mariana não encontrou a mesma receptividade quando pediu para consultar o inventário da rentista, depositado no Centro de Documentação Histórica de Vassouras, arquivo que era ligado à prefeitura da cidade e à Universidade Severino Sombra. A negativa do CDH foi um sinal de que estava mexendo numa ferida: a famigerada herança de Eufrásia. Depois do namoro com Nabuco, este é o segundo episódio mais narrado da sua vida.

Sem descendentes nem antepassados vivos, a investidora fez um curto testamento, 15 dias antes de morrer. Para a família, apenas três primos ficaram com alguns Títulos da Dívida Pública Federal. Eufrásia deixou um quinhão maior para seus funcionários, na forma de casas e apólices para garantir renda, até o fim de seus dias.

Para espanto de todos durante a leitura do testamento, a maior beneficiária foi a cidade de Vassouras. Até os mendigos locais dividiram entre si 20 contos de réis (os do seu quarteirão de Paris ficaram com 20 mil francos). O grosso da fortuna, na forma de propriedades, como o hotel particulier de cinco andares numa travessa da Champs-Élysées, em Paris, e milhares de títulos públicos e ações de empresas ao redor do mundo, foi destinada a instituições de caridade, ligadas à Igreja Católica.

O Instituto das Missionárias do Sagrado Coração de Jesus, o Colégio Santa Rosa de Niterói (da Ordem dos Salesianos) e a Santa Casa de Misericórdia de Vassouras tinham a obrigação de preservar a Casa da Hera, erguer dois colégios para meninos e meninas - com 50 vagas para jovens carentes — e um hospital. A soma do patrimônio legado só ficou clara ao fim do logo inventário: o equivalente a duas toneladas de ouro.

Parte das aspirações da benfeitora foi atendida. A chácara foi conservada e virou museu, em 1968. A escola de meninas e a unidade de saúde saíram do papel. Por muito tempo, o Hospital Eufrásia Teixeira Leite foi referência na região - hoje seu atendimento é precário e está atolado em dívidas trabalhistas. O Instituto Masculino não se concretizou como Eufrásia desejava. Virou uma unidade com cursos pagos de mestre cervejeiro do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial). Em 1991, as freiras cerraram os portões do Instituto Feminino e hoje o mato cresce ao redor.

Ao fim, Mariana conseguiu examinar os 30 volumes do inventário de Eufrásia, por meio de uma ordem judicial. Passou três dias fotografando todas as páginas. No primeiro, teve uma crise alérgica por causa da poeira e do veneno aplicado para proteger as folhas das traças — ela não levou máscara. Também se esqueceu das luvas cirúrgicas e, no segundo dia, seus dedos começaram a rachar.

Ela travou por completo ao fim do último dia. Voltou para São Paulo com 7.880 imagens dos documentos de Eufrásia e uma grave crise de artrite.

Museu Casa da Hera, em Vassouras (RJ) - Divulgação IBRAM - Divulgação IBRAM
Museu Casa da Hera, em Vassouras (RJ)
Imagem: Divulgação IBRAM

Foi o início de oito anos de pesquisa sobre a primeira investidora do Brasil. Mariana queria preencher as lacunas de como uma mulher comandou de forma ativa uma carteira de investimentos tão complexa. "Ela fez algo imenso. Hoje, num banco de investimento, você tem equipes para atender cada setor. A Eufrásia tinha uma atuação multisetorial."

Na Bolsa de Paris, mulheres só podiam assistir ao pregão no segundo andar. "Eufrásia tinha um agente, Alberto Guggenheim, que pegava as ordens e descia para executar na roda de negociação, onde só homens entravam", conta Mariana. Eles trocaram cartas tratando de negócios até a morte da rentista. "Ela tinha total controle da gestão do seu patrimônio", impressiona-se. E tinha influência.

Mariana achou o nome de Eufrásia num material da Exposição Universal de Paris de 1900. Ela estava inscrita como patrocinadora.
Em suas pesquisas em 22 acervos no Brasil, França, Inglaterra e EUA, Mariana foi orgulhosamente derrubando alguns dos mitos. Como a do felizardo jumento que se alimentava de massa de bolo. Ele existiu, mas o nome era Pinhão, da cor avermelhada do fruto, e não recebeu herança e nem pão de ló: só é listado no inventário como uma das posses de Eufrásia.

Solteirice e má fama

Outra lenda disseminada era a de que Eufrásia nunca havia se casado para atender a um pedido do pai, temeroso de que um casamento fracassado das filhas acabasse com o patrimônio. "Essa versão tem a mucama Cecília Bonfim como testemunha do pedido do pai. Mas Cecília não tinha nem nascido."

Mariana observa que essas variantes mais dramatizadas da sua solteirice escondem uma realidade mais simples, porém digna: a de que Eufrásia tinha autonomia para tomar essa decisão. No caso de Nabuco, eles começam a se afastar a partir de 1885, depois que ele se ofendeu com a oferta de dinheiro da namorada para que montasse um jornal abolicionista.

A analista financeira Mariana Ribeiro, em palestra sobre Eufrásia Teixeira Leite - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A analista financeira Mariana Ribeiro, em palestra sobre Eufrásia Teixeira Leite na Startup Weekend Fintech Women, em 19 de novembro de 2019
Imagem: Arquivo pessoal

Romperam de vez em 1887. Nessa época, Eufrásia já tinha multiplicado algumas vezes a herança do pai. Se casassem no Brasil, como desejava Nabuco, a lei estipulava que os bens de Eufrásia passavam para o nome e controle do marido. Se o casamento fosse em Paris, ela manteria seu patrimônio. Não se sabe ao certo o quanto isso influenciou, porém, Mariana lembra que não se pode ignorar as entrelinhas desse episódio. Dois anos depois, Nabuco se casa com Evelina Ribeiro, filha do barão de Inoã, de quem recebe um dote — que ele perde investindo na bolsa da Argentina.

Nove anos depois de iniciar sua pesquisa, Mariana trabalha em outra corretora, onde já não é a única mulher. E atua para resgatar o protagonismo de Eufrásia. Volta com frequência para Vassouras para eventos educativos, dá palestras para empoderar outras investidoras e publicou o pequeno livro digital #QUEROSEREUFRASIA, em que conta parte da sua investigação. Em 2019, conseguiu que a B3, antiga Bovespa, e a ONU Mulheres reconheceram Eufrásia como a primeira investidora do Brasil.

Ao falecer, Eufrásia deixou dois legados. O primeiro, tangível — a polpuda herança para a sua cidade natal —, se desfez pela má gestão ou por ter sido objeto da ambição de empresários e políticos. O segundo legado é intangível: a referência que sua autonomia e inteligência podem representar em uma sociedade ainda machista.

Para Mariana, as histórias às vezes estapafúrdias que contam dela são estereótipos de época para tentar explicar algo que as pessoas não conseguiam compreender: que uma mulher poderia fazer fortuna investindo em ações. "Ainda hoje, se eu disser que uma mulher ficou bilionária na bolsa, é difícil alguém acreditar. Imagina uma que faleceu em 1930."