Consegue distinguir? A dor e o prazer da conselheira amorosa que virou meme
O tema do vídeo era prazer na hora H. De frente pra câmera do celular, a carioca Daniele Leite questiona: "Como saber se ele ou ela está sentindo prazer ou dor?" Parece uma pergunta simples, mas ela se esforça para exemplificar da melhor forma: bastante expressiva, ela simula gemidos de formas diferentes. "Consegue distinguir? Vamos de novo?", e repete o ai do gozo e o ai da dor. O celular cai durante a última demonstração e ela dá uma gargalhada — dias depois, a cena seria repetida inúmeras vezes nas redes sociais.
Há três anos, a carioca se apresenta como conselheira amorosa no YouTube, respondendo dúvidas sexuais e de relacionamentos. Já fazia isso entre amigos, que a incentivaram a levar os conselhos para mais pessoas. "Eles falavam que eu tinha um jeito de blogueirinha", relembra.
Com brincos grandes, boca pintada, lentes de contato e sorriso largo com aparelho, ela faz caras e bocas e dá uma risada contagiante em vídeos curtos, sem enrolação. "Não vem falar 'bilau' porque isso é coisa de criança", ela avisa, logo de cara. "Você vê uns youtubers que ficam com vergonha de falar sobre sexo. Não, minha filha, é piru, é xereca, é rabo. Aprendi na faculdade de Publicidade que você tem que usar uma linguagem que atinja do mais simples até o intelectual, senão não adianta."
Foi assim nos vídeos "como fazer um oral gostoso no boy" e "como controlar a cavalgada". Mas no canal há espaço também para conteúdos mais reflexivos, como "hoje os homens querem uma mãe" e "responsabilidade afetiva". O mais assistido, "pinto fino - altas dicas", está prestes a bater 3 milhões de visualizações. Antes, o sucesso do canal era um vídeo em que Daniele ensinava uma posição que ela inventou e deu o nome de "sapo G". "Mas o YouTube retirou da plataforma", diz.
A troca com os internautas a fez evoluir também. Outro dia, alguém perguntou sobre "cunete" em seu Instagram. Ela respondeu rindo: "Nem o Google conseguiu traduzir o que é cunete. É cu na internet?". Mais um meme pra conta. "Nunca tive tabu de falar sobre sexo, mas eu achava que todo mundo sentia e fazia a mesma coisa. Fui ter contato com os gays agora. Isso foi me modificando", observa.
Aos 39 anos, ela tem uma meta: se tornar terapeuta sexual. O primeiro passo foi começar o curso de psicologia. Por enquanto, a base dos conselhos vem mesmo das experiências — dela e de outras pessoas. "Sempre fui muito curiosa, sempre conversei com muita gente, eu revendia produtos de sex shop e as pessoas me contavam muitas coisas." No tête-à-tête com os clientes, percebeu que algo afligia a todos: "As pessoas têm tabus, acham ainda que não podem se masturbar, têm vergonha do corpo, não conseguem sentir prazer total na cama", observa.
Antes mesmo dos vídeos, essa "pesquisa de campo" deu origem ao livro "Mulher não é só Vagina", que Daniele bancou por conta própria, em 2015. "Percebi que todo mundo tinha as mesmas queixas dos seus relacionamentos. Muitos homens são inseguros quando a mulher é segura na cama. Você vê que falta uma estrutura, eles tratam as mulheres como objeto, como se estivessem num filme pornô", ela explica. "E muitas das mulheres nos vídeos pornôs você vê que não estão sentindo prazer, é uma cara de dor."
Dor x prazer
O vídeo sobre a diferença entre dor e prazer foi postado em outubro, mas viralizou de vez pouco antes do Natal. A essa altura, você deve ter esbarrado em algum meme ou dublagem no TikTok inspirados na cara de prazer e de sofrimento da conselheira. "Estou presa há dias nesse vídeo", comentou a cantora Anitta nas redes sociais. Enquanto lista as conquistas do canal, Daniele solta um grito, como se não acreditasse: "cara, estou ficando famosa", e segue com a risada marcante. "As pessoas pedem para eu mandar beijo, me sinto a Xuxa".
Fora de contexto, as expressões de Daniele parecem exemplificar um pouco a vida do brasileiro, sempre no limite entre as duas sensações: seja o vai e vem da vacina da covid-19 ou o prazer comum em fazer compras no cartão de crédito (seguida da dor ao abrir a fatura no mês seguinte). Ela resume o sucesso: "Todo mundo percebeu que na carreira, na vida e na cama tem o momento do 'ai, prazer' e 'ai, dor'."
Da primeira vez que viralizou, sentiu apenas dor. Um vídeo seu sobre "pinto pequeno" a fez receber ameaças de homens nas redes. Gravou o vídeo de forma irônica, quando recebeu a foto do pênis de um contatinho do aplicativo de paquera. Abriu na inocência, dentro do ônibus lotado. "Atrás de mim tinha vários jovenzinhos do quartel. Quando abro a imagem, um piru pequeno. Fiquei tão constrangida. Achei uma violação. Cheguei em casa e gravei um vídeo falando mal."
A repercussão do canal também fez com que ela fosse demitida de uma empresa de empréstimos consignados, na qual era supervisora. "Sabe, não é fácil ser mulher, negra, pobre, mãe em carreira solo e falar de sexo", desabafa.
Hoje, ela trabalha de casa como analista financeira. "Estou falando com você e trabalhando ao mesmo tempo", diz. O expediente vai até às 18h. Só depois desse horário ela consegue se dedicar ao cargo de conselheira. Há menos de um mês, a rotina de lives e colaborações com outros canais são diárias. Parcerias com marcas estão começando a acontecer. "Eu sempre desejei ser alguém um dia, chegar em algum lugar, só não esperava que fosse por um meme. Achava que era uma carreira profissional", ela conta direto do seu quarto, cenário da maior parte dos vídeos, num apartamento na zona norte do Rio, onde vive com seu filho de 12 anos.
Da tela, dá para avistar um quarto decorado com tons de roxo e rosa, uma foto sua pendurada num quadro e um violão encostado — lembrança da época em que tocava hinos evangélicos na igreja. Se converteu bem jovem. E foi nesse período que ela perdeu a virgindade. O que se seguiu, ela conta, foram os piores anos da sua vida.
'Vão todo mundo pra puta que pariu'
Daniele foi criada pela avó e cresceu sem ter contato com o pai — a mãe a visitava apenas de vez em quando. Vivia numa casa com mais 16 pessoas, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. A comida era pouca, as roupas que tinham eram doadas e o pão era disputado por todos da casa. "É como tantas outras histórias de inúmeras famílias de baixa renda", ela conta, chorando.
Na escola, ganhou destaque de leitura. Dizia se sentir "a mais feinha", mas mentalizava outra realidade. "Por dentro, eu me via no corpo de uma mulher de cabelos lisos, bonita, elegante", ela relembra, rindo, com os olhos ainda molhados. Para tentar dar um tapa no visual, vendia doces, sacolés e oferecia trabalho de massagem no cabelo para as meninas da escola. Com o dinheiro, corria para a feira de Duque de Caxias para comprar "roupinhas". A avó só observava: "Você nasceu na família errada, garota, não é possível."
A relação com o corpo e a sexualidade foi sempre interditada por alguma situação de poder e humilhação por parte dos homens: o adulto que roçou a mão na perna dela quando ela ia pra escola de ônibus, o namorado da mãe que ofereceu pagar o curso de datilografia em trocas de fotos nuas ou aquele policial com quem ela marcou um encontro no aplicativo, e que a levou a força para a casa dele.
Não foi diferente com o namoradinho da igreja. Perdeu a virgindade aos 20 anos — e não foi bom. "Ele começava a me humilhar na cama: 'você chupa muito mal, fulana faz melhor que você'. Isso ia me destruindo por dentro. Foi um relacionamento abusivo e me transformou em um lixo humano."
A história do casinho vazou e Daniele começou a ser xingada e sofrer bullying. "Na minha família tinha de tudo: gente que cheirava, roubava, se prostituía, envolvido com jogatina, mas eu era diferente, eu tinha um comportamento diferente", diz. "Mesmo assim, tinham um preconceito quanto a minha vida. Ouvia das pessoas que meu futuro estava reservado: muitos filhos e trabalhar como prostituta."
Anos depois, se casou com um "chamador de kombi" [trabalhador que fica nas vans de lotação cantando os destinos]. Uma vez, precisou fazer um exame de corpo de delito. "A médica foi grossa comigo. Me passou de delegacia pra delegacia. O cara da delegacia me ligava todo dia, e eu nem entendia qual era a intenção dele. Por isso que a mulher tem dificuldade de falar sobre isso. Só anos depois eu vi uma delegada falar na faculdade e entendi exatamente quais eram meus direitos", desabafa.
"Depois disso, eu falei — desculpa o palavrão — 'vão todo mundo pra puta que pariu'. Chega de viver o que os outros querem, o que a sociedade quer, a religião quer. Eu quero ser livre, não quero cumprir papéis na sociedade, eu quero ser eu na sociedade", diz, com voz firme e séria.
Não dura muito tempo. Ela logo dá uma risada e conta que descobriu que o trecho do vídeo em que relatava o primeiro encontro com o pai tinha viralizado. Diferente das dicas sexuais, ali ela mais chorava do que sorria ao contar que ele a tratou com frieza. "Mas engoli o choro e segui em frente", diz, expressiva. Em tom de piada, a frase se tornou meme para comentar a decepção de um date ou uma notícia não esperada nas redes. "A internet é como um telefone sem fio", ela observa.
"Às vezes, a gente quer ouvir: 'quer um abraço? Precisa de um resgate?', mas ver o bem que a gente faz ao próximo, desejando um excelente dia, é isso que nos faz ser pagos", diz. "Estou com a geladeira quebrada desde o dia 30, meu filho machucou o dedo e agora é o micro-ondas que parou de funcionar. Mas eu não vou me entristecer por isso. Não vou deixar de continuar a lutar e vencer, porque a dor vem para nos fortalecer."
"Pra depois ter o prazer", emendo. Ela gargalha: "Ai, sim. E de preferência lá em Miami ou Dubai."
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