'Vamos tocar fogo': idosos falam do fim da gratuidade no transporte em SP
De longe parece um formigueiro, mas são as milhares de pessoas que transitam todos os dias pelo complexo do Metrô Barra Funda, uma das "super" estações da capital, abastecida por metrô, ônibus metropolitanos, trem da CPTM e um terminal rodoviário. Pessoas chegam e vão embora de São Paulo todos os dias. Não fossem os rostos parcialmente cobertos por máscaras de pano, seria possível esquecer por alguns minutos que a capital paulista passa por um dos seus piores momentos na pandemia causada pela covid-19, com mais de 10 mil internações desde dezembro de 2020 no estado.
Fora a pandemia, e com o fim do auxílio emergencial, alguns usuários de transporte público paulistano terão mais uma preocupação: o fim da gratuidade do transporte para idosos de 60 a 64 anos. A medida foi aprovada em 23 de dezembro em uma ação conjunta entre a prefeitura e o governo do estado.
A medida chegou a ser derrubada por uma decisão liminar, a pedido do Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos da Força Sindical, mas foi cassada pelo TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) em 12 de janeiro.
Com isso, o fim da gratuidade para idosos nessa faixa etária passará a valer a partir do dia 1º de fevereiro. Entre boa parte dos entrevistados que se disseram afetados pela medida, gênero e profissão se destacam. Muitas mulheres nessa idade ainda precisam sair de casa para trabalhar como domésticas e, agora, se perguntam como poderão arcar com os custos de deslocamento.
Na estação ampla e abafada pelo calor sufocante de janeiro, onde qualquer tentativa de distanciamento social parece fútil, encontramos Lúcia Cordeiro, 63, silenciosa e de cabeça baixa aguardando a abertura do posto de farmácia popular para buscar seus remédios para hipertensão. Vencendo a timidez, enquanto segurava firme na sua bolsa pendurada no ombro, a diarista deu entrevista com os olhos marejados sobre sua situação em casa.
Desde o começo da pandemia, em março de 2020, Cordeiro diz que está sem emprego e tem dificuldades para conseguir seus bicos de diarista. Atônita, conta que ainda faltam alguns anos para conseguir pedir pela aposentadoria, por causa do período que trabalhou sem registro.
Com o fim da gratuidade, ela prevê dificuldades para executar tarefas cotidianas, como ir ao médico ou se deslocar até uma casa para trabalhar como diarista. O marido de 66 anos, eletricista autônomo, também perdeu o emprego no período e teve seu auxílio emergencial negado pelo Governo Federal. Os dois precisaram se virar com o auxílio que ela vinha recebendo, que já acabou. "Só consigo pegar no sono às cinco da manhã, de tão preocupada que estou", disse ao TAB.
Com o passo rápido e acompanhada da filha, Josefa Aparecida Fabrício, 63, aceitou parar para conversar, fazendo algumas dezenas de passageiros desviarem de nós, apressados, a caminho das catracas da estação. A pergunta sobre ter que pagar pelo transporte a convenceu a falar, apesar da pressa. A empregada doméstica também se pergunta como poderá se deslocar até o trabalho todos os dias, pegando duas conduções para faxinar a casa alheia. "Na minha casa só eu trabalho. Tenho um filho especial e preciso ficar saindo com ele, aí eles vão lá e cortam [a gratuidade no transporte]? Com a correria da vida, a gente não pensa na hora de votar. O que os caras vão fazer não tem condição."
O senso de respeito e civilidade dos mais jovens também parece estar em falta. É como a aposentada Maria Donizeti da Silva, 64, avalia o tratamento que recebe todos os dias nos ônibus. Ao ouvir o tema da entrevista, Donizeti parou ao nosso lado para esperar a sua vez de explicar o tipo de consequência que o fim da gratuidade traz ao seu dia a dia, atravessando a capital toda semana, da Zona Sul à Zona Oeste.
"É o lugar do idoso que os jovens não querem mais nos dar", conta a moradora de Santo Amaro. "Vou ter que gastar uma fortuna agora, e ainda ter de aguentar o novinho debochando da minha cara quando peço lugar para sentar."
Mesmo com uma grande concentração de idosos acima de 60 anos, Donizeti foi uma das entrevistadas que reclamou da falta de empatia e respeito vindo da população mais jovem. Segundo os dados da Pesquisa Origem e Destino, feita em parceira com a SMT (Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes) e o Metrô, cidadãos acima de 60 anos correspondem a 15,7% da população de São Paulo, totalizando 1.843.616 pessoas. Segundo a SPTrans, o fim da gratuidade afetará 186 mil passageiros na cidade.
Um senhor que não quis dar entrevista chegou a dizer que aceitaria pagar de novo a tarifa de ônibus se isso contribuísse para que os motoristas o tratassem com mais respeito. "Você entra mostrando o bilhete e eles já te tratam como um coitadinho", disse, enquanto apertava o passo para a saída da estação ao lado do Memorial da América Latina.
Mesmo após dez meses do início de umas maiores pandemias do século 21, existem coisas que não mudam — como a banquinha de salgados fritos na hora. E lá estavam, em pé, nove ou dez pessoas tomando café com leite e devorando um salgado antes de partirem para seus destinos. Foi lá que nossos olhos cruzaram com uma senhora de estatura baixa, que se destacava com seu conjunto azul celeste de blazer e saia.
Maria Santos, 66, insistiu em falar sobre a medida para o TAB, mesmo já tendo direito a não pagar a tarifa do transporte por causa de sua idade. "Isso afeta também pessoas próximas a mim. Afeta meu irmão, minha vizinha. Afeta muita gente", diz.
A passadeira aposentada deixou de lado parte do salgado para protestar contra a revogação. Sua maior preocupação no momento é seu irmão mais novo, de 54 anos, que é deficiente. "Isso impede que a pessoa possa sair para pegar um remédio, ir ao médico, resolver coisa no banco", diz.
Santos mora na Freguesia do Ó, na zona norte da capital, e diz que é preciso sair às ruas para reivindicar a volta da medida. "Nós trabalhamos todos esses anos, ganhando salário mínimo, e agora tem que pagar, minha irmã? Não tá certo isso, não. Nós vamos sair na rua, quebrar tudo e tocar fogo nos ônibus. Não aceito isso."
Com o horário de pico fazendo o fluxo engordar na entrada do metrô, o calor impregnava ainda mais nos bancos e paredes de cimento na estação — que foi virando, gradativamente, uma estufa.
Aos poucos, lencinhos eram tirados dos bolsos para limpar as testas brilhantes de suor. Nessa disputa com a pressa e o calor abafado, a reportagem de TAB conseguiu alcançar o vendedor Carlos, 63, para perguntar como ele estava se virando para pegar a mercadoria que revende na rua. Com o carrinho vazio, o vendedor quis se certificar. "Mas vocês vão publicar minha crítica ao Bolsonaro?".
Com o fim da gratuidade do transporte e as contas de casa empilhando, o vendedor foi sucinto. "Vou ter que arrumar encrenca, como é que eu vou pagar isso?".
Morando em um cômodo sozinho em Carapicuíba, Carlos é um dos milhões de brasileiros que saem de casa diariamente para trabalhar, mesmo estando no grupo de risco. Ele lista, com a voz abafada por causa da máscara, cada parte do corpo que décadas de trabalho lesionaram. "É a minha coluna, minhas pernas, meu pescoço. Já foi tudo embora", conta.
Prometendo que publicaríamos sua opinião sobre o governo federal, Carlos não poupou palavras. "Pergunta pra esse cafajeste aí, esse Bolsonaro, por que que ele não tá mandando a vacina. Pergunta também quanto que ele tá ganhando por cada cadáver", questiona, antes de sumir nas escadas rolantes rumo ao próximo destino.
Após a publicação da matéria, a SPTrans entrou em contato com o TAB. Reproduzimos aqui a nota na íntegra:
"Em atenção aos leitores do UOL, a Prefeitura de São Paulo, por meio da SPTrans, discorda de qualquer atitude violenta ou que incite atos de vandalismo. Além disso, reforça que manteve a gratuidade para quase 1,7 milhão (1.689.822) de pessoas a partir de 65 anos. A estimativa é de que 186 mil pessoas entre 60 e 64, que utilizavam os ônibus diariamente antes da pandemia, estejam na faixa da mudança na gratuidade, não 1.843.616 de pessoas, como a reportagem dá a entender.
A Prefeitura aplicou, em 2019, período anterior à pandemia, R$ 1,8 bilhão para manter todos os benefícios concedidos - as gratuidades - no transporte público da capital. Desse total, foram R$ 712 milhões para estudantes, R$ 338 milhões para idosos entre 60 e 64 anos, R$ 495 milhões para idosos a partir de 65 anos e R$ 275 milhões para pessoas com deficiência.
No Serviço Atende+, que realiza gratuitamente o transporte porta a porta de pessoas com autismo, surdocegueira e deficiência física com alto grau de severidade e dependência, a Prefeitura investiu R$ 91,5 milhões em 2019.
No caso do irmão da passadeira Maria Santos, a SPTrans esclarece que, aos 54 anos, ele já não teria direito à gratuidade no sistema pelo modelo anterior, que contemplava pessoas acima de 60 anos. Mas ele pode obter o Bilhete Único Especial Pessoa com Deficiência, desde que preencha todos os requisitos."
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