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'Tem que pegar o leitor pelo braço': pequenas editoras resistem à crise

Marcelo Nocelli, sócio da Reformatório - Chrystian Figueiredo/Divulgação
Marcelo Nocelli, sócio da Reformatório Imagem: Chrystian Figueiredo/Divulgação

Larissa Linder e Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de São Paulo

24/06/2021 04h00

A pandemia deixou a coisa vermelha — e branca. Ou melhor, a cousa. Desde de janeiro, o escritor e editor Saulo Ribeiro fez de uma simpática Kombi vermelha e branca o QG de sua editora, a Cousa. Diariamente a possante espalha livros, cafés e projetos pelas ruas de Vitória e outras cidades do Espírito Santo.

Com Saulo, vão outros três a bordo: um escritor, uma produtora e um cinegrafista. Na Kombi, eles se revezam. Ora são motoristas, ora mecânicos, ora baristas. Batizado de Caravana Combiousa, o projeto cultural produz saraus, uma websérie e, claro, vende livros e cafés.

O vermelho da Kombi lembra como ficaram as contas por causa da covid-19. Se, antes, a vida de pequenas editoras já não era fácil no Brasil, a pandemia inviabilizaria o negócio de Saulo. A Cousa que ele fundou com um sócio eram três cafés-livraria em Vitória, com o catálogo de mais de 200 títulos publicados nos últimos 12 anos.

"Eu chamo [o que a editora pequena faz] de 'Literaluta': tem que pegar o leitor pelo braço, montar sua banca, mostrar o que você tem", diz. "Os cafés cumpriam uma função de difusão, era um lugar para fazer conhecerem a gente, fazer eventos, lançar livros".

Aí tudo fechou. E o horizonte virou apenas aquele enquadrado pelo para-brisas da kombosa graças à Lei Aldir Blanc — batizada em memória ao ilustre compositor, vítima da covid-19 em maio de 2020, aos 73 anos. Aprovado pelo programa, Saulo conseguiu continuar disseminando livros.

Caravana Combiousa promove literatura no Espírito Santo - Nat Nobre/Divulgação - Nat Nobre/Divulgação
Caravana Combiousa promove literatura no Espírito Santo
Imagem: Nat Nobre/Divulgação

Pequenos (editores) notáveis

Corta para São Paulo. Há dez anos, Eduardo Lacerda fundou a Patuá. Ele era um Dom Quixote lutando contra moinhos de vento: acreditava que seria possível publicar poesia sem cobrar nada do autor — e viver disso. No primeiro ano ficou no vermelho. No segundo, empatou. A partir do terceiro, pediu demissão de seu emprego e se tornou editor em tempo integral.

"Nosso modelo de negócio sempre foi o lançamento, quando é comum vender de 50 a 70 exemplares, porque família, amigos, colegas de trabalho vêm prestigiar o autor e acabam comprando pelo menos um livro e tomando uma cerveja", recorda Eduardo.

O formato se sustentava a tal ponto que, cinco anos depois, ele próprio resolveu também se encarregar das cervejas: abriu um misto de bar e centro cultural alternativo na Vila Madalena, o Patuscada.

No início de 2020, a empolgação era grande. O espaço passava por uma intensa reforma e o discurso era de ampliação. Em março, contudo, o Patuscada fechou as portas — e até hoje aguarda uma melhoria das condições sanitárias para reabrir.

Foi preciso uma campanha de financiamento coletivo, em 2021 — que arrecadou mais de 50 mil reais para que o espaço pudesse ser mantido, já que os aluguéis continuam sendo pagos. A editora segue funcionando, com lançamentos online e uma estrutura de três funcionários — dois editores-assistentes e uma responsável pela expedição, além de Eduardo e a mulher, Pricila Gunutzmann.

Sem o contato presencial, o lançamento vende menos. Trinta exemplares já é considerado um bom número. O editor conta que teve autor que vendeu apenas dois. "Perda de tempo para o autor e para a gente", avalia. "É como se o livro não tivesse sido publicado. O que adianta o livro existir e não encontrar leitores?"

Imunidade fiscal

Se todo esse trabalho de equilibrar pratos já era complexo, a possibilidade de uma reforma tributária que retira isenções de impostos sobre os livros deixou os editores em alerta. A proposta de reforma tributária encaminhada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ao Congresso no ano passado prevê que, na substituição de tributos como PIS e Cofins pela Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS) as isenções sejam eliminadas.

Desde 1946, os livros têm imunidade de impostos, proposta originalmente feita pelo então deputado constituinte e escritor Jorge Amado. A imunidade foi incorporada à Constituição de 1988. Mesmo assim, o livro está sujeito às contribuições sociais, e só não as paga por uma lei editada em 2004. Mas, com a criação da CBS a isenção poderia acabar, rendendo uma taxação de 12% sobre o produto, fechando negócios que ajudam a levar novos escritores para as ruas.

Em maio deste ano, a Receita Federal reacendeu a polêmica, ao afirmar, em um documento sobre a reforma, que os livros poderiam ser taxados pois não são consumidos pelos brasileiros mais pobres.

"O livro tem de ter isenção para chegar barato para as pessoas. Sou a favor de que o empresário com mais lucro pague mais imposto, mas a proposta do Guedes e tributar mais para afastar as pessoas do livro", afirma Eduardo. "Há maneiras de cobrar imposto do empresário [mesmo do setor do livro] sem aumentar o preço do livro. Basta taxar o lucro do empresário, aí eu acharia justo.

"Seria inviável, impossível e impensável", afirma o escritor, editor e técnico gráfico Marcelo Nocelli, sócio da Reformatório, sobre a proposta de taxar os livros em 12%. "Dos livros que vendemos em livraria não sobram nem 10% para a editora [líquido], e só o preço do papel aumentou três vezes neste ano".

O escritor, editor e técnico gráfico Marcelo Nocelli, sócio da Reformatório - Chrystian Fiqueiredo/Divulgação - Chrystian Fiqueiredo/Divulgação
O escritor, editor e técnico gráfico Marcelo Nocelli, sócio da Reformatório
Imagem: Chrystian Fiqueiredo/Divulgação

Rede de resistência

A Reformatório nasceu em 2013, literalmente no fundo de um quintal da casa de um dos sócios, na capital paulista. Para distribuir os livros em lojas físicas, era preciso bater às portas das livrarias.

Em 2014, com a edição de "A Rede Idiota e Outros Textos", de Zeca Baleiro, a Reformatório entrou no radar do mercado editorial. Mesmo assim, até 2015, precisava da injeção de dinheiro dos donos para se manter viva. Dali em diante, com a edição de livros técnicos, a empresa teve um impulso nos lucros.

Então veio 2020. Embora nos primeiros meses da pandemia as vendas tenham aumentado, a tendência não se manteve. Os lançamentos, nos quais normalmente as editoras menores conseguem vender uma boa quantidade de livros, passaram a ser virtuais. Mas, nesse formato, os eventos já não se revertiam em vendas. "As pessoas não se sentem impelidas a comprar quando estão num lançamento virtual como quando estão em um evento presencial", explica Marcelo.

Em meados do ano passado, a dívida da Reformatório alcançava R$ 50 mil. A saída foi fazer um financiamento coletivo, que levantou R$ 69 mil em dois meses, e buscar formas alternativas de divulgar as publicações, como se associando a booktubers e promovendo pré-vendas de edições com descontos.

Editor do Selo Demônio Negro, Vanderley Mendonça também precisou se adaptar ao contexto virtual da pandemia. Ele disse que tirou todo o catálogo das livrarias — vê nelas "um problema sério para o livro", mas admite que o "tema é espinhoso". "Ficam com 50% do valor de venda. Acho que nenhum produto em todo o sistema de distribuição e venda capitalista deixa uma fatia tão grande do seu valor como um livro deixa para uma livraria", afirma. "De um pé de alface a um automóvel, ninguém fica com 50% do valor de venda."

Ele aproveitou a necessidade para "fazer um upgrade no site", contratar uma pessoa para ajudar nos envios e caprichar incrementando a divulgação nas redes sociais. "Hoje vendo mais do que quando meus livros estavam nas três principais redes do país", conta.

"As editoras pequenas conseguem fazer a chama ficar acesa. A literatura brasileira hoje é muito pulverizada em várias iniciativas, e as pequenas conseguem criar uma rede de resistência e se unir a outras. A gente vai juntando os fragmentos, os cacos, para montar um castelo", diz Saulo. "Nós damos oportunidades para novos talentos e resgatamos autores antigos que foram abandonados pelas grandes companhias", afirma Marcelo.

Editora Reformatório - Chrystian Figueiredo/Divulgação - Chrystian Figueiredo/Divulgação
Editora Reformatório
Imagem: Chrystian Figueiredo/Divulgação

Coisa de rico?

Editores rebatem as declarações do ministro da Economia, Paulo Guedes, e da Receita Federal, de que livro é produto para a elite. "Minha banca é montada em feira, em frente a boteco, entregamos livro em bairro de periferia. E quando a gente estava com uma economia mais aquecida e melhor distribuição de renda, a venda de livros era muito maior. A gente sente que tem uma demanda reprimida", afirma Saulo.

O editor Saulo Ribeiro fez de uma Kombi o QG de sua editora, a Cousa - Divulgação - Divulgação
O editor Saulo Ribeiro fez de uma Kombi o QG de sua editora, a Cousa
Imagem: Divulgação

Atuando no mercado editorial há duas décadas, Marcelo diz ter presenciado uma mudança de perfil de leitores nos anos anteriores à crise de 2014, com expansão entre moradores das periferias. "Hoje temos editoras em favelas, temos saraus em comunidades", pontua.

A própria pesquisa Retratos da Leitura no Brasil mostra que há fenômenos de literatura ecoando entre as classes menos favorecidas, como a Festa Literária das Periferias (Flup), do Rio, em que 68% dos participantes são das classes C, D e E.

Por outro lado, entre 2015 e 2019 — período que coincide com o começo da última recessão — o país perdeu mais de 4,6 milhões de leitores, segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, coordenada pelo Instituto Pró-Livro e divulgada em 2020. As maiores quedas foram observadas entre as pessoas com ensino superior e os mais ricos.