Desativada, famosa fábrica de cristais vende acervo de 50 mil peças
Pela fachada de 18 passos, você não dá nada. Sobrado pichado, três janelas blindadas no térreo e um portão preto que lembra o penitenciário. Não há som dentro da casa, que parece abandonada. Mas só parece.
O silêncio da rua de paralelepípedo, com remendos de asfalto, é quebrado pelo ruído de ré de caminhões que manobram em um galpão em frente. A rua Lopes Coutinho e seus arredores têm o ritmo de velhos armazéns e fábricas esquecidas do Belenzinho, bairro da zona leste de São Paulo com esquinas sem movimento e pequenos comércios locais, quase parados no tempo.
Mesmo sem uma placa que indique tal condição, o imóvel dessa fachada "que você não dá nada" está à venda. Com mais atenção, nota-se uma placa de metal entre a janela e o portão: Cristaleria Nacional Ltda, o que explica o C e o N que, mais de perto, aparecem dentro de círculos no portão. Tarde fria e ensolarada do início de agosto, nada se mexe na calçada.
Agora viaje no tempo, volte 80 anos, e imagine este endereço bombando, com o entra e sai de 300 operários na linha de produção, representantes de vendas, funcionários administrativos, o sonho do catalão Lorenzo Fló Badell (1891-1971) em pleno vapor. Lorenzo começou sua saga no Brasil em Porto Alegre, na década de 1920, já farejando oportunidades em indústrias de vidro.
É em São Paulo, no entanto, ao lado do irmão José, que ele inaugura a Cristaleria Cruzeiro, em 1931 - o empreendimento durou cinco anos. Em 1937, desta vez sozinho, Lorenzo lança a Cristaleria Nacional. Com a expertise de artesãos estrangeiros de grande apuro técnico (italianos de Murano, por exemplo) e domínio do uso de cores (inclusive o vermelho), a produção da CN ganha fama nacional graças aos vidros e cristais de qualidade.
O declínio acontece nos anos 1990, com a queda dos pedidos. A chama dos fornos perde ainda mais força em 1998, quando é diagnosticado o câncer de Lourenço Fló Jr. (1918-2006), no comando da fábrica desde a morte do pai, em 1971. A produção se torna esporádica até 2006. Aí, sim, os fornos se apagam para sempre.
Atrás dessa fachada, embrulhado em jornais antigos, empilhado em altas e profundas estantes, um acervo de 50 mil peças resiste a décadas de poeira, em uma fábrica em ruínas, com o piso esburacado como se tivesse sido bombardeado.
Em 2018, três primos resolvem desembrulhar o passado e colocar à venda as peças que foram a razão dos Fló desde a chegada ao Brasil. Uma delas é a psicóloga Flávia Fló, de 42 anos, bisneta de Lorenzo, o fundador. "Vamos entrar?", ela convida com as chaves da fábrica tilintando na mão.
'Saiu pra almoçar e já volta'
"Eu estudava de manhã e vinha bastante aqui à tarde. Sempre acompanhava minha mãe, ajudava a embalar as peças e ficava babando no mostruário e na praça de produção. Lembro muito do vidro sendo soprado, cortado. Era mágico...", recorda a psicóloga.
Nas paredes da recepção, um relógio, coberto de pó, mostra 9h05; no calendário, a data é 30 de novembro (sem ano marcado). Sobre a mesa central, notas fiscais de época e carimbos secos fazem companhia ao telefone de disco e fio encaracolado. Nas mesas laterais, máquinas de escrever em perfeito estado dormem sob capas pretas empoeiradas. "Este abandono me mobilizou. O discurso da família sempre foi 'não vamos desmontar...', mas estamos esperando o quê?"
Ao lado dos primos Philippe e Luciana, Flávia pôs a mão nas peças e, em 2018 (centenário de nascimento do avô, Lourenço Fló Jr.), lançou o site da Cristaleria Nacional para vender uma seleção de produtos feita na ponta dos dedos: copos coloridos, vasos, lustres, jarras, taças e cinzeiros. Vendeu como água.
O escritório é onde Lourenço Jr. despachava. Tem um mapa antigo do Estado de São Paulo, um cofre e poucas fotos enquadradas na parede, como a de Lourenço Jr. ao lado de autoridades do Rotary Club. "A sala está de um jeito que parece que meu vô saiu para almoçar e já volta", comenta Flávia. "O Rotary era a coisa mais importante para ele, em segundo vinha o Corinthians e aí, a fábrica... Vidreiro mesmo foi o meu bisavô..."
De fato, remexendo livros na estante do escritório, aparece "Elaboración Y Trabajo del Vidrio", de A. Mero, da Editorial Ossó, de Barcelona, 1948. A gestão do fundador vai até o início dos anos 1970, época tida como o auge da Cristaleria Nacional, depois de duas décadas com vendas impulsionadas por diferentes motivos: os anos 1950 refletiram a demanda do pós-Segunda Guerra Mundial (quando os produtores europeus estavam em frangalhos); e os 1960, momento em que o Brasil teve aumento de investimento em infraestrutura graças à construção de cidades como Brasília - lá, o Santuário Dom Bosco encomendou peças da CN, aumentando a boa reputação da marca.
Célia Regina, mãe de Flávia, e a tia Carmen Lucia - "as guardiãs do acervo", nas palavras da sobrinha - seguem trabalhando em uma pequena sala da fábrica, agora organizando os pedidos que chegam pelo site ou pelo Instagram, localizando peças em um mar de pacotes. Mais de 10 mil peças já foram vendidas para 18 Estados no Brasil e para Nova York (EUA), o que traz um sentimento ambíguo para a família: se por um lado estão dando vida a um acervo que acumulava poeira, por outro, estão se desfazendo de uma coleção finita. Os itens mais procurados são os chamados copo whisky e copo bola.
"No início, não tínhamos a expectativa de fazer algo grandioso; simplesmente pensávamos em colocar aquelas peças para circular pelo mundo, não fazia sentido tantas coisas lindas ali guardadas. Festejamos quando acaba alguma peça, mas, sim, a finitude das peças é um lembrete ruim. Por isso, vamos fazer um documentário", revela Flávia.
O brinco da Cristaleria
A sensação de túnel do tempo se aguça ao passarmos pela porta que liga o escritório de Lourenço Jr. à escada para a parte superior do sobrado - os aposentos, que conservam poucos móveis e peças aleatórias espalhadas, serviram de lar para a família na década de 1940 (destaque para o amplo banheiro, com vitral colorido de cena campestre).
Depois, há uma sala que sempre foi o brinco da CN: o mostruário, espaço que servia de vitrine para os clientes e era (continua sendo...) abarrotado de peças únicas, lapidadas e coloridas. Atualmente, não há um esquema regular de visita a esse lugar e os itens não estão à venda, teoricamente - já ocorreram concessões e negócios foram fechados com o filé histórico da fábrica. "Meu sonho era ter uma peça da Cristaleria na loja Amoreira [rua dos Macunis, em São Paulo], e isso aconteceu rapidamente, em um mês a gente já estava lá."
No pátio dos fundos, abre-se um vasto quintal, que aquela fachada tão bem disfarçou.
Há fornos, esteiras de resfriamento das peças, sala de química das cores, praça de lapidação, sala de montagem dos lustres, telhas e piso esburacados, caixas de madeira com lustres transbordando, mato e galhos velhos cobrindo paredes, cipó escorrendo na boca dos fornos, e prateleiras e mais prateleiras com as peças embaladas uma a uma e depois em conjuntos (meia ou uma dúzia). Em um canto do terreno, a chaminé já não comporta todas as letras da marca, pois teve o topo demolido por questões de segurança.
A fábrica pode estar em ruínas, mas a admiração pelo legado dos Fló está intacta para a próxima geração da família. "Meus filhos (Bernardo, de 9 anos, e Antônio, de 7) são completamente apaixonados pela fábrica. Sempre querem explorar este universo; em casa, brincam de embalar copos e fazer sacolinhas e caixas. E já me pediram pra guardar algumas coisas especiais para suas casas no futuro", conta Flávia.
O encontro previsto para durar duas horas acabou se alongando por quatro horas e meia. Tudo leva a uma contemplação mais extensa. Copos lapidados cobertos de poeira hipnotizam. Corredores de estantes lotadas de peças mudam de tom conforme a luz baixa por janelas de vidros quebrados e telas de arame contra pomba. Histórias são desfiadas até a noite ocupar o Belenzinho. Antes de Flávia trancar a porta da recepção, dá para bater de novo o olho no relógio de parede: 9h05.
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