'Será que Deus me ouve?' Famílias vivem em calçada de universidade no Ceará
Vânia Maria da Silva Sousa, 45, não tinha mais como se sustentar por mais um dia - e nem pagar o aluguel de R$ 500 da casa onde passou os últimos dois anos no bairro Bom Jardim, periferia de Fortaleza, quando resolveu morar na rua em abril deste ano. Não aguentava mais as ameaças de despejo. Vestiu uma roupa rapidamente e saiu pelas ruas da cidade com sacolas e mochilas. Por sugestão da cunhada, que vivia em situação de rua, dirigiu-se ao Bairro de Fátima e acampou na calçada da Uece (Universidade Estadual do Ceará).
Após um mês correndo de um lado para o outro da rua Ministro Joaquim Bastos para se proteger das tempestades, ela montou uma moradia improvisada em meio a árvores e grades.
A "casa" de Vânia fica em frente ao cruzamento com a avenida Luciano Carneiro. O local não tem janela nem porta e a única divisão é a do banheiro, que é separado por lonas. No chão, ainda tem água empoçada da chuva do final de semana. As frutas são colocadas em bacias em meio a moscas que não param de chegar. As roupas são penduradas nas grades da universidade e as poucas panelas estão sujas do jantar da véspera.
A universidade não está tendo aulas presenciais. Como a região é mais movimentada apenas durante o período letivo, as pessoas que por ali passam costumam ser as mesmas todos os dias, o que gerou um certo vínculo com as famílias que se instalaram nos arredores.
Vânia não consegue dormir a não ser quando toma um comprimido de ansiolítico. Nos últimos meses, perdeu três pessoas: o ex-marido, por problemas cardíacos; um irmão que tinha como filho, para a tuberculose; e o sobrinho, ainda sem causa definida, encontrado morto três dias após desaparecimento.
As noites também causam medo à ex-empregada doméstica. Não dormir também é sinônimo de prudência. Sempre conversa com os policiais que fazem a ronda na região, na intenção de saber os horários mais seguros para poder descansar. A rua fica deserta à noite e o pouco movimento de pedestres causa pânico, principalmente, durante a madrugada.
"Os meus amigos [policiais] falam que não é para eu ter amizade com ninguém por aqui. Está havendo muito assalto. Parece que tiveram 15 mortes só neste ano. Já perdi tudo para o aluguel, não quero perder mais nada. Trabalhei muito e hoje me vejo nessa situação", desabafa.
Casa improvisada
Na "casa" moram mais quatro pessoas - dois adultos e duas crianças com idades entre 8 e 9 anos - além do cachorro Parafuso, que se esconde debaixo da cama.
De manhã bem cedo, "Molinho", um dos moradores, levou os filhos para passar o dia na casa de um familiar. Com feridas provocadas pela situação precária de higiene, as crianças sofrem ainda mais com a ausência de recursos. "Se a gente mal consegue dormir, por causa das moscas e muriçocas [pernilongos], os bebês [as crianças] muito menos. Não tem condição deles ficarem aqui", diz Vânia.
A necessidade de ter uma casa e voltar a morar no Bom Jardim se dá, principalmente, para poder acompanhar a gravidez da nora Camila e ajudar no tratamento do filho Felipe, 24, que tem esquizofrenia. Para isso, Vânia conta com o apoio de um desconhecido que fez uma vaquinha virtual para arrecadar os R$ 9 mil necessários para comprar o imóvel. Mesmo de longe, ela tenta ajudar Camila e Felipe de alguma forma. Com um pincel preto, escreveu um cartaz em busca de ajuda para o enxoval do quinto neto. Entusiasmada, conta que já ganhou fraldas e um carrinho de bebê.
Vânia se comunica com Felipe todos os dias, por aplicativo de mensagens. Para falar do filho, mostra fotos no celular e faz elogios. "Ele é muito lindo. Um moreno lindo. É cheio de tatuagens, mas não usa drogas e nunca fez mal a ninguém", conta. Cansada, após se agachar para lavar os pratos, lembra do último surto do filho. Pelos cálculos de Vânia, foram três internações no Hospital Saúde Mental de Messejana nos últimos dois anos. "Quando ele surta, perde até o amor pela mãe", lembra.
Era Felipe quem trazia o material para Vânia fabricar produtos de limpeza e vender no sinal. Desanimada, mostra a sacola com as substâncias que sobraram. Cada uma custa R$ 6 e pode produzir até 20 galões de cinco litros. O dinheiro das vendas é essencial para Felipe, que há dois anos luta para conseguir a aposentadoria por invalidez.
Fazer o bem
A moradia de Vânia virou local de apoio para outras pessoas na mesma situação. Ela diz ter um motivo maior para repartir o pouco alimento que aparece: é cristã.
Vânia conta ao TAB que, no dia anterior, convidou um homem que catava restos de comida no lixo para almoçar. Na madrugada, ele tentou furtar seu celular. Sem sucesso, fugiu no sentido da avenida 13 de Maio. "A gente tem de fazer o bem, sem pensar em algo em troca. Acho que ele era usuário de drogas e deveria estar desesperado para manter o vício".
Sentada na cama, Vânia se aconchega nos braços do companheiro, que tem o rosto de Nossa Senhora de Fátima e um terço tatuados. Ele se enrola na rede para não ser fotografado. Cada minuto naquele local representa uma eternidade para a mulher, que pretende ir à missa pedir que "Deus toque no coração dos governantes" para que ela consiga o aluguel social.
"Não posso continuar aqui por mais tempo. Teve uma assistente social que falou que tem gente recebendo depois de dois anos. Como vou sobreviver a isso? As pessoas que me ajudam vão dizer que estou acomodada e podem não me ajudar mais. Está difícil para todo mundo", lamenta.
Atualmente, a SDHDS (Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social) gerencia 306 vagas de aluguel social em Fortaleza. Segundo a pasta, não estão sendo disponibilizadas mensalmente novas vagas. As que surgem são resultados de substituições de beneficiários que deixaram de cumprir as regras do programa.
'Será que Deus me ouve?'
Igor Roseno de Sousa da Silva, 28, não sabe quanto tempo está na rua. Acredita que faz cinco anos, sendo um na calçada da Uece. A família está espalhada pelo Ceará e o jovem não tem mais contato com ninguém. Ele trabalhava na construção civil, como servente, antes de ficar desempregado. Para não sobrecarregar ninguém, como ele mesmo diz, vive sozinho embaixo de uma lona cheia de furos, do outro lado da rua.
Simpático, corre para pegar o cacho de bananas que um desconhecido tinha trazido para ele. Agradece e diz que a doação veio em boa hora. Com cuidado, retira algumas, coloca dentro de uma sacola e guarda. O restante pendura na árvore, na espera do soim [sagui] descer e se alimentar. A amizade entre ele e o animal tornou-se um alento para os dias difíceis de solidão.
Igor está desacreditado, cético, e ainda não conseguiu um trabalho desde que foi morar na rua. "Será que Deus me ouve?", questiona. Para ele, ter uma renda fixa representa a garantia da realização de um sonho dos tempos de criança: ser motorista de caminhão.
Igor não tem CNH (Carteira Nacional de Habilitação) e o único que lhe resta é a carteira de trabalho, que guarda, em meio às roupas, para o dia de uma futura entrevista de emprego. "Eu sou um cara inteligente, só não tenho oportunidade", desabafa enquanto caminha com a placa pelo sinal, que dizia: "Por favor, estou pedindo uma ajuda, porque estou desabrigado e desempregado. Qualquer doação ou um emprego, agradeço de coração. Que Deus abençoe!"
Depois de um tempo, toma banho, pega o carrinho de reciclagem e vai andar pela região. Normalmente, regressa 13 horas depois.
Em nota, a Uece diz que, desde que tomou conhecimento da situação vivenciada pelas famílias que se encontram em situação de rua na avenida Luciano Carneiro, na calçada do Centro de Humanidades da universidade, entrou em contato com a prefeitura de Fortaleza solicitando que elas fossem retiradas dessa situação, encaminhando-os para o aluguel social e/ou tomando demais providências que a prefeitura achasse cabível.
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