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Pesquisadoras querem registrar história das revistas lésbicas no Brasil

Arquivo Lésbico Brasileiro pretende reunir revistas, periódicos, panfletos e outros registros - Arquivo pessoal
Arquivo Lésbico Brasileiro pretende reunir revistas, periódicos, panfletos e outros registros Imagem: Arquivo pessoal

Elisa Soupin

Colaboração para o TAB, do Rio

29/08/2021 04h00

"Femme", uma revista escrita por e para mulheres lésbicas, circulou no Brasil entre 1993 e 1996. Achar um exemplar, porém, é coisa rara - nem mesmo quem as escreveu guardou cópias. Uma pesquisadora determinada a encontrar as publicações revirou o Google e achou um documento na biblioteca do Congresso americano que listava três das edições desencontradas da revista. Não se sabe como, mas os exemplares foram parar na Universidade de Austin, no Texas. Uma rede lésbica, então, se formou para conseguir chegar às páginas.

Atenção à ciranda: a pesquisadora tinha uma amiga que namorava uma mulher que já havia estudado nessa universidade norte-americana e conseguiu que outra amiga escaneasse a cópia das edições perdidas. Assim, à base de esforço e sorte, tem sido a busca do Arquivo Lésbico Brasileiro para encontrar, catalogar e entender a imprensa (e outros documentos) das lésbicas ao longo do tempo.

Femme, revista lésbica que circulou no Brasil entre 1993 e 1996, no acervo do Arquivo Lésbico Brasileiro - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Femme, revista lésbica da década de 90
Imagem: Arquivo pessoal

"Boa parte do trabalho do Arquivo em encontrar fontes parte do acaso", conta a jornalista Paula Silveira Barbosa, 25. "Hoje, a gente dá o nome de 'imprensa lésbica' [a revistas como a 'Femme'], mas várias das pessoas que escreviam e participavam dessas publicações não entendiam aquela produção como 'imprensa', como tendo valor histórico, mas como uma coisa restrita, que não precisava ser preservada e não tinha porque guardar", explica Paula, que é mestre em comunicação pela UPEG (Universidade Estadual de Ponta Grossa) e diretora-geral do Arquivo.

Neste domingo (29) é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica e a busca por reencontrar o passado faz parte de entender as demandas do grupo. Idas à Biblioteca Nacional, no Rio, e ao Centro Informação Mulher, em São Paulo, ajudaram a achar peças do quebra-cabeças: edições raras de produções lésbicas no país. Mas ainda há peças a encontrar. Há registro de uma publicação chamada "Amazonas" que circulou entre 1983 e 1985 e isso é tudo que se sabe: não ficou nenhuma cópia.

De 1981 a 2021: demandas continuam atuais

Não há registro de imprensa pensada para o segmento de mulheres que se relacionam com mulheres no Brasil antes do contexto da ditadura militar (1964-1985), dizem as pesquisadoras do Arquivo. Na época, estruturou-se uma via de comunicação clandestina alternativa, entre elas, publicações feministas e homossexuais. As primeiras publicações lésbicas conhecidas são de janeiro de 1981, quando surgiram a "Iamuricumá" e o "ChanacomChana".

A "Iamuricumá" era um folheto carioca e tinha uma estratégia de guerrilha para sua circulação: cada mulher que recebesse a publicação, que tinha textos polêmicos e ideias radicais para falar de homossexualidade, deveria fazer cinco cópias e repassar para outras cinco "entendidas" - como eram chamadas as lésbicas à época. Desse folheto, há três edições conhecidas e não se sabe se houve outras.

Já o "ChanacomChana", autodeclarado lésbico-feminista, circulou até 1987 e muitas das questões abordadas pelo periódico seguem (tristemente) atuais. Na primeira edição, há uma entrevista sobre o time de feminino Café Futebol Clube, em que se fala da dificuldade de conseguir profissionalizar o esporte para as mulheres. Muita coisa melhorou no quesito, mas, em 2021, eliminada das Olimpíadas de Tóquio, a jogadora Marta, uma das maiores atletas brasileiras e abertamente lésbica, cobrou investimentos na modalidade no Brasil. Tal qual já se falava 40 anos atrás.

A pergunta "O que mulheres lésbicas fazem na cama?" também já era algo que as lésbicas de então precisavam ouvir. À época a questão foi respondida com bom humor. "As lésbicas fazem muitas coisas na cama, entre elas: dormir, ler, assistir à televisão, fazer ginástica etc.", diz uma das revistas.

"Por essas publicações, a gente vê que muita coisa avançou pouco. Para muitas lésbicas, o mercado de trabalho continua sendo muito restrito. Houve pouco avanço se pensarmos na intersecção entre lésbicas e emprego. As questões sobre saúde sexual das lésbicas tiveram avanço, mas ainda há muita desinformação", afirma Paula, que destaca que quanto mais a mulher tem características atreladas à ideia de lesbianidade, mais difícil fica encontrar trabalho.

'Operação Sapatão'

Os anos de ditadura militar também foram de repressão para as lésbicas, que não se restringiam a falar de amor e sexualidade, e tratavam de assuntos políticos, como discussões sobre a patologização da homossexualidade em suas publicações.

"A ditadura fez vários relatórios de investigação sobre grupos guerrilheiros e o fato de as mulheres serem lésbicas era um dado anotado. Dizia-se que tinham 'patologia da lesbianidade' ou eram 'portadoras de anomalia sexual'. Em um dos relatórios, uma delas é descrita como 'lésbica ativa e aparente fanchona'", diz Julia Kumpera, diretora financeira do Arquivo, que pesquisa políticas sexuais da ditadura militar no Brasil e a história dos ativismos lésbicos no mestrado em história na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Julia Kumpera, do Arquivo Lésbico Brasileiro, pesquisadora de políticas sexuais da ditadura militar no Brasil - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ser lésbica era 'um dado anotado' na ditadura, diz pesquisadora Julia Kumpera
Imagem: Arquivo pessoal

Em novembro de 1980 foi realizada uma ação policial chamada "Operação Sapatão", encabeçada pelo delegado José Wilson Richetti. Como o nome sugere, para ser presa bastava ser sapatão. Cerca de 200 mulheres foram levadas para a cadeia em São Paulo sob a acusação de violar leis da moral e dos bons costumes. As batidas em bares e boates que reuniam lésbicas eram comuns, causando medo e dificultando o já restrito espaço de socialização dessas mulheres.

Dessa época, Marta e Eduardo Suplicy são lembrados como defensores da causa: há até uma piada em que se diz que a antiga sigla GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) queria dizer "gays, lésbicas e Suplicy", por conta da atuação progressista de ambos, que defenderam os direitos dos homossexuais durante o regime e depois. É de Marta, então deputada federal, a autoria de um projeto de Lei de 1995 que propunha a união civil de pessoas do mesmo sexo.

Imprensa cupido

"Tenho 27 anos, sou alta, negra, super tímida. Sou do signo de Virgem e apaixonada pela cantora Simone. Sou uma pessoa bem simples, mas carente em conhecer novas pessoas".

"Sou estudante do 2º ano do secretariado, 20 anos, 1,60 e 53 kg, olhos e cabelos castanhos escuros e compridos. Signo de Aquário. Me considero bonita, simpática, inteligente, carinhosa e um pouco convencida. Gosto de músicas, cinemas, estudar, um bom whisk[y] com gelo e uma transa bem transada".

Em uma era pré-Tinder, antes até do clássico bate-papo do UOL existir, a vida de uma mulher lésbica que queria encontrar alguém para amar não era exatamente fácil. Nesse sentido, a imprensa voltada ao público acabava servindo como plataforma para encontrar um mozão - e dá pra perceber que o interesse por astrologia já estava em alta nesses anúncios publicados pela revista "Femme", desde sua primeira edição, em setembro de 1993, já depois dos tempos da redemocratização. Era comum que lésbicas tivessem uma caixa postal para que suas correspondências pudessem ser mantidas longe dos olhos de familiares.

Anúncios publicados pela revista Femme, no acervo do Arquivo Lésbico Brasileiro  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Anúncios publicados pela revista Femme, no acervo do Arquivo Lésbico Brasileiro
Imagem: Arquivo pessoal

Uma situação recorrente, conta a pesquisadora Paula Silveira Barbosa, é que a militância, politizada e preocupada em discutir conquistas, direitos e tensões políticas das mulheres homossexuais, se ressentia das lésbicas que muitas vezes apareciam em encontros promovidos pelas publicações e, tão logo arranjassem uma namorada, deixavam para lá a discussão das pautas identitárias e nunca mais apareciam. O resultado é que acabava faltando mão de obra para dar continuidade às publicações.

"A militância criticava muito essa prática, acreditando que os debates políticos pela classe deviam ser mais importantes, deixando os relacionamentos em segundo plano", diz. "Mas, pensando da perspectiva de muitas lésbicas que sofriam violência e preconceito em casa e no trabalho, achar uma companheira muitas vezes era uma forma de escapar dessa violência. Nesse sentido, a imprensa foi muito importante."

Atualmente, há publicações ativas como "Alternativa L", "Brejeiras" e "Lésbi". Para os próximos anos, o Arquivo Lésbico Brasileiro espera seguir registrando a memória dessa imprensa. "Toda revista, periódico, documentos, panfleto, livro, ata de reunião ou outros registros que sejam parte da memória do grupo nos interessa", dizem as pesquisadoras.

Miriam Martinho, que alega ser proprietária e titular dos direitos autorais das publicações "ChanacomChana" e "Um outro olhar", decidiu não autorizar o uso das obras pelo Arquivo Lésbico Brasileiro. Ao TAB, a advogada de Miriam, Maria Luiza Egea, afirmou que a instituição não consultou Miriam previamente sobre a disponibilização pública dos materiais e que isso motivou a proibição.