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'Moça da letra bonita', calígrafa escreve convites e honrarias há 50 anos

A calígrafa Dora Bottger, na sala de sua casa, em São Paulo: mais de 50 anos de experiência escrevendo convites, títulos e documentos - Fernando Moraes/UOL
A calígrafa Dora Bottger, na sala de sua casa, em São Paulo: mais de 50 anos de experiência escrevendo convites, títulos e documentos
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Sibele Oliveira

Colaboração para o TAB, de São Paulo

18/09/2021 04h01

Dora Elvira Bottger, 79, mergulha a pena no nanquim e a aproxima da pele de cabra, apoiada numa mesa grande. Faz movimentos retos, curvos, curtos e longos, que dão forma à letra gótica alemã na capa do livro de ouro da Associação Médica Brasileira. Na sala que usa para trabalhar, em sua casa no bairro do Ipiranga, em São Paulo, livros de ouro, termos de posse, diplomas, títulos, certificados e homenagens estão expostos como se estivessem num museu.

No meio dessas cópias chama atenção a foto do papa Bento 16 recebendo o título de acadêmico honoris causa da Academia Paulista de Letras. De João Paulo 2º ao ex-presidente uruguaio Julio María Sanguinetti, do ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello à dramaturga Maria Adelaide Amaral, Dora assina honrarias, mas não se deslumbra com isso.

Também não gosta de holofotes. Raramente comparece às cerimônias e coquetéis nos quais os documentos são entregues. Prefere o silêncio ao barulho. Não tem tempo para eventos. Trabalha de segunda a segunda, dividindo-se entre as encomendas e os cursos que ministra. Só folga nos fins de semana se não tiver nenhum pedido para entregar. "Eu só trabalho porque para mim não é trabalho. É uma distração", diz.

O encantamento de Dora pela escrita começou aos quatro anos, ao observar os irmãos mais velhos fazendo a lição de casa. "Não tinha nada a ver com o restante das coisas que eu tinha visto. Era muito além da minha imaginação. Uma mágica, um milagre. Até hoje sinto essa emoção." Filha de missionários alemães, a garota tinha a letra caprichada e era elogiada por professores e diretores. Também tinha talento para desenhar.

Com o pai intelectual, aprendeu a gostar de estudar. Já a mãe lhe ensinou a importância da espiritualidade. Como o dinheiro das missões não podia ser gasto em casa, a família tinha uma vida simples. Mesmo assim, o pastor conseguia bolsas de estudo e livros usados para os filhos. Quando Dora tinha 13 anos, o casal fundou uma casa de irmãs diaconisas. Animada com a ideia, ela entrou para a organização e passou a vestir um hábito, inclusive para ir à escola. Achava que seu destino era seguir a vida religiosa.

Se a educação alemã deu à Dora disciplina, organização e perfeccionismo, ela aprendeu sozinha a defender suas opiniões e decisões. Desistiu da carreira religiosa quando estava no segundo ano do científico (atual ensino médio). "Larguei o hábito para ter uma família", conta. Chateados, os pais surpreenderam os filhos com uma notícia inesperada. A partir daquele momento, eles teriam que se virar.

Material de trabalho de Dora Bottger, calígrafa com atuação há mais de 50 anos - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Material de trabalho de Dora Bottger, calígrafa com atuação há mais de 50 anos
Imagem: Fernando Moraes/UOL
Documento caligrafado por Dora Bottger - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

O caminho das letras

Morando num pensionato, Dora perdeu o ano letivo e foi trabalhar. Conseguiu empregos em laboratórios. Num deles conheceu o futuro marido, com quem se casou aos 21 anos. Com a chegada do quarto filho, as despesas em casa começaram a pesar. A sugestão para que ela trabalhasse partiu de Roberto Gregori, vendo que a esposa de um amigo estava ganhando dinheiro fazendo convites. Dora imediatamente procurou um curso de caligrafia por correspondência.

Começou a trabalhar na área em 1968, aos 26 anos. Batia na porta de escolas de datilografia, cursos técnicos e supletivos. "Chegava mostrando as minhas letrinhas e falava: 'Se quiserem, eu preencho os convites de vocês". Logo apareceram clientes importantes como a Mercedes-Benz, Autolatina, Volkswagen, Ford e agências de publicidade como a Thompson. Em meados de 1978, Dora ouviu a campainha tocar. Quando abriu o portão, viu Miguel Gabriel, um dos maiores calígrafos de São Paulo. "É aqui que mora uma moça que tem letra bonita?"

Caligrafia de Dora Elvira Bottger - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Dora fica arrepiada ao lembrar do que sentiu vendo o homem baixinho, que mancava um pouco devido à paralisia infantil. Procurou ser humilde na resposta e ele revelou o motivo da visita. Estava doente, sobrecarregado de trabalho, precisava de ajuda e já tinha visto documentos feitos pela calígrafa. Perguntou se ela estava disposta a colaborar com ele. Antes de a jovem abrir a boca, ele tirou um pergaminho da maleta. "Estão aqui os dizeres e eu preciso disso para amanhã". Foi um batismo de fogo. Ela deu conta e o chefe ficou satisfeito.

Com Miguel, aprendeu técnicas e segredos da profissão. Quando ele morreu, herdou seus clientes. Dora costuma ficar décadas com boa parte deles. É o caso da Associação Paulista de Medicina, para quem faz trabalhos desde 1969, e da Associação Paulista de Letras, parceria que vem desde 1978. No dia a dia, a calígrafa usa seis alfabetos: cursiva, ronde, gótica alemã, gótica inglesa, chancery cursive (conhecida como itálica) e moderna. Na maioria dos trabalhos, utiliza a cursiva e a gótica alemã.

A calígrafa Dora Bottger, na sala de sua casa, em São Paulo: mais de 50 anos de experiência escrevendo convites, títulos e documentos - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL
Fotos da calígrafa Dora Bottger e seus familiares, missionários alemães protestantes - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Fotos da calígrafa Dora Bottger e seus familiares, missionários alemães protestantes
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Arte e fé

Dora hoje vive sozinha — o casamento terminou depois de 23 anos, e ela nunca mais se casou. Embora tenha cinco filhos, não os vê com frequência porque a maioria mora longe. Mas não sente solidão, porque está sempre fazendo alguma coisa. Só não recorre à televisão, que considera um desperdício de tempo. Tela só a do computador, que usa para acessar o Facebook, onde divulga seu trabalho. Quando está livre, gosta de fazer experiências com tintas, ler a Bíblia e livros religiosos em alemão.

Protestante, ela não levanta a bandeira de nenhuma organização religiosa. "Agradeço a Deus, oro. Mas não sou daquelas pessoas chatas. Acho que Deus é muito compreensivo com as nossas falhas. Quem vai provar que só aquilo que estou seguindo está certo? O céu é muito grande para uma só igreja. Quando a gente morre, fica sozinho perante Deus."

Caligrafia de Dora Bottger - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL
Título concedido ao papa Bento 16 pela Academia Paulista de Letras. A caligrafia é de Dora Bottger - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Título concedido ao papa Bento 16 pela Academia Paulista de Letras. A caligrafia é de Dora Bottger
Imagem: Fernando Moraes/UOL

A fé não deixa Dora desanimar. Nem com a diminuição dos eventos na pandemia, que vem afetando o mercado da caligrafia. Também não fica aflita quando os clientes vão embora, atraídos por preços muito baixos. Aposentada desde os 70 anos, nunca lhe faltou trabalho. O que Dora lamenta é a substituição da escrita pela digitação. Tem fé que isso vai mudar. "Tudo na vida vai indo, indo e depois tem uma queda. Essa queda pode durar anos. Mas num determinado momento, ela ressuscita. Existe agora um endeusamento da internet, mas vai voltar o hábito de escrever, de ler."

Outro costume que Dora espera que ressurja é o de trocar cartas e cartões. "As coisas se materializaram muito e o sentimento ficou defasado. Escrever e mandar um cartão se tornou piegas. Mas tenho esperança de que essas coisas de coração, tão humanamente necessárias, voltem."

Não é raro ela fazer um primeiro trabalho sem cobrar, para apresentar suas letras a um cliente. "Aqui não é comércio. É artístico. As pessoas precisam ter essa diferença na cabeça. Trabalho por amor à arte. Depois, naturalmente, vem o retorno financeiro." É da arte que ela extrai o encantamento pela vida. Por isso, nem pensa em parar. "Vou continuar trabalhando até quando conseguir."