Maior plantio coletivo da história de BH quer a cidade-jardim de volta

Do alto, o horizonte do Barreiro não é assim tão belo: morros repletos de casas, torres de telefonia, galpões e asfalto a perder de vista acentuam o sol tórrido de uma manhã de sábado. À imagem se conjuga ainda o esqueleto de um grande edifício em construção.
Olhando para baixo, a visão é mais amena. Um vasto gramado pontuado por árvores, flores e centenas de aberturas que, à distância, se assemelham a formigueiros. Os cerca de 1.240 buracos são "berços": no vocabulário dos ativismo ambiental, esse é o termo para denominar as covas prontas para receber mudas.
Naquele sábado, o parque ecológico Padre Alfredo Sabetta, um oásis em meio à ilha de calor do Barreiro, foi cenário do maior plantio comunitário da história de Belo Horizonte. A ação reuniu uma dezena de coletivos de urbanismo ecológico e foi organizada pela vereadora Duda Salabert (PDT), que pagava uma pequena fração de sua dívida vegetal — 37.613 mudas, uma para cada voto recebido nas eleições de 2020.
Para começar a saldar tamanho débito, a vereadora contou com ajudantes. Na semana anterior ao plantio, a prefeitura cedeu funcionários da limpeza urbana, que cortaram a grama, roçaram a terra e abriram os "berços". Cerca de 5 toneladas de adubo foram produzidas a partir de resíduos orgânicos da capital mineira, depositados em um aterro na BR-040.
As mudas plantadas naquele dia, a maioria de espécies frutíferas — goiabeiras, abacateiros, pitangueiras, jabuticabeiras, entre outras —- foram doadas pela Fundação Municipal de Parques. Grupos de ativismo ambiental entraram com braços e pernas. Estiveram de pé e com a mão na terra, plantando, aproximadamente 400 voluntários, desde as 8 da manhã até o início da tarde.
Um casal que descansava sob a sombra de uma árvore e não sabia da ação se assombrou com a quantidade de gente naquele sábado - e com os hambúrgueres, todos veganos, vendidos na feirinha do evento. "O pessoal daqui é tudo natureba, né?", comentou a moça à reportagem do TAB. "Tá certo, o Barreiro tá precisando de mais árvores", acrescentou o rapaz, que dividia uma cerveja com a namorada.
'Occupy' pracinha
Até setembro de 2019, o parque Alfredo Sabbeta resumia-se a uma pista de corrida, alguns banquinhos e um imenso matagal que periodicamente era incendiado. Não era um local amistoso para as crianças, ou onde se pudesse caminhar despreocupadamente à noite. Altino do Carmo, 85, insurgiu-se contra esse estado de coisas.
Mesmo temendo sanções da prefeitura, cultivava no parque pés de feijão e batata-doce protegidos pelo mato alto. Se passava por um aborrecimento qualquer, redobrava o trabalho de roçar e capinar. Teria continuado na surdina, não fosse um sul-mato-grossense de 38 anos recém-chegado a Minas, que o pegou no ato — do plantio, no caso.
Rodrigo Costa Leal se mudara para BH por ocasião do nascimento de seu filho, Kauê. A mãe, Camila Esteves, é mineira. Veterinário, ele trabalhava no Pantanal cuidando de jacarés e outros répteis dos quais a maioria prefere manter distância. Desde a faculdade, interessava-se pela implantação de agroflorestas em ambientes rurais e urbanos. Quando descobriu as plantações de Altino, incentivou o vizinho a prosseguir no trabalho, ao qual se juntou, muitas vezes, com Kauê a tiracolo.
A ideia tomou forma com a ajuda da vizinhança. Um dia, um homem viu Rodrigo cavando a terra com as mãos e comentou que o trabalho seria abreviado com a ajuda de uma enxada. Rodrigo concordou, mas disse que, como não dispunha de uma, continuaria à sua maneira. No dia seguinte, o homem retornou com a ferramenta.
Aos poucos, Rodrigo e duas dúzias de vizinhos organizaram uma agrofloresta em miniatura: há a área de compostagem, onde os moradores depositam o lixo orgânico que, depois, se transforma em adubo; um minhocário, que auxilia a enriquecer o solo; a seção dos polinizadores (a mais chamativa, onde ficam as flores que convidam abelhas e outros insetos ao parque); a de ervas medicinais e a de árvores frutíferas, que dá nome ao projeto: Pracinha de Comer.
O núcleo inicial, com feijões, batatas e abóboras, segue firme, e na última safra, mais de 100 kg desses alimentos foram colhidos, auxiliando a complementar a dieta de famílias carentes que moram nas redondezas e das cada vez mais numerosas pessoas em situação de rua que transitam pelo bairro de classe média. Altino e Rodrigo supervisionam as doações.
Uma das árvores plantadas tem até nome. É Bia, uma jovem mangueira de um metro de altura, plantada pela professora Brígida Rosa, 51, que quis homenagear sua cunhada que, em abril, morreu vítima do câncer. "Durante o tratamento, ela passou alguns meses na minha casa. Um dia, fomos ao quintal de uma amiga, onde tinha uma mangueira. A Bia chupou muitas, muitas mangas, e depois que estava bem saciada, sentou-se debaixo da mangueira e abriu os braços, contemplando o sol nas folhas. Pouco depois ela faleceu, e na semana seguinte eu plantei essa árvore pra ela."
Cidade-jardim
Na mente dos positivistas que projetaram a capital mineira, no fim do século 19, Belo Horizonte era para ser uma "cidade-jardim". A ambição não era tanto a de promover a convivência harmônica entre a metrópole, as plantas e os rios, mas a de criar grandes canteiros ornamentais, à moda de Paris e Washington. Cento e vinte e quatro anos depois, o concreto tomou conta dessas áreas, e as enchentes anuais provam que muitos dos planos dos urbanistas não vingaram.
Os coletivos que participaram do plantio no sábado - "Bora plantar", "Pomar BH", "Verdejar" e "Mata Urbana", entre tantos outros - querem retomar a ideia da cidade-jardim, atualizando-a com a mirada ambientalista que não existia na época da fundação da cidade.
Muitos dos voluntários desses coletivos nunca tinham plantado árvores até dois anos atrás. É um ponto de concórdia entre eles que a pandemia acionou o senso de urgência de muitas pessoas para com as questões ambientais.
O próprio surgimento da Pracinha de Comer se deu nesse contexto. Foi em fevereiro que as plantações de Altino e seus vizinhos saíram da clandestinidade e ganharam permissão da Prefeitura, que também se dispôs a abrir o registro de água para o uso no parque.
O mandato de Salabert sondava os parques da cidade para iniciar o pagamento de sua promessa, e quando souberam da agrofloresta no Barreiro contataram Rodrigo.
Alguns dos novos plantadores no sábado eram bastante jovens. Júlia Ramos, 9, estava acompanhada da mãe e do pai. Achou divertido meter a mão na terra e pretende voltar à praça quando seu pé de limão começar a dar frutos. "Os adultos ficam matando as plantas? Se continuar assim, vamos viver uma vida cada vez mais artificial, com as máquinas fazendo tudo no dia a dia", criticou a menina. A solução? "Mais árvores."
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