Caminhada liga pontos históricos assombrados de São Paulo
Um jovem bêbado, daqueles insistentes e invasivos, queria saber o porquê de uma meia dúzia de gente sóbria se reunir antes das 9 horas da manhã do último domingo (13) na Ladeira da Memória, próximo ao Anhangabaú, Centro de São Paulo. Justamente ali onde, naquele horário, devia haver somente notívagos como ele, que viram o dia clarear com a vista turva de álcool e aditivos mais. "O que é a fé, hein?", perguntava, cambaleando. "Isso aqui é macumba, é? Saravá, axé!"
Em pé, ao redor de uma espécie de pira enferrujada, as pessoas aguardavam o início da caminhada "O Que Te Assombra?", um tour gratuito por pontos da cidade que guardam histórias de assombrações, tragédias e paranormalidade. Ninguém deu muita bola para o rapaz, apesar de ele insistir na abordagem.
"Amigo, cadê a sua máscara?", interrompeu uma subinspetora da Guarda Municipal, escalada pela prefeitura para fazer escolta do grupo. "Tá no bolso. Eu tô na rua", respondeu o intruso, desistindo do caminho. "Tem que colocar, é lei [em São Paulo, um decreto estadual obriga o uso de máscara em ambiente fechados ou aberto, até 31 de março de 2021]", espantava a mulher, emendando uma lista longa de "fantasmas" reais a que todos estavam sujeitos: "Aqui no centro é um problema. Tem os bêbados, os ladrões, moradores de rua, os doidos...", avisava. "E tem as assombrações", finalizou a guarda. O grupo riu.
A origem de tudo
A caminhada temática foi organizada por um coletivo criador de podcast de mesmo nome, sobre assombrações. Em 2021, o grupo já havia feito algo semelhante em Campinas (SP), onde chegaram a reunir um público de 200 pessoas. Na capital paulista, por enquanto, foram apenas dois passeios, em fevereiro, pensados como parte da celebração do centenário Semana de Arte Moderna.
O roteirista e músico Thiago de Souza, monitor responsável por guiar os participantes e narrar as histórias ao longo do trajeto, explicava que o Vale do Anhangabaú foi escolhido como ponto de partida porque entrelaça, geograficamente, alguns desses mistérios. "Tudo está ligado, de alguma forma, ao Anhangabaú", conta.
Diz a lenda que Anhangá, um espírito protetor da natureza, revoltado com a matança de animais, resolveu se vingar dos caçadores matando-os. Assim, acrescenta Thiago, a região passou a ser palco de grandes mortes, guardando assombrações até hoje. "Por isso, esse é berço de criação mítica de São Paulo. Não há dúvida. E para a gente contar a história das assombrações da cidade, devemos começar daqui."
Em prédios e ruas
Por volta das 10h, o grupo saiu em uma itinerância pela cidade que duraria cerca de duas horas e meia. "Lá vem os crentes", reclamava um rapaz punk, deitado com os amigos na grama da praça Ramos de Azevedo, na parte de baixo do Viaduto do Chá.
Prédios famosos de São Paulo estão entre os pontos de parada do passeio. No primeiro deles, o Theatro Municipal, o monitor contava ao público a história de um fantasma que assombra os bastidores do mais luxuoso palco da cidade, acendendo e apagando a luz, batendo portas e fazendo barulhos. Na porta do Edifício Martinelli, do outro lado do Anhangabaú, são as assombrações de uma mulher loira e de uma criança que amedrontam o povo, dizia ele. Ambos foram assassinados no prédio, e, segundo o guia, vêm do além assombrar quem frequenta o local. "Tudo acontece entre o 27º e o 28º andar", frisava.
Casos paranormais ligados a eventos históricos pareciam convencer mais o público. É o caso das 13 almas de vítimas do Edifício Joelma, mortas no incêndio de 1974. "Essas pessoas estavam dentro do elevador, e morreram queimadas. Não deu para fazer o reconhecimento, mas nenhum parente reivindicou o corpo. Depois de enterradas, os coveiros ouviam gritos vindos das covas. Decidiram jogar água em cima de cada túmulo, e elas silenciaram. Hoje, viraram lugar de peregrinação. Muita gente faz pedido a elas."
Única herdeira da fortuna de uma tradicional família do interior paulista, Sebastiana de Melo Freire, conhecida como Dona Yayá, foi enclausurada numa mansão na Bela Vista, onde morreu, em 1961, aos 74 anos. "Diziam que ela era louca. Mas, na verdade, era uma jovem em crise porque não quiseram deixá-la administrar seu próprio dinheiro e sua vida", ponderava o monitor. Na casa, agora um espaço cultural da USP (Universidade de São Paulo), "os vizinhos escutam gritos e veem vultos", emendava.
Alguns metros depois, numa rua sem saída na Liberdade, em frente à escondida Igreja dos Aflitos, Thiago traçava um paralelo entre histórias de assombrações com temas atuais. Ele encontrou semelhanças nos assassinatos do congolês Moïse Kabagambe, espancado no Rio de Janeiro no mês passado, e do cabo Francisco das Chagas, o Chaguinhas, morto em 1821 a pauladas, depois de três tentativas de enforcamento. Nos dois crimes, o racismo foi um denominador comum.
A capela espremida no atual reduto de cultura oriental em São Paulo é um dos resquícios da ocupação original daquele lugar, ligada ao povo negro. Por trás da fachada maltratada da pequena igreja há um cemitério, onde foram enterradas pessoas escravizadas e condenadas à morte na forca no século 18.
"É importante resgatar essa história da Liberdade, uma história silenciada", comentava o professor de arquitetura Marcus Ignácio. O que aprendeu, confessava, passaria a usar na sala de aula."Esse é um bairro que a prefeitura tem interesse turístico, mas que a memória foi apagada."
Vida e morte
"Você já ouviu falar de uma música chamada 'Quero É Viver?'", perguntava a pedagoga Maria Luisa Bueno, 56, enquanto caminhava para o último ponto da visitação. "Essa música é de um compositor chamado Antonio Assombrações. Conheci recentemente, e acho que tem muito a ver com a vida. É uma ode à vida", contextualiza.
Moradora do bairro Santana, ela havia descoberto a caminhada do "O Que Te Assombra?" através de uma notícia na rádio, e resolveu se inscrever para participar. A caminhada, embora estivesse ligada à morte e aos assombros, despertou nela uma lembrança sobre a própria vida. "Vou viver, até quando eu não sei. Que me importa o que serei, quero é viver. Amanhã, espero sempre um amanhã", cantava baixinho, com uma voz doce, o trecho da música que conhecera havia poucos dias.
O itinerário já estava acabando, quando o grupo foi recebido pelo ex-coveiro do Cemitério da Consolação, Francivaldo Almeida Gomes, 55. Popó, como é conhecido, atualmente é guia do local e aproveitou para contar aos visitantes um caso de assombração que perambula por ali há décadas. "No dia do enterro de uma das filhas da família Matarazzo, um coveiro passou mal e morreu na hora. Desde então, ele anda por aqui", amedrontava.
Com um mapa de papel nas mãos, Thiago Santos seguiu conduzindo o público pelas ruas estreitas onde estão catacumbas de personalidades e políticos das famílias mais abastadas de São Paulo. "Vamos combinar de ver juntos alguns, e, quem quiser, pode seguir para ver outros", orientava.
Naquele 13 de fevereiro, dia de abertura da centenária Semana de 22, o monitor decidiu que o primeiro mausoléu a ser visto seria o da pintora Tarsila do Amaral, morta em 1973 — e uma das artistas que fizeram parte do movimento modernista.
"Aqui, achei", dizia um rapaz, enquanto todos se mobilizavam na procura. Estava lá, quase despercebida entre monumentais construções — algumas, adornadas de esculturas — a caixa de granito marrom na rua 29, sem qualquer decoração ou pompa, com epitáfio gravado em uma placa de bronze.
"Muito minimalista para uma pessoa como ela", lastimava, um tanto frustrada, outra moça. Dali, todos seguiram à procura de outros túmulos.
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