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'Famosinhos da grade': roqueiros fervorosos acampam na fila do show do Kiss

Fãs acampam na fila para assistir Kiss no Allianz Parque - Marie Declercq/UOL
Fãs acampam na fila para assistir Kiss no Allianz Parque
Imagem: Marie Declercq/UOL

Marie Declercq

Do TAB, em São Paulo

30/04/2022 04h01

"Moça, as barracas pro show do Justin Bieber eu não vi, mas tem um pessoal acampado pra ver Kiss", disse um dos funcionários do Allianz Parque, debaixo de uma fina garoa, enquanto botava ordem na fila de ingressos para o show do Coldplay. Separados por uma grade, lá estava um pequeno grupo encostado na parede próxima à bilheteria. Todos estavam ali para ver um dos shows da última turnê da banda de hard rock ativa desde os anos 1970 — que aconteceria só no dia seguinte, sábado (30), às 21h.

No começo da semana, fotos de barracas foram postadas nas redes sociais, anunciando que fãs de Justin Bieber, conhecidos como "beliebers", já estavam acampados perto de um dos portões do Allianz Parque para o show do ídolo nos dias 14 e 15 de setembro. São quase cinco meses de antecedência.

Antes, os beliebers acamparam no Memorial da América Latina para garantir os ingressos na bilheteria. A venda online acabou em minutos.

No entanto, não havia nenhum sinal das barracas dos beliebers perto do Allianz na sexta-feira. Uma das fãs, pelo Twitter, avisou que as barracas foram retiradas por causa do show do Kiss e por causa da venda dos ingressos do Coldplay. "A partir de segunda-feira iremos montar novamente", esclareceu a jovem, que está fazendo revezamento com as colegas para saírem para trabalhar ou passarem em casa.

Kit de sobrevivência

"Tudo 'nutella'", resumiu Angélica Maria, 36, recepcionista e estudante da zona leste de São Paulo, sobre o comprometimento dos fãs de Justin Bieber que não estavam presentes na fila.

Metaleira com orgulho, usando uma camiseta do Judas Priest, Angel (como gosta de ser chamada) disse que "faz grade" desde 2004, quando acampou na fila para assistir a um show do Iron Maiden. Hoje, 24 horas antes da apresentação do Kiss, não esconde a euforia de estar entre amigos.

"Fazer grade" é a principal missão de quem dorme em filas de shows — seja metaleiros fumantes ou beliebers menores de idade. Basicamente, consiste em ser o primeiro a pisar na pista e correr até a grade para lá ficar colado do começo ao fim da apresentação. No Rock in Rio, não basta apenas acampar na fila: é preciso correr para pegar lugar.

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Mariana de Barros Noé ficou mais de 24 horas na fila do Allianz Parque para assistir à apresentação do Kiss
Imagem: Marie Declercq/UOL

"No Rock in Rio, quem corre mais é quem se dá bem", resumiu Mariana de Barros Noé, 31. "Assim que cheguei na grade, deitei no chão e fiquei guardando lugar para meus amigos que estavam vindo", contou a professora de música de Santo André (SP).

Noé chegou na noite anterior e conta com alguns amigos para fazer revezamento na fila, assim ela consegue fazer intervalos em casa. Acampando nas filas desde 2012, a professora aprendeu a levar os itens certos para manejar os perrengues.

Além da barraca espaçosa com um colchão inflável, Noé trouxe também uma muda de roupa para o show, maquiagem, água e lencinhos umedecidos. O xixi é resolvido no supermercado próximo ao estádio. "Às vezes conseguimos até tomar um banho de torneira no banheiro", afirmou.

'Ficar no sereno'

Entre sacolas e barracas desmontadas, um homem dormia o sono do justos, usando o chão de cimento como colchão e a mochila como travesseiro. Quando acordou, explicou a fonte de tamanho cansaço: virou a noite em um ônibus saindo da cidade de Sabará (MG) até São Paulo. Foram nove horas ouvindo roncos estrondosos do passageiro na poltrona ao lado, o que o impediu de dormir no trajeto.

Com forte sotaque mineiro, apresentou-se como Doidinho, apenas Doidinho. "Até minha mãe me chama assim, deixa o nome civil pra polícia (risos)", disse o analista de sistemas de 35 anos.

Doidinho acampa nas filas desde os 16 anos, idade em que viu o show da banda de heavy metal Edguy no começo dos anos 2000. "Venho para acampar e ficar no sereno", explicou. "E venho para conhecer gente, trocar uma ideia. Roqueiro é muito solidário, todo mundo se ajuda."

A vantagem de anos vendo show no gargarejo são os mimos. Sabe quando os membros das bandas jogam palhetas, banquetas, toalhas suadas etc? Quem pega é quem está na frente. Isso quando os próprios músicos não estendem esses objetos a quem está colado na grade.

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O mineiro Doidinho acampa em filas de shows desde os anos 2000, quando ainda era adolescente
Imagem: Marie Declercq/UOL

Doidinho chegou a ter mais de 300 itens coletados em shows. Passou tudo pra frente. "A emoção é pegar na hora, que nem a vez em que eu consegui uma palheta no show do Metallica, bem na hora que eles estavam tocando 'One', em 2011", relembrou.

Depois de alguns anos, desapegou. No Rock In Rio de 2019, depois de pegar palheta do Helloween e do Sepultura, deu de presente a baqueta que conseguiu do baterista Nicko McBrain, do Iron Maiden, para uma garota de 14 anos que estava do seu lado.

Atualmente, mais velho de guerra nas filas, compareceu à fila do Allianz no "modo rolezinho": mochila com uma muda de roupa e só. "O mais importante é cartão de crédito, ingresso e celular", resumiu.

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Tamires e Matheus não são fãs de Kiss, mas ficaram seis horas na fila para garantir o lugar do cunhado de Tamires
Imagem: Marie Declercq/UOL

Organização e camaradagem

É importante dizer que roqueiro não é bagunça. Há um sistema entre os grupos para garantir que ninguém fure a fila na frente de quem chegou dias antes. O jeito é fazer uma lista de nomes, registrando a ordem de chegada e evitando que alguém do acampamento traga gente de fora para furar a fila. "Tem que organizar, senão dá treta", explicou Thuany de Oliveira, 32, técnica de enfermagem.

Além da organização, existem os revezamentos. É o caso do casal Tamires Ippolito, 19, estudante de ciências mortuárias, e seu namorado Matheus Freire, 18, desenhista. Eles não estão ali para ver o show do Kiss, mas vão passar seis horas na frente do estádio para guardar lugar para o cunhado de Tamires.

"Eu ficaria na fila para ver The Pretty Reckless, Harry Styles e o Louie Tomlinson", afirmou Ippolito. Já Freire é mais econômico. "Acho que dormiria na fila para ver o Bruno Mars." O casal era um dos poucos no acampamento abaixo de 30 anos.

Todos os fãs do Kiss tinham três coisas em comum: parecem trabalhar muito ("tem que trabalhar pra bancar essa vida de acampamento", disse Doidinho), são relativamente intolerantes com estilos musicais mais pop e têm acima de 30 anos. "A gente parece malvado, mas somos do bem", afirmou Angel.

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Luana Ferreira, 37, bate cartão em praticamente todos os shows grandes de rock e metal no Brasil
Imagem: Marie Declercq/UOL

Famosinhos da grade

Para mostrar as vantagens de se acampar na fila, Mariana de Barros Nóe estende a tela do celular e mostra as clássicas fotos de festivais brasileiros, aquelas que todos estamos acostumados de ver nas coberturas da imprensa: a silhueta do músico tocando perante uma plateia formada por milhares de pessoas. "Mas olha só" — Noé dá um zoom com os dedos e lá está ela, colada na grade, assistindo David Coverdale se apresentando.

Ela mostra outra foto de show e lá está ela de novo, na primeira fileira. Na terceira foto, hesita. "Peraí que essa banda é ruim, não fui pra assistir", afirmou, referindo-se ao conjunto formado pelos executivos da Prevent Senior.

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Mariana mostra as fotos em que aparece na primeira fileira de shows de grande porte
Imagem: Marie Declercq/UOL
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Imagem: Marie Declercq/UOL

Pela onipresença na primeira fileira, grupos de roqueiros que acampam nas filas ficaram conhecidos como "Famosinhos da Grade". O termo inicialmente foi dito de forma jocosa em uma comunidade do Facebook, mas logo todos abraçaram o apelido com orgulho.

Luana Ferreira, 37, analista fiscal, foi uma das "famosinhas" mais comentadas do grupo. Com o cabelo longo, tingido de vermelho e tatuagens na pele, Ferreira diz que o Kiss nem é a sua banda favorita, mas todo o rolê da fila faz valer a pena.

"Você tem que entender que o show não começa quando a banda sobe no palco. O show começa na compra dos ingressos", resumiu. Ainda assim, não passa mais de três dias acampando. "A gente é doido, mas nem tanto", explicou. "Eu trabalho, impossível fazer isso."

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Paulo Vinicius vai assistir o show da banda de New York pela primeira vez
Imagem: Marie Declercq/UOL

Ao seu lado, Paulo Vinícius concordava com a amiga freneticamente. O técnico de enfermagem de 37 anos enfrentou uma jornada de 15 horas acampando no Estádio do Morumbi para garantir o ingresso do Iron Maiden e logo correu para o Allianz para se preparar para ver seu primeiro show do Kiss, essa sim, sua banda favorita da vida.

"Não dá pra explicar a sensação de ser fã e gostar de fazer essas coisas. Eu costumo falar que é como ser corintiano fanático. É um vício, mas um vício do bem."

Nem quando a garoa apertou os roqueiros fizeram menção de sair do lugar. A paixão pelo rock é forte demais para se deixar abalar pelas intempéries. Na despedida, as garotas do grupo avisaram. "Volta às 20h, vai ter churrasco e cerveja aqui na fila."