'Que Cristo tenha piedade de nós!': eleições racham também o mundo espírita
Na manhã do dia 2 de julho, quando Jair Bolsonaro desembarcou em Salvador para uma série de motociatas em cidades baianas, um encontro com aquele que é apontado como o maior médium depois de Chico Xavier causou um racha na comunidade espírita.
Aos 95 anos de idade, o baiano Divaldo Pereira Franco se deslocou até a Base Aérea da capital baiana para participar, entre 10h e 11h, de uma cerimônia na qual foi homenageado com a Medalha da Ordem de Rio Branco — a mais alta honraria da chancelaria brasileira. Na ocasião, foi fotografado ao lado do atual presidente da República.
Reconhecido por sua obra social e por uma vasta produção literária psicografada, Divaldo já se mostrara sintonizado com as pautas de costumes defendidas pelo bolsonarismo. A sinalização mais explícita de adesão, no entanto, provocou mal-estar em parte do mundo espírita. E as discussões sobre política, antes restritas às conversas informais entre adeptos da doutrina, passaram a envolver seus grandes líderes.
"Alguns parecem não ter entendido o que é a Lei de Amor, Justiça e Caridade de 'O Livro dos Espíritos', embora possam recitá-la de cor", criticou Rui Maia Diamantino, presidente do Nefa (Núcleo Espírita Francisco de Assis), pela internet. "Aceitar honrarias já é contrário à ética cristã-espírita. Com a proveniência luciférica de tal honraria, é algo inadmissível! Que Cristo tenha piedade de nós!".
'Médium decaído'
Com 40 anos dedicados ao espiritismo, Diamantino é doutor em psicologia e tem um canal no YouTube onde faz análises político-psicológicas da situação do país. Autodeclarado de esquerda, ele afirma que sua crítica não se deve ao fato de um líder espírita ter determinada inclinação política, mas que assuma posicionamentos que vão de encontro aos princípios cristãos da religião.
"Quando alguém que é considerado um prócer do espiritismo aparece ao lado do presidente de um governo com características nazi-fascistas, não tenho como não reagir", justifica. Para ele, a suposta adesão de Divaldo não é fato isolado. "O mais preocupante é que tem muita gente dentro do movimento que se coaduna com tal postura. Que o preconceito, a xenofobia, o racismo, a homofobia, a misoginia e toda forma de desprezo pela vida humana se espalhe pelo espiritismo e ganhe apoio de seus líderes é anticristão."
Para o também médium José Medrado, fundador do centro espírita Cidade da Luz, no bairro de Pituaçu, em Salvador, dissidências nos momentos políticos de grande efervescência são comuns na doutrina. "Em verdade, esse é um racha que sempre existiu. Estava latente, mas vem desde a época da ditadura", afirma ele, um crítico antigo da falta de posicionamento de adeptos da doutrina diante da violência e da repressão depois do golpe de 1964.
"No momento em que Divaldo toma essa postura, há uma ebulição [no meio espírita]. Embora ele e as federações espíritas sempre tenham tido uma visão conservadora", afirma Medrado, para quem "o Espiritismo não tem porta-voz oficial". Após a cerimônia na Base Aérea de Salvador, Ana Claudia Laurindo, colunista do site Espíritas à Esquerda, chamou Divaldo de "médium decaído".
'Homenagem à Doutrina'
Em um pronunciamento na Mansão do Caminho, Divaldo procurou se justificar. Afirmou que a primeira comunicação do Itamaraty para que lhe fosse entregue a comenda se dera ainda no ano passado, quando não pôde comparecer ao evento em Brasília. E que teria respondido não ter interesse em receber a honraria. Com a vinda de Bolsonaro a Salvador e o novo contato do cerimonial da presidência, o médium disse ter "meditado muito" antes de, finalmente, aceitar o convite.
A fala não acalmou os ânimos. E, no dia 2 de setembro, a Mansão do Caminho divulgou uma nota argumentando que, durante a entrega da medalha, Divaldo Franco transferira a homenagem à Doutrina Espírita. Nos mais de 1,6 mil comentários da postagem no Instagram, espíritas divergiram e até bateram boca.
"Será que quem te caluniou tem alguma obra parecida com a que construiu?", defendeu uma seguidora de Divaldo. "Comenda suja de sangue", rebateu outro espírita. "Quer dizer que se Adolf Hitler decide condecorar Divaldo ele receberia o ditador? Decepcionante!", perguntou outro.
O TAB solicitou entrevista a Divaldo Franco, mas a assessoria de comunicação da Mansão do Caminho informou que o médium se encontra debilitado, recuperando-se das consequências da covid-19.
Defensores do médium baiano argumentam que a tentativa de vinculá-lo a candidatos, partidos ou ideologias é "demonstração de desconhecimento ou má fé" — como disse Marcel Mariano, membro da FEEB (Federação Espírita do Estado da Bahia) e do Centro Espírita Caminho da Redenção. "Para alguns adversários gratuitos, isso [a medalha e a foto] teria sido um gesto de apoio explícito ao candidato", questiona Mariano, para quem, aos 95, Divaldo está dispensado de votar e não tem tempo para questões político-ideológicas. "São discussões estéreis e inúteis." Para o religioso, a entrega da medalha foi o reconhecimento do Ministério das Relações Exteriores a uma trajetória dedicada a "iluminar vidas".
Contra a 'ideologia de gênero'
Os críticos de Divaldo Franco apontam outros indícios de alinhamento político com o bolsonarismo. E citam palestras, análises e exposições de Divaldo na internet em que o médium alerta sobre a ameaça comunista no mundo, se coloca contrário ao que chama de "ideologia de gênero" e trata a homossexualidade como "desvio de comportamento".
"O atual presidente representava uma esperança, apesar de eu não aprovar seus discursos a favor da tortura", posicionou-se Divaldo em 2019, numa entrevista à revista Veja São Paulo.
Para José Medrado, "os espíritas têm muitas travas elitistas". Ele cita passagens dos livros de Allan Kardec, codificador da doutrina, nas quais o progresso e o respeito à ciência se colocam como pilares. "A pergunta 573 de o Livro do Espíritos é sobre 'qual a missão dos encarnados'. Os espíritos respondem: 'instruir e ajudar ao progresso'. O livro da Gênese diz que o espiritismo está a par com o progresso. Ou seja, o espiritismo é, na sua essência, progressista. Alguns espíritas esquecem disso", argumenta.
Na visão de Diamantino, questões relacionadas à sexualidade e ao gênero também são vistas como um tabu na doutrina, apesar de o próprio Livro dos Espíritos afirmar que os espíritos não têm sexo. "Essas posições da heteronormatividade não têm nada mais a ver com nossos tempos. O respeito integral a cada um nas suas identidades de gênero é urgente", argumenta.
Outra questão frequentemente levantada diz respeito ao chamado 'racismo espiritual'. Médiuns kardecistas foram acusados de discriminar ou menosprezar entidades de matriz africana ou indígenas, como pretos velhos e caboclos, em seus centros. "Historicamente, esse foi inclusive um fator determinante para o surgimento da Umbanda. Ela nasceu dessa dissidência provocada pela discriminação espírita", explica Medrado.
Espíritos patriotas
Poucos dias antes do fatídico 7 de Setembro em que Jair Bolsonaro convocou seus apoiadores para os eventos de comemoração do bicentenário da Independência, o mundo espírita se viu envolvido em outra polêmica.
Uma mensagem em forma de carta — supostamente psicografada por uma médium de Uberaba (MG) do espírito do médico e político Bezerra de Menezes — circulou pelas redes sociais. Nela, Bezerra convocava os brasileiros para lutarem pela liberdade em um dia histórico, quando o Brasil "receberá das mãos de Jesus a nova Independência, que libertará o país das amarras dos traidores da pátria e da bandeira nacional".
"Essa carta tem claro tom nacionalista, ao gosto do atual presidente", rebate Rui Diamantino. "Um espírito superior jamais escreveria algo nesse nível." "Eu não acreditei na veracidade de nenhuma dessas mensagens do 7 de Setembro que seriam psicografadas por espíritos", afirma José Medrado.
Em nota, a vice-presidente da Federação Espírita Brasileira, Marta Antunes, diz que as afirmações de que a doutrina espírita estaria mais ligada a uma visão progressista da política "resultam de interpretações pessoais, não institucionais". E que a comenda concedida ao médium Divaldo Franco "é reconhecida homenagem a um cidadão do bem, que dedicou a sua vida em auxiliar pessoas desfavorecidas".
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