Multidão visita túmulo da 'menina sem nome', considerada santa, no Recife

Foi debaixo de sol forte que a dona de casa Roseli Ribeiro, 54, e a sobrinha, a agente socioeducativa Mônica Gonçalves, 54, chegaram ao Cemitério de Santo Amaro levando pipocas, doces, balas e bonecas. Elas não foram as únicas nesse Dia de Finados: centenas de pessoas repetiram os gestos, com velas e orações de agradecimento, além de coroas de flores, cartas e um bolo de três andares repleto de pirulitos. Entretanto, a homenageada não é exatamente conhecida de ninguém que a visita há décadas. Na verdade, nunca se soube a identidade do corpo feminino enterrado no dia 2 de julho de 1970.
Jaz ali uma criança que, por volta dos oito anos, foi encontrada morta com as mãos amarradas para trás e a cabeça voltada para a areia da Praia do Pina, na zona sul do Recife, na manhã de 23 de junho de 1970. Logo após o surgimento do corpo, levantou-se a possibilidade de que ela poderia ter sido estuprada e assassinada, mas o exame do Instituto de Medicina Legal constatou que a menina não sofreu abuso sexual. Passados dez dias, nenhum parente ou conhecido apareceu para reclamar o corpo e ela foi enterrada como indigente. Morreu uma menina parda, de cabelos castanhos crespos e corpo franzino, e "nasceu" a lendária "menina sem nome".
O enterro da menina foi marcado por grande comoção, pois o assassinato havia sido notícia na imprensa pernambucana por vários dias. Desde então, as pessoas passaram a visitar o túmulo, levar doces, brinquedos e acender velas. Muita gente diz que teve graça alcançada após pedir ajuda à menina sem nome. "Nós sempre visitamos [o túmulo] e trazemos muitas coisas para deixar aqui como forma de agradecimento. Pedi e ela nos ajudou no nascimento do meu neto, no emprego dos meus filhos e na saúde para toda família", diz Roseli, após uma oração.
As visitas ao túmulo da menina acontecem durante todo o ano, mas no Dia das Crianças e no Dia de Finados a quantidade de visitantes é imensa. Os presentes e doces deixados pelos visitantes são recolhidos e encaminhados para instituições que cuidam de crianças em situação de vulnerabilidade.
A história da morte da menina comove até os dias atuais. Um homem foi preso logo após a morte da menina. Ele confessou o crime, mas depois negou. Foi assassinado no presídio enquanto esperava julgamento.
"Foi muito triste. A bichinha era muito novinha e fizeram isso com ela. Trabalho aqui como zeladora de covas para as pessoas que me contratam, mas faço questão de vir limpar o lugarzinho dela", conta Maria do Socorro Panta, 64.
Entre os mais de 20 mil túmulos do Cemitério de Santo Amaro, maior necrópole pública do Recife, com 145 mil m², nenhum recebe mais visitas que o da menina — ali foram sepultadas personalidades como o cantor Chico Science e os ex-governadores Miguel Arraes e Eduardo Campos.
À menina sem nome são endereçadas cartas e pedaços de papel com pedidos, pois muitos pernambucanos a consideram santa.
"Estava com um problema para resolver e não conseguia de jeito nenhum. Depois que fiz o pedido com muita fé, ela me ajudou e deu tudo certo", relata a pensionista Maria das Dores, 68, saiu do bairro de Marcos Freire, em Jaboatão dos Guararapes, cidade vizinha ao Recife, para levar presentes e doces ao túmulo.
'Acendo velas para a alma dela'
Já era finalzinho da tarde da segunda-feira (31) quando o administrador Ronaldo Viana, 50, se aproximou do túmulo da menina sem nome. Carregando velas, parou ali para pedir a recuperação da mãe. "Ela teve um câncer, em 2018. Naquele ano, Deus e a menina sem nome curaram minha mãe."
O câncer voltou, e Ronaldo voltou para fazer suas orações. "A menina sem nome ajuda muita gente. Podemos observar isso pelas placas de agradecimento que deixam para ela, além de todos os presentes que as pessoas trazem também", ressalta.
Na terça (1), véspera do Dia de Finados, a assistente social Albaniza Soares, 59, e as filhas levaram pirulitos e acenderam velas para a menina. Moradoras de Fernando de Noronha, elas estão de férias no Recife.
"Essa não é primeira vez que a gente vem até aqui. Já fiz pedidos a ela que foram atendidos, e estou aqui para agradecer e pedir novamente. Peço pela saúde do meu esposo, dos meus filhos e dos meus netos. Pedi a ela até que ajudasse um dos meus netos a gostar de estudar matemática, pois ele tem dificuldades apenas nessa disciplina", conta Albaniza.
Moradora de Brasília Teimosa, bairro vizinho ao que foi encontrado o corpo da menina, a cabeleireira Ingrid Moraes, 40, leva doces ao cemitério todo ano. Ela também encheu balões de festa para decorar a tenda que protege a sepultura do sol. "A história dela é muito triste, foi uma crueldade o que fizeram com ela. Faço meus pedidos, agradeço e também acendo velas para a alma dela."
Construído no século 19 e originalmente chamado Cemitério Senhor Bom Jesus da Redenção de Santo Amaro das Salinas, o endereço abriga uma capela e diversos túmulos exuberantes, sempre bem cuidados.
Os primeiros sepultamentos realizados no cemitério, na região central do Recife, eram de vítimas do surto de febre amarela que devastou Pernambuco. Naquela época, os enterros ainda eram realizados em igrejas, porém os mortos de febre amarela foram enterrados todos em Santo Amaro.
Quase dois séculos depois, o cemitério voltou a receber muitas vítimas de uma doença devastadora, a covid-19. Mais de 22 mil pernambucanos morreram em decorrência do coronavírus no estado, muitos foram sepultados no Cemitério de Santo Amaro — a Emlurb (Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana do Recife) construiu 1.064 gavetas e abriu aproximadamente 250 covas para vítimas da covid-19.
Segundo a Emlurb, cerca 18 mil pessoas visitam o cemitério por mês. Em novembro, centenas vão especialmente ver o túmulo da menina sem nome.
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