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Na ocupação Izidora, ranço da camisa da CBF marca a estreia da seleção

Na oficina de Raony (à esq. de Gabriel Jesus jogando na TV) o verde e amarelo é de todos -- mas ninguém quer vestir - Julia Lanari/UOL
Na oficina de Raony (à esq. de Gabriel Jesus jogando na TV) o verde e amarelo é de todos -- mas ninguém quer vestir
Imagem: Julia Lanari/UOL

Leandro Aguiar

Colaboração para o TAB, de Belo Horizonte

25/11/2022 12h48

Dia da estreia da Seleção na Copa do Qatar. No caminho até a entrada da ocupação Izidora, na divisa de Belo Horizonte com Santa Luzia (MG), multiplicavam-se os bares decorados com as tradicionais bandeirinhas verdes e amarelas. Terminado o asfalto, acaba também a corrida de táxi: "tem muita lama aí, moço", justificou o motorista. Surgem então as primeiras casas da Izidora, uma das maiores ocupações urbanas da América Latina, onde moram mais de 30 mil pessoas.

Entre os postes de iluminação pública recém-instalados, nenhuma bandeirola auriverde podia ser avistada. Tampouco havia, nos muros das casas e lotes, representações do "canarinho pistola" ou de qualquer mascote. "Você não tá vendo o clima de Copa?", ironizou a sorridente Charlene Egídio, 41, uma das lideranças da Rosa Leão, que, junto de outras quatro ocupações, compõem a Izidora.

Ainda em fase de regularização da posse dos terrenos, e sem contar com saneamento e coleta de lixo, Charlene explica que pintar a Izidora nas cores nacionais não é uma prioridade. "O povo tá passando fome e a Copa é a última das preocupações para nós. Obviamente, temos aquele sentimento de 'olha, o Brasil vai jogar!', mas, em meio às nossas lutas, o futebol perde a relevância", disse.
Das janelas de muitas residências, porém, emanava a conhecida voz de Galvão Bueno. E em frente ao Centro de Poder Popular Marielle Franco, onde acontecem reuniões periódicas dos moradores e variadas oficinas para as crianças, o Bar do Negão acendia sua churrasqueira para alimentar os torcedores do hexa.

Charlene Egídio, uma das lideranças da ocupação Izidora: 'com tanta fome e miséria, não dá para pensar em jogo' - Julia Lanari/UOL - Julia Lanari/UOL
Charlene Egídio, uma das lideranças da ocupação Izidora: 'com tanta fome e miséria, não dá para pensar em jogo'
Imagem: Julia Lanari/UOL

A Copa é um trauma

Durante a Copa do Mundo de 2014, quando a seleção brasileira foi nocauteada pela Alemanha em pleno estádio do Mineirão, a 12 km da Izidora, o Bar do Negão foi palco de grandes emoções. Muitas delas são traumáticas e, mais uma vez, nada tiveram que ver com o que se passava dentro das quatro linhas dos campos de futebol.

A região onde fica a Rosa Leão passou a ser ocupada em 2013, em meio a escalada da especulação imobiliária da época. Um dos primeiros a chegar foi Célio Luiz, 38, o dono do Bar do Negão. Como todos os novos moradores que dia a dia aportavam ali, ele já não podia pagar os aluguéis praticados na Grande BH. "Ocupar uma região ociosa, que não cumpria sua função social, era a minha única saída", contou.

Em seus primeiros anos, os moradores tiveram que resistir a uma forte pressão pública e privada para deixar o local, que atingiu seu auge justamente durante a Copa de 2014. Foi nessa época que uma militante pelo direito à moradia foi assassinada na região. Rosa Leão era o seu nome.

Nas ruas da ocupação Izidora, nada de decoração verde e amarela - Julia Lanari/UOL - Julia Lanari/UOL
Nas ruas da ocupação Izidora, nada de decoração verde e amarela
Imagem: Julia Lanari/UOL

Abatidos, mas sem alternativas, os ocupantes decidiram ficar mesmo assim. Enquanto transcorria o evento da Fifa, vez ou outra soava uma sirene na Izidora - sinal de que a polícia cercava a região. Era corriqueiro que helicópteros sobrevoassem o local, atirando panfletos que exigiam a saída imediata dos moradores, sob a ameaça de uso da força.

Célio colocou a cozinha do bar a serviço da comunidade e o estabelecimento funcionou como uma espécie de QG da resistência. De lá, todos se aprontavam para os protestos na Cidade Administrativa, sede do governo de Minas, e também recolhiam doações de alimentos e organizavam as barricadas para impedir o avanço da PM.

O conflito rapidamente cresceu, chamando a atenção de movimentos sociais, que passaram a auxiliar os moradores. Em 2016, o Tribunal Internacional de Despejos, ligado à ONU, apontou a Izidora como um dos conflitos por moradia mais importantes do planeta. No mesmo ano, Lula (PT) esteve na região, ouvindo as demandas dos habitantes.

Nesse processo, muitos deles, como Charlene, foram se politizando. "Os poderosos não têm um plano habitacional decente para a população carente, que se vê obrigada a escolher entre pagar aluguel e comprar comida. Essa é a nossa forma de pressionar o poder público a garantir o direito à habitação", disse ela.

Bernardo Pereira, 5, era o fã solitário de Neymar na ocupação Izidora - Julia Lanari/UOL - Julia Lanari/UOL
Bernardo Pereira, 5, era o fã solitário de Neymar na ocupação Izidora
Imagem: Julia Lanari/UOL

Ranço da amarelinha

Já no apito inicial de Brasil x Sérvia, não se viam tantas emoções no Bar do Negão, fossem elas boas ou ruins. Só uns gatos pingados apareceram para assistir ao jogo - entre eles, apenas o pedreiro Matheus Almeida, 28, trajava a camisa da seleção. "Mas eu não sou bolsonarista!", foi logo explicando. O rapaz apostava num placar elástico: 5 a 1 para a equipe comandada por Tite.

Ao início do jogo, um longínquo foguete se fez ouvir, e mais um torcedor uniformizado se uniu a Matheus. Era o pequeno Bernardo Pereira, 5, que vinha acompanhado da mãe, Josiane Pereira, 32. Segundo ela, o uso de trajes auriverdes foi exigência da escola — e algumas crianças, cujos pais não puderam arcar com a vestimenta, optaram por faltar à aula.

De toda forma, Bernardo estava animado, e portava a única corneta do bar, que acionava sem parar. Aparentemente, era ele também o único fã de Neymar ali. Sempre que o camisa 10 pegava na bola, algum dos presentes exclamava, em referência ao posicionamento não tático, mas político, do jogador: "esse é 22, sai fora!"

"Tomei raiva da camisa do Brasil nos últimos anos", confessa Charlene. Ela discorda de análises que apontam para uma possível união dos brasileiros em torno da taça. "Bolsonaro conseguiu transformar a nossa bandeira e as nossas cores numa coisa tão ruim, que significa a destruição de tantas vidas e direitos sociais, que perdemos até a empolgação de enfeitar a rua", diz.

Cozinha do Bar do Negão foi centro de resistência durante a Copa de 2014, 'mas esse ano tá devagar', diz Célio, o dono - Julia Lanari/UOL - Julia Lanari/UOL
Cozinha do Bar do Negão foi centro de resistência durante a Copa de 2014, 'mas esse ano tá devagar', diz Célio, o dono
Imagem: Julia Lanari/UOL

A professora aposentada Rosemere Almeida, 54, porém, pretende dar início ao resgate dos símbolos brasileiros. "Lôra", como é conhecida na ocupação, só assiste a partidas de futebol a cada quatro anos, quando o Brasil entra em campo. Em sua página nas redes sociais, ela publicou um inusitado pedido aos bolsonaristas de seu círculo: quer uma bandeira do Brasil emprestada para torcer pela seleção. "Depois eu devolvo!", garante. Ela ainda não conseguiu o empréstimo.

Na oficina de Raony de Souza, 38, o resgate já aconteceu. Ele recebeu numerosos amigos, que vibraram ante o gol antológico do atacante Richarlison. "O Brasil é isso aí, tem que representar. E ele é Lula, sabia?", disse à reportagem.

Mas Raony faz questão de reforçar que a camisa do Brasil não tem dono. Ou, melhor, que ela é um bem compartilhado por todos os brasileiros. "A camisa é de todo mundo. Eles usaram ela pra fazer política, mas a bandeira e o verde e amarelo são nossos. Pra cima deles, Brasil!"