Uma avenida separa o luxo na Farofa da Gkay do bairro Moura Brasil
Fim de tarde no morro do Oitão Preto, em Fortaleza. Na parte de baixo, atravessando a Avenida Leste Oeste, o hotel de luxo Marina Park oferece, de um lado, uma vista privilegiada do mar. Para o outro evita-se olhar.
Cerca de cinco mil famílias vivem na comunidade, que já foi bem maior. O bairro centenário (Moura Brasil é seu outro nome) é reduto de gente simples, por muito tempo estigmatizado como local com usuários de drogas e dominado por facções. Antes da construção da larga avenida que separa a favela do hotel e dos espigões, na década de 1970, o mar era mais distante. Havia mais casas.
Não é raro encontrar saudosismo entre os moradores antigos, que tinham livre acesso à praia. Com a chegada do empreendimento cinco estrelas, as casas foram derrubadas. O líder comunitário Pedro André Nascimento Monteiro, 43, nascido e criado ali, lembra que não houve muita negociação. Nem sabe se houve indenização a quem teve de sair.
Maria Lúcia Viana, 70, é uma das moradoras mais longevas do Oitão Preto. Nascida em Fortaleza, chegou ao bairro com a família quando tinha 5 anos de vida. "Vi até Maria Fumaça", lembra-se. Aposentada, sem filhos, ela faz pequenos consertos em roupa para complementar a renda. A casa tem poucos cômodos e tem detalhes de suas paixões: a bandeira do Brasil sobre a cadeira de balanço mostra o amor pela seleção brasileira. Maria Lúcia não perde nenhum jogo da Copa do Mundo.
Quando era jovem, até jogava no campinho perto de casa, à beira-mar. Vestia orgulhosa a camisa do Flamengo, seu time do coração. "Era ótimo. Tinha casas ali [aponta para o local onde está o hotel], tinha quermesse, tinha dois clubes pra gente dançar", conta. Ela também lembra de como era gostoso andar pelas ruas do bairro sem sentir medo. "Depois das 21h já passo bem contrariada porque a gente não sabe. Uns conhecem e outros não conhecem a gente", afirma, fazendo um gesto como se andasse encolhendo o corpo.
Segundo Maria Lúcia, "há uns dez anos começou esse negócio de o pessoal querer ser dono do bairro. Aí é uma coisa que enraizou, é uma coisa daninha. E a gente não pode fazer nada". Com a chegada de grupos criminosos à comunidade, logo veio uma onda de assaltos, hoje já mais contida.
Ao longe, os sons anunciavam que a festa estava apenas começando. Era o segundo dia da Farofa da Gkay, influenciadora digital que criou o evento como forma de comemorar seu aniversário. A festa aconteceu no hotel pelo segundo ano consecutivo, atraindo marcas patrocinadoras e investimentos que ultrapassam os R$ 8 milhões.
Os passos apressados da trabalhadora autônoma Jaqueline Rosângela Freire, 40, acompanham o filho e o sobrinho, de sete e oito anos, respectivamente. Ela confessa não ter muita ideia de quem sejam esses tais artistas, mas as crianças conhecem bem e ela vai até lá para acompanhar e tentar, com sorte, alguma foto com os famosos.
"Eu só conheço a Gkay. Sou louca pra bater uma foto com ela. Os meninos é que conhecem os influenciadores. Desde ontem eles aperreiam pra ver", diz ela.
O primeiro dia da festa não foi de muita sorte para eles. Não conseguiram ver nenhum famoso de perto. Ela, as crianças e outros curiosos se aglomeram nas grades do hotel em um dos poucos espaços que não foram fechados por tapumes.
A foto, quando eles conseguem atrair a atenção de alguém da festa, é feita através das grades mesmo. Jaqueline sonha em poder um dia vender seus lanches para os convidados da Farofa e sentir pelo menos um pouco de alívio nas contas ao final do mês. "Seria tudo de bom."
Espera na grade
As pessoas que esperam nas grades começam a chegar ao entardecer e ficam até a madrugada, ou enquanto houver energia e disposição para a espera.
Pedro André lembra que, na festa do ano passado, em uma das noites de shows, a anfitriã saiu para falar com as pessoas que aguardavam do lado de fora. Ofereceu lanche e fez fotos. Mas ele acredita que a influenciadora não tem ideia de quem são as pessoas que moram logo ali em frente. O líder comunitário diz acreditar que se, ela soubesse, faria algo por eles.
É comum que artistas hospedados no hotel façam alguma ação na comunidade. Cantores como Wesley Safadão e Solange Almeida já doaram alimentos para os moradores, segundo Pedro André. Mas o que ele não esquece foi da solidariedade de Xuxa, há vinte anos, que levou dezenas de brinquedos para distribuir na comunidade.
A rainha dos baixinhos não chegou a subir o morro, mas, segundo o líder comunitário, ela manifestou interesse em conhecer os moradores.
Para além de ações pontuais de artistas, Pedro André diz sentir falta da presença do poder público. "Aqui a luta maior é só com as lideranças. Nessa parte, são muito unidas. Nosso bairro tem mais de cem anos. Há cinco anos conseguimos construir nosso posto de saúde. Foi uma luta grande."
Outra conquista da comunidade foi a construção da creche, 12 anos atrás. Mas, entre tantas benfeitorias de que a comunidade precisa, a mais importante é ajuda para os jovens.
Em dezembro de 2021, o governo estadual inaugurou bem perto da favela a Escola de Gastronomia e Hotelaria do Ceará, que oferece formação gratuita em gastronomia, hospitalidade e infraestrutura. Foi um investimento de cerca de R$ 30 milhões à época.
O líder comunitário sonha com o dia em que os jovens formados na escola sejam aproveitados nos empreendimentos próximos, como o hotel da festa.
Sonho debaixo do braço
Vitor Hugo Silva Ferreira, 24, passa pelas ruas da comunidade alheio ao burburinho da festa da influenciadora. Ele vem ostentando orgulhoso alguns papéis. Fazem parte de um sonho. Os documentos são a comprovação de matrícula no curso de garçom na Escola de Gastronomia e Hotelaria do Ceará. Desde criança, sua vida é na comunidade.
Ele ama o lugar, mas almeja mais na vida. Quer buscar formação para uma melhor colocação no mercado de trabalho. Hoje ele trabalha como atendente em um restaurante. Com o curso, quer incrementar o salário para tentar comprar uma casa, carro e moto.
Davi da Silva, 21, nasceu na comunidade. Terminou o ensino médio e não conseguiu emprego ainda. Também sente que os jovens com quem convive não são tão favorecidos como jovens de outras classes sociais.
"A juventude agora tem menos oportunidades. Eu quero muito ser psicólogo ou biólogo. Pra isso precisa de recurso, né?".
Do passado do bairro, somente a igrejinha, ao pé do Marina, sobreviveu. O banho de mar, lazer certo de quem morava por ali, deixou de ser tão fácil. Durante a farofa da Gkay, o acesso ao mar em frente a à comunidade foi bloqueado por grades e cuidado por seguranças, limitando a passagem apenas para os convidados e pessoas ligadas à festa.
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