Debaixo de chuva na madrugada, fiéis celebram festa de Iemanjá em Salvador
Por dois anos as águas da Praia da Paciência, no Rio Vermelho, em Salvador, estiveram vazias. As flores e balaios tímidos levados ao mar por pescadores não se assemelham aos da madrugada desta quinta-feira (2), quando centenas de fiéis lotaram a principal avenida do bairro para celebrar Iemanjá, mesmo sob chuva. Passadas as restrições impostas pela pandemia de covid-19, a festa retornou em seu centenário com orixá negra.
Nas primeiras horas do dia, rosas, em sua maioria, brancas polvilhavam o mar. Como num tipo de pré-carnaval, o dia da guardiã das águas foi antecedido por bloquinhos de filarmônica e percussão entre a noite de quarta-feira (1º) e a manhã seguinte. Enquanto alguns ensaiavam seu desfile pela avenida, devotos já começavam a entregar suas oferendas. O médico Raonne Freitas, 30, foi à 1h da manhã deixar sua oferta. "Soube que durante a madrugada seria um momento mais religioso e eu queria participar desse momento para entender melhor a energia [do orixá] e minha relação com ela", disse.
A professora Isabel Dantas, 50, que fez parte do cortejo do grupo de Maracatu Cortes de Vento, ligado ao terreiro Ilê Icimimó, percebeu o Rio Vermelho mais movimentado em relação ao último festejo, em 2020. "Mesmo com a chuva, estava tudo mais intenso, eram muito mais pessoas."
A chuva, que caiu por mais de uma hora no início da madrugada, foi incorporada como parte da celebração. "Foi muito forte para mim, chorei muito enquanto a chuva caía. Acho que nunca tive uma experiência espiritual como hoje. Me senti muito alegre, uma alegria sagrada", descreveu Isabel. "Essa a natureza dos orixás."
Também tocados pela celebração que acontece em Salvador, os paraibanos Gustavo França, 20, e Alexia Matos, 21, resolveram aproveitar o raiar do dia para se casar. Ambos umbandistas, ela, filha de Iemanjá, recebeu o pedido de casamento de seu agora esposo há cinco meses. A proposta já incluiu o enlace na praia. "Está sendo um momento inesquecível", definiu a noiva, emocionada.
Mãe da fartura
A história que dá origem à tradição conta que as homenagens a Iemanjá começaram, em 1923, quando um grupo de pescadores ofereceu presentes à rainha das águas num pedido por abundância e prosperidade em seu ofício.
Cem anos depois, o orixá continua simbolizando fartura para trabalhadores, mesmo aos que não professam por ela fé alguma. "Um dia aqui no Rio é o que a gente ganha em dois dias no Carnaval", explicou a ambulante Rosane Santos, 23. Ela conta que nem a Lavagem do Bonfim e a maior folia de rua do mundo desbancam o 2 de fevereiro. "É a melhor de todas para ganhar um dinheirinho."
Rosane aproveita a data para expandir seus negócios, durante o início da madrugada foca na venda de cervejas junto com sua mãe e conforme o dia amanhece passa a cobrar R$ 1 para lavar os pés de quem quer se limpar da areia da praia. Neste ano, expandiu o negócio e passou a vender alfazemas para as oferendas.
Quem também apostou na festividade foi o florista e decorador de ambientes Márcio Alex, 44. Para a madrugada, levou 1.200 flores amarelas, vermelhas e, em sua maioria, brancas. Vendendo uma rosa a R$ 5 ele, que diz não "acreditar" em Iemanjá, tem com o orixá relações estritamente comerciais: "A data é o meu Natal. Não há nada que se compare".
A rainha é preta
Além do centenário, a festa deste ano celebra uma Iemanjá preta. Em 1º de fevereiro, foi instalada na Casa de Iemanjá, espaço dedicado à devoção ao orixá, uma estátua que trazia um busto negro, em substituição da imagem embranquecida da sereia comumente difundida. Mesmo que tardia, a substituição foi considerada uma vitória para o movimento negro.
"Essa representação de Iemanjá branca e magra é uma representação colonizada, é um viés colonizado de Iemanjá que é sincretizado com Nossa Senhora por isso ela aparece dessa forma", explicou o historiador Gustavo Freire, 25.
Para Freire, a troca é importante para mostrar a marca e a tradição que o povo preto carrega. "Essa representação é estabelecida como um lugar de memória e isso também é importante."
Mulher negra que trabalha desde adolescente, a jovem ambulante Rosane Santos achou interessante a troca. "A maioria das imagens volta tudo para o branco, branco, branco, aí fica um negócio meio chato. Tem nós negros também, não é?".
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