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Meu irmão foi morto na chacina do Jacarezinho. Meu pai, por bala perdida

O montador Valdemar Rufino, morto por "bala perdida" no Jacarezinho, pedia justiça para o filho - Arquivo pessoal
O montador Valdemar Rufino, morto por 'bala perdida' no Jacarezinho, pedia justiça para o filho Imagem: Arquivo pessoal

Daniele Dutra

Colaboração para o TAB, do Rio

29/03/2023 04h01

Foi por um telefonema que Jhonatan Willian Rufino, 33, soube que o pai tinha sido baleado na comunidade do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro. Montador de móveis, Valdemar Rufino, 66, morreu no dia 17 de março — data em que seu outro filho faria aniversário se estivesse vivo. O idoso era pai de John Jefferson Mendes Rufino, um dos 28 homens mortos na chacina considerada a mais letal da história do Rio, em maio de 2021.

A tragédia se repetia mais uma vez na vida da família. Valdemar era aposentado, mas continuava fazendo montagem de móveis para complementar a renda e ajudar na criação dos dois netos que ficaram órfãos de pai.

Seu Valdemar andava sempre de tênis, calça e uma camiseta com os dizeres "Botelho Móveis", como ele era conhecido na comunidade. Ele estava indo buscar o pagamento de um serviço realizado na noite do dia 16, por volta das 20 horas, quando levou um tiro no beco da linha do trem.

"Quando soube que meu pai tinha sido alvejado, eu estava pilotando, na rua, voltando do trabalho", conta ao TAB Jhonatan, que trabalha como motoboy e teve de interromper o serviço para checar a informação. Um amigo que passava no local ligou para ele dizendo achar que o homem baleado seria seu pai. O amigo contou que tentou chegar perto para identificar o corpo, mas foi impedido pelos policiais, que teriam ameaçado golpeá-lo com um fuzil.

O montador de móveis Valdemar Rufino morto no Jacarezinho - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Família (ainda) reunida: seu Valdemar, de camisa do Flamengo, com a mulher e os filhos; John (de vermelho) foi morto na chacina do Jacarezinho, em maio de 2021, a mais letal da polícia do Rio, com 28 mortos
Imagem: Arquivo pessoal

Bala perdida?

Começou a agonia na busca de informações. "Fui voando, mas não achava meu pai. Rodei na UPA do Engenho Novo e na UPA do Manguinhos. Só fui achá-lo no Hospital Salgado Filho, quando ele já estava passando por cirurgia", diz.

A filha de Valdemar, Hellen Rufino, 31, estava trabalhando como cuidadora quando soube que o pai havia sido baleado na comunidade. Moradora da Baixada Fluminense, ela conta que ouviu dos moradores que não havia tiroteio no local na hora em que seu pai foi alvejado. "Me disseram que no momento não estava tendo operação no Jacarezinho. Por que meu pai morreu em tiroteio? Como vou falar isso para minha filha de 7 anos?", emociona-se.

O governo do Rio lançou há quatro meses o programa Cidade Integrada, que prevê melhorias em seis comunidades da cidade, sob domínio do crime organizado. O Jacarezinho foi uma das primeiras escolhidas para receber obras, serviços e programas sociais, mas a segurança da região continua sendo questionada.

A família, que passou quase dois anos sem respostas pela motivação da morte do irmão, agora cobra respostas pelo assassinato do pai.

"Até hoje eu estou esperando a prova de que meu irmão tinha envolvimento [com o tráfico]. Ele era mototaxista. Vão falar o que do meu pai agora? Eu quero saber quem foi e o culpado vai ter que pagar. O policial falou na minha cara que eu tive sorte que eles socorreram meu pai, porque essa não é a obrigação deles. Falaram isso na minha cara", lembra Hellen.

O montador de móveis Valdemar Rufino morto no Jacarezinho - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
O montador, morto no dia do aniversário do filho: moradores negam que tenha havido tiroteio
Imagem: Arquivo pessoal

Luta por justiça

Um ano e dez meses após a perda do filho, Valdemar lutava para se manter de pé e ajudar a esposa e os filhos. Desde a morte de John, a mulher de Valdemar adoeceu, teve depressão e deixou a família. "É doloroso demais", diz Jhonatan, às lágrimas. "Meu pai sempre trabalhou, sempre ajudou todo mundo. A gente lutava com ele, dizia: 'Pai, estamos com você. Não desiste não. Precisamos de você'. E ele respondia que também precisava da gente para seguir. Só Deus para dar força para mim e minha irmã."

"Minha mãe parou com tudo depois que meu irmão morreu", conta Hellen. "Meu pai orava todo dia, pedindo a Deus para não cair em depressão, e morreu de tiro. Como vou contar para os meus sobrinhos que agora o avô também morreu baleado, que nem o pai?"

Valdemar buscava justiça pela morte de Jhon. Queria saber a circunstância em que o filho foi morto, e o responsável por isso. O idoso também fazia parte de um grupo de pais e mães que perderam filhos na chacina. Morreu sem as respostas que tanto precisava.

A família não quis se mudar do Jacarezinho após a chacina. "Meu pai não tinha receio de morar ali porque era a única casa que ele tinha, era o lugar onde ele tinha condições de morar. Não tinha o que fazer. E ele estava tentando seguir a vida dele da melhor forma possível", conta o filho.

Desde a perda de Valdemar, Jhonatan tenta buscar forças para se reerguer, trabalhar e lutar por justiça. "Sou pai de um rapazinho de 7 anos que todos os dias pergunta pelo avô, que ele encontrava todos os dias. Ele diz: 'Papai, o vovô vem hoje?'. Aí eu digo que agora ele está com papai do céu. Que não vai mais voltar."

Em meio a dor, Hellen não se conforma do pai ter morrido da mesma forma que o irmão. "A gente quer saber quem foi, quem fez isso, para eu não ficar maluca. Preciso de resposta. No IML, para fazer a liberação do corpo, eu vi um boletim, com a versão de um policial. O PM dizia que meu pai teve 'auto de resistência' [resistiu à prisão]. Resistência de quê? Os moradores disseram que foram os policiais que mataram o meu pai. Não teve apreensão, prisão e os agentes deram duas versões diferentes. Será que foi bala perdida mesmo?", pergunta.

Esta semana, os irmãos marcaram uma reunião com a Defensoria Pública para falar sobre a morte do pai. A expectativa é que eles sejam orientados nessa caminhada por respostas e justiça. "Meu pai era tudo para mim", diz Jhonatan. "O homem que sou hoje em dia devo muito ao meu pai, sou muito grato a ele. Eu e minha irmã estamos com esse sofrimento, que não tem previsão de acabar. Queremos resposta."

PM diz que apura o caso

Em nota, a assessoria de imprensa da PM informa que, "na noite de quinta-feira (16/03), policiais militares do Batalhão de Polícia de Choque que atuam no trabalho de ocupação do programa Cidade Integrada foram atacados durante um patrulhamento na localidade da feirinha, no Jacarezinho."

O comunicado prossegue dizendo que, "de acordo com o comando da unidade, houve confronto e após o cessar dos disparos os militares localizaram um homem ferido, que não estava envolvido no ataque à guarnição, próximo ao local da troca de tiros. O ferido foi socorrido ao Hospital Municipal Salgado Filho, no bairro do Méier, onde passou por uma cirurgia. A ocorrência ficou a cargo da 25ª DP (Engenho Novo). Além disso, como em todas as ocorrências com resultado morte, o fato é alvo de procedimento apuratório por parte da Corporação".