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Idosas aprendem a usar smartphone: 'Estou ficando velha, mas besta, não'

Curso de extensão "Letramento e Inclusão Digital", da Universidade de Pernambuco, foi divulgado informalmente como "curso para aprender a usar o celular" para idosas de Alto José do Pinho, periferia do Recife - Jorge Cosme/UOL
Curso de extensão 'Letramento e Inclusão Digital', da Universidade de Pernambuco, foi divulgado informalmente como 'curso para aprender a usar o celular' para idosas de Alto José do Pinho, periferia do Recife
Imagem: Jorge Cosme/UOL

Jorge Cosme

Colaboração para o TAB, do Recife

29/04/2023 04h01

Irenilda Crispim, 63, reage aos risos a cada novo comando que consegue executar no celular. Adiciona uma foto na sua recém-criada conta do Instagram, dá uma gargalhada; faz uma selfie e atualiza a foto de perfil, dá outra. Tudo é uma grande descoberta. Ela já seguiu oito contas e, até agora, fez apenas um post: uma selfie sorrindo ao lado de duas jovens, com a legenda "amigas".

As "amigas" são estudantes da UPE (Universidade de Pernambuco) que ministram o curso de extensão cujo nome oficial é "Letramento e Inclusão Digital", mas que foi informalmente divulgado como "curso para aprender a usar o celular" para as idosas do Alto José do Pinho, periferia do Recife. As aulas buscam ensinar pessoas a partir dos 60 anos da comunidade a usar WhatsApp, Facebook, Instagram, YouTube, TikTok, Twitter e e-mail, além de alertá-las para os perigos do meio digital.

As alunas acompanham as aulas com atenção, embora ainda vacilem no toque na tela do celular — os dedos indicadores que ainda não se acostumaram com a ausência de botões interagem com a tela com alguma rispidez. Munida de seu bloquinho, Irenilda anota cada etapa do lhe é ensinado: baixar o aplicativo na loja do aparelho, fazer o login, buscar contatos, adicionar amigos? E desenha a logomarca do aplicativo, para lembrar depois.

Idosas fazem curso para aprender a usar smartphone - Jorge Cosme/UOL - Jorge Cosme/UOL
Irenilda Crispim aprendeu a abrir um perfil e postar fotos no Instagram
Imagem: Jorge Cosme/UOL

Ao todo, 24 mulheres e um homem participam do curso gratuito. Raphael França, coordenador de mídias pedagógicas da universidade, diz que essa tem sido uma das atividades de maior retenção de alunos do Centro Social Dom João Costa, onde as aulas são aplicadas. "Essas pessoas estavam excluídas da cultura digital, de forma que não estavam podendo exercer plenamente sua cidadania", explica.

Segundo França, estudos indicam que o processo de exclusão digital é maior nas periferias e no público acima dos 50 anos. "A gente vai ver que a exclusão digital é um desdobramento de outros processos de exclusão social que essas pessoas vivenciam cotidianamente."

Conforme o programa do curso, as idosas vão aprender o básico de redes sociais e de aplicativos como INSS, ConecteSUS e Gov.BR. Conversando com as participantes, a equipe também notou a necessidade de dedicar um tempo para ensinar sobre aplicativos de mobilidade, como Uber, e de entrega de refeição, como iFood. Perguntaram se as alunas teriam interesse em aprender sobre aplicativos de relacionamento, como o Tinder, mas elas disseram ter medo por conhecer pessoas que já sofreram golpes.

"A gente entende que ensinar a mexer em aplicativos não é o suficiente. Além desse uso cotidiano da tecnologia, a gente precisa desenvolver o letramento digital crítico, que consiste em fazer essas pessoas compreenderem as armadilhas que são postas na cultura digital, como fraudes e notícias falsas", resume França.

No Recife, idosas fazem curso para aprender a usar smartphone - Jorge Cosme/UOL - Jorge Cosme/UOL
Imagem: Jorge Cosme/UOL

Entre golpes e fake news

A aposentada Maria da Conceição Melquíades da Silva, 61, ganhou um smartphone de presente de aniversário do marido. Desde então, caiu em dois golpes.

Na primeira vez, viu no Instagram propagandas de roupas. "O preço estava ótimo. Me empolguei e queria comprar para meus netos", relata. Depois, começou uma conversa no "inbox" do perfil e foi orientada a fazer um pagamento de R$ 120 no Pix. "Quando a gente fez o pagamento, ela sumiu. Minha filha disse que a pessoa me excluiu. Perdi meu dinheiro", lamenta.

Em outra oportunidade, Maria da Conceição percebeu um desconto de R$ 50 no seu aplicativo do banco. Foi até a agência e percebeu que estava inscrita em um consórcio de uma agência de carros. Ela identificou que a empresa possuía várias reclamações por débitos indevidos. A aposentada não sabe como aquela inscrição ocorreu, mas acredita que os seus dados tenham sido capturados a partir de seu uso do celular.

"Sempre tive dificuldade com tecnologia", diz ela, que era técnica de enfermagem e patinou com a chegada dos computadores em seu trabalho. Hoje, também considera difícil identificar se uma notícia é falsa ou não — e diz que evita clicar em links por receio de ser conteúdo malicioso.

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'Sempre tive dificuldade com tecnologia', diz a aposentada Maria da Conceição, aluna do curso
Imagem: Jorge Cosme/UOL

"A gente quer fazer elas entenderem como identificar essas armadilhas e superá-las, como aprender a reconhecer notícia falsa e utilizar veículos de checagem", continua França. "Isso vai ter uma reverberação na sua cidadania, na sua participação política e na democracia", completa.

Renato Carneiro, 53, gerente de projetos sociais do Centro Social Dom João Costa, reflete que o curso traz coerência para o discurso da associação. O grupo é focado, principalmente, em desenvolver projetos sociais com crianças e adolescentes do bairro. "É injusto chegar para os pais e dizer 'acompanhem o que seus filhos estão fazendo nas redes sociais'. O cara nunca teve um telefone que o filho dele tem, então não sabe usar as ferramentas que o filho sabe", comenta.

"A gente escuta muitas queixas das pessoas mais velhas sobre ter que pedir a alguém para usar alguma coisa no celular. Hoje, prova de vida, internet banking, tudo é no smartphone. O Alto José do Pinho é uma comunidade que está envelhecendo e não é tão avançado com relação ao acesso a tecnologia."

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Curso busca ensinar a comunidade a usar WhatsApp, Facebook, Instagram, YouTube, TikTok, Twitter e e-mail
Imagem: Jorge Cosme/UOL

'Minha avó desenrola no celular'

"A gente mal sabe usar o aparelho", confessa Edinaide da Silva, 62, outra participante do curso. "Agorinha mesmo, abri aqui um recado que chegou para mim, um e-mail, eu não sei como mexer", conta ela, que aprendeu a usar o WhatsApp com a nora.

Já a pensionista Aurinete de Melo, 67, conseguiu aprender muita coisa sozinha. "Desenrolei um bocado de coisa. Sei mandar foto, sei colocar nos stories. Mas eu não sei baixar Uber ou fazer compras pelo celular, e tenho medo de levar golpe. Tenho medo de cair nisso de fake news."

Divorciada, Aurinete salienta que jamais arrumaria um namorado por celular. "Tenho medo. Até para fazer amizade tenho medo. Já fizeram amizade comigo e vieram pedir para eu comprar um cartão para a pessoa. Bloqueei na hora. Estou ficando velha, mas besta, não", diz.

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Universidade aprovou orçamento para promover mais edições do curso, do sertão ao litoral de Pernambuco
Imagem: Jorge Cosme/UOL

O núcleo de extensão da UPE já tem aprovado o financiamento de R$ 500 mil para custear a criação de mais 14 equipes como a do Alto José do Pinho, do sertão ao litoral de Pernambuco. A ideia é que, a partir de junho, a iniciativa esteja ocorrendo em cidades como Petrolina, Salgueiro, Arcoverde, Caruaru, Garanhuns, Palmares e Nazaré da Mata.

Atualmente, a maior parte dos estudantes que ensinam os idosos estudam enfermagem na UPE. França acredita que o projeto é também uma forma de desenvolver a relação deles com o próximo, algo de muita importância na carreira que pretendem seguir na área de saúde.

Maria Rita Soares, 22, está no segundo ano de enfermagem e auxilia nas aulas do curso de extensão. "O projeto é muito lindo por dar a elas mais autonomia, para que consigam ter acesso às redes, ao Uber. Trabalha muito também a questão de senhas, de autenticação em duas etapas. E fala também sobre liberdade religiosa, pois elas não conseguiam ter acesso a uma missa, um culto, e agora conseguem assistir", resume.

A universitária decidiu se inscrever porque mora com uma avó de 84 anos, a quem já ajuda a utilizar o smartphone. "Sei que não é todo mundo que tem alguém em casa para dar esse apoio", ela explica. "Minha avó hoje desenrola no celular", diz, orgulhosa.