'Churrasco do Pai': carne é a oferenda para Ogum nos terreiros gaúchos
Balões verdes e vermelhos indicam que uma festa acontece na casa de Nadyr Daltro, 86, na zona norte de Porto Alegre. Embora o som do pagode e o cheiro de carne assada sejam comuns aos domingos na região, este não é um churrasco comum. Sete costelas fincadas em um espeto figuram ao lado de potes de pipoca, farofa, batata doce e balas de fruta destinam-se ao aniversariante do dia (23 de abril): Ogum.
Nas casas de religião do Rio Grande do Sul, o dia do Orixá guerreiro — sincretizado com São Jorge, na tradição católica — é festejado na brasa. A oferenda se diferencia dos terreiros do Rio de Janeiro ou da Bahia, onde a homenagem em geral se dá com uma grande feijoada.
Todos os anos a mãe de santo Nadyr, do Centro Ogum Onira, convida filhos, filhas e amigos para o "Churrasco do Pai". A casa, dedicada a Ogum, existe desde os anos 40, fundada pela mãe da religiosa, que também era ialorixá.
"Assim como as pessoas têm os pratos de que mais gostam, essa é a comida preferida dele", afirma Janair Daltro, 61, filha de Nadyr. Ela aprendeu com a mãe cada etapa do preparo nas festas da casa, pertencente à Nação Jêje-Nagô, um dos "lados" do Batuque Gaúcho, como é chamada a religião de matriz africana predominante no sul.
Batuque Gaúcho
Dentro do Batuque, há formas diferentes de se preparar o churrasco e seus acompanhamentos, mas a costela é presença garantida. "É como fazer arroz aqui ou no Japão. Temperos e modo de cozinhar podem ser diferentes, mas ainda é arroz", explica Janair.
Entre os convivas, as cores da festa estão nos mínimos detalhes: das guias e cordões de contas ao esmalte das unhas, a presilha do cabelo ou a a meia calça — sendo que as cores de Ogum também variam, dependendo da tradição; na nação Oyó, a cor é o azul.
"Ogum não come no seco", explica a mãe de santo Nadyr, diante de um jarro de Guarapa, bebida feita de laranja espremida e açúcar. Em outras casas, o que o santo mais gosta de beber é cerveja. Apenas a fartura parece ser ponto comum entre todas as tradições: no churrasco oferecido por Nadyr, por exemplo, cada visitante volta para casa com um pote de plástico com carne e farofa. Axé feito para partilhar.
Péricles e Zeca Pagodinho
É o caso de Ana Rita Martins, 64, que conta que hoje mora em um "castelo" — como se refere à casa própria — adquirido, segundo diz, com a ajuda do santo. Ela conta que, quando jovem, era desconfiada e precisava "ver para crer". Hoje, encontrou seu chão no Ilê. "Ele dá tudo que a gente merece receber."
No quintal em frente à churrasqueira, Paulo Roberto Araújo, 60, exibe seus dotes de assador. Com um sorriso no rosto, o devoto conta que há anos é encarregado de preparar a divina costela. Nem muito salgada, nem muito assada, ensina. "O ponto da carne é o Pai quem decide", diz.
Thaynê Daltro, 32, neta de dona Nadyr, é quem coloca pipocas na carne aprontada ao lado da avó. Ela conta que a relação com Ogum é uma forma de ligação espiritual com os antepassados. "É como se ultrapassasse o tempo e, através de Ogum, a gente se conectasse", explica.
Assim como se diz do orixá Ogum, que é alegre, a festa segue animada. Depois do momento ritualístico, em que rezas do Batuque são cantadas em homenagem a Ogum Bomi, Ogum Adiobé e Ogum Onira, os filhos colocam na TV da sala músicas para tocar. O som das palmas, da sineta e do abê — instrumento de percussão de origem africana — é substituído pela voz de Zeca Pagodinho e Péricles, e os filhos dançam.
Quatro nações
"É difícil achar um município do Rio Grande do Sul que não tenha casa de religião", afirma Pai Quirino de Oxalá, 68, membro da diretoria da Afrobras, Federação das Religiões Afro-Brasileiras. A concentração de adeptos no estado é quase cinco vezes o percentual da Bahia, segundo dados do IBGE de 2019.
Só no Batuque gaúcho existem pelo menos quatro nações: Jeje, Ijexá, Cabinda e Oyó. As casas podem ser de batuque e também de umbanda e quimbanda — linha dos Exus e Pombagiras, ao mesmo tempo. São as chamadas "casas cruzadas", como é o caso do Ilê de Dona Nadyr, que tem abertura para a umbanda e o batuque.
Em todo o interior do estado há grandes festas. Em Uruguaiana, a cerca de 600 km de Porto Alegre, Pai Quirino se prepara para o churrasco em seu Ilê. A cidade tem uma das maiores procissões no estado, percorrendo as casas de religião da cidade.
Indumentária dos pampas
Ele conta que a origem do churrasco como oferenda têm ligação com a história do Rio Grande do Sul e dos chamados Lanceiros Negros, grupo que resistiu à escravização guerreando, em seus cavalos. A relação histórica já fez com que o babalorixá presenciasse terreiros em que pessoas se vestem com a indumentária dos pampas, como sandálias de couro e colete.
Conta-se que há pelo menos duzentos anos afro religiosos riograndenses oferecem a melhor parte da carne ao Orixá. Há também quem dê pasto e água para o cavalo.
"Mesmo com as diferentes liturgias, o importante é o fundamento", afirma ele. Nos estimados 60 mil terreiros do estado, filhos e filhas agradecem a Ogum por nunca deixá-los sós. Ele, por sua vez, aproveita a festa, o pagode e o churrasco.
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