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'Salva' por brasileiros, cidade nos EUA recruta professores bilíngues

Foto de 2022 da equipe de Virgínia Bertelli, o Framingham Public Schools, departamento que gerencia as escolas públicas da cidade: 11 brasileiros, 5 de origem hispânica e 1 norte-americana - Arquivo Pessoal
Foto de 2022 da equipe de Virgínia Bertelli, o Framingham Public Schools, departamento que gerencia as escolas públicas da cidade: 11 brasileiros, 5 de origem hispânica e 1 norte-americana Imagem: Arquivo Pessoal

Gabriela Sá Pessoa

Colaboração para o TAB, de Framingham (EUA)

09/06/2023 04h00

O trem perde velocidade e as fachadas começam a ficar mais claras. Primeiro, o Rei da Carne. Depois, a Igreja Cristã Evangélica. Pouco à frente, a Brazilian Stakehouse, uma churrascaria. E um encanto se quebra quando o maquinista avisa, em inglês: "This is Framingham" (Aqui é Framingham).

Em dois dias na pequena cidade de Framingham, a 30 quilômetros de Boston, em meio a lojas de remessa de dinheiro, roupas, supermercados, açougues, salões de beleza, restaurantes, uma unidade da Igreja Universal e outra da Assembleia de Deus, a reportagem praticamente ouviu inglês apenas na prefeitura — onde bandeiras dos EUA e do Brasil dividem espaço.

É o português de sotaque mineiro que parece a língua oficial da cidade. Na padaria Pão Brasil, uma televisão ligada na hora do almoço exibe ao vivo as últimas notícias de Minas Gerais no MGTV, da TV Globo. A outra exibe o jornal vespertino do SBT. No balcão, pão francês, coxinha, pão de queijo e bolo de cenoura. Mas, ao meio-dia, o que faz sucesso é a estação de self-service onde os clientes colocam no mesmo prato arroz, feijão, salada, macarrão, churrasco e farofa.

Um Brasil do lado de fora

A educadora Virgínia Bertelli, 57, costuma dizer que seu escritório é "um termômetro de como está o Brasil". Cabe a ela orientar os imigrantes brasileiros recém-chegados que buscam uma vaga para suas crianças nas escolas públicas da cidade.

"Em 2019, veio uma onda de brasileiros muito grande", ela conta, de sua mesa de trabalho. Na sequência, gira a cadeira 180 graus e se levanta, apontando o indicador para um papel fixado em um mural, atrás da tela de seu computador, onde gráficos mostram o crescimento do número de matrículas.

"Em 2021, o número de brasileiros triplicou. Todo dia chegavam uns 20 novos alunos aqui, a maioria absoluta vinda da fronteira pelo México."

Picape customizada com as cores da bandeira brasileira, nos fundos de uma churrascaria. Na carroceria, a frase adesivada: 'Aqui sim bate um coração brasileiro' - Gabriela Sá Pessoa/UOL - Gabriela Sá Pessoa/UOL
Picape customizada com as cores da bandeira brasileira, nos fundos de uma churrascaria. Na carroceria, a frase adesivada: 'Aqui sim bate um coração brasileiro'
Imagem: Gabriela Sá Pessoa/UOL

O que Virgínia vê é uma amostra das estimativas divulgadas anualmente pelo Itamaraty. Na última década, o Brasil registrou o maior êxodo de sua história. Os números mais recentes, relativos a 2021, mostram que 4,4 milhões de brasileiros estão vivendo fora do país. Em 2012, eram 1,9 milhão. É mais gente do que todos os habitantes de Salvador e de Recife somados.

Os EUA são o destino de quase metade dos migrantes: 1,9 milhão. Desses, 380 mil vivem na região atendida pelo Consulado Brasileiro em Boston, capital de Massachusetts. O posto fica atrás de Nova York (500 mil) e Miami (375 mil), mas em nenhuma dessas localidades a presença brasileira é tão visível quanto em Framingham.

Quando chegaram lá na década de 1980, os brasileiros encontraram uma terra arrasada. A cidade estava em franca decadência após o fechamento de plantas industriais na região, como a da General Motors. Naquela época, as calçadas por onde hoje circulam os clientes dos comércios brasileiros eram pontos de prostituição e consumo de drogas.

"A situação era ruim. Ninguém vinha ao centro da cidade, não havia motivos. Então, gradualmente, a presença dos brasileiros foi aumentando. Eles começaram a abrir suas lojas e atender outros brasileiros. As lojas se encheram e há muita atividade aqui: todos os tipos de varejo, salões de beleza e restaurantes. Isso transformou o centro da cidade, realmente melhorou", explica ao TAB o prefeito de Framingham, Charlie Sisitsky.

O prefeito de Framingham, Charlie Sisitsky, discursa na cerimônia do Memorial Day, em 29 de maio - Gabriela Sá Pessoa/UOL - Gabriela Sá Pessoa/UOL
O prefeito de Framingham, Charlie Sisitsky, discursa na cerimônia do Memorial Day, em 29 de maio
Imagem: Gabriela Sá Pessoa/UOL

O andar onde fica o gabinete do prefeito tem pequenas bandeiras do Brasil ao lado das norte-americanas. Virgínia Bertelli também leva o símbolo preso ao cordão de seu crachá da Framingham Public Schools.

A educadora é da primeira geração de brasileiros que se instalou na cidade nos anos 1980. Nascida em Governador Valadares (MG), embarcou em um avião pela primeira vez na vida em 1987, aos 21 anos.

"O que me trouxe foi falta de oportunidade", conta. "Aqui eu trabalhava a noite inteira limpando lojas, banheiros, hotéis." A primeira passagem pelos EUA durou um ano e meio. "Não me acostumava", ela conta. Entre idas e vindas, veio para ficar de vez em 1996. Naquela época, antes da internet, fitas VHS com gravações de capítulos de novela e do "Fantástico" eram disputadas pela comunidade com euforia.

Um século antes de os primeiros brasileiros se fixarem em Framingham, a borracha extraída da Amazônia já abastecia a incipiente indústria local. Uma das maiores empresas da cidade no fim do século 19 se chamava Rubber Shoe Company.

Mas, afinal, por que tantos brasileiros foram parar justamente em Massachusetts, onde, no inverno, a temperatura média fica entre -5°C e 2°C?

A educadora Virginia Bertelli manuseia material de apoio escrito em português, distribuído aos pais que matriculam seus filhos nas escolas públicas de Framingham - Gabriela Sá Pessoa/UOL - Gabriela Sá Pessoa/UOL
A educadora Virgínia Bertelli manuseia material de apoio escrito em português, distribuído aos pais que matriculam seus filhos nas escolas públicas de Framingham
Imagem: Gabriela Sá Pessoa/UOL

Uma das explicações é o fato de que já havia nessa região uma comunidade estabelecida que falava português, com organizações de apoio. Nos anos 1970, milhares deixaram Portugal rumo a Massachusetts para trabalhar em navios pesqueiros, moinhos têxteis e em fábricas de calçados. No caso de Framingham, os aluguéis mais baratos no centro da cidade tornaram a região acessível. Além disso, Massachusetts é tradicionalmente um estado progressista, acolhedor para imigrantes.

A história de Virgínia Bertelli é parecida com a de outros imigrantes dessa mesma geração. Fugindo da recessão e do desemprego, resultado da hiperinflação e da crise econômica que sucederam a ditadura, os jovens daquela época vinham dispostos a trabalhar pesado para juntar dinheiro. Chegando aos EUA, encontravam empregos em jardinagem, construção civil e limpeza, recebendo US$ 10 por hora — postos de trabalho que não interessavam aos norte-americanos.

"Framingham sempre foi uma cidade acolhedora, um bom lugar para vir e formar uma família. Sempre tivemos muitos empregos e serviços públicos", explica o prefeito Sisitsky. "É aquela história, você tem um amigo que se muda para algum lugar, e você vai atrás dele. Foi assim que eu mesmo vim para Framingham: a irmã da minha primeira esposa morava aqui."

Vagas para professores

Três décadas depois, os brasileiros com melhores condições compraram imóveis, se tornaram proprietários de seus próprios negócios e conquistaram espaços de poder na cidade. Em 2018, Margareth Shepard, 65, foi a primeira brasileira vereadora na Câmara de Framingham. Em 2022, Priscila Sousa, 35, se tornou deputada estadual na Assembleia de Massachusetts, representando um distrito onde vive metade dos moradores da cidade.

A professora paulista Juliana Lima, 39, migrou para Framingham em 2022, com o marido e o filho de 6 anos, com um visto de trabalho patrocinado pela prefeitura da cidade. Ela participa de um programa para atuar no programa de educação bilíngue, com aulas oferecidas tanto em inglês quanto em português no ensino fundamental.

Hoje, duas escolas da cidade oferecem currículo nas duas línguas. Oito novos professores já foram contratados e ainda há sete vagas abertas para professores, segundo Everton Costa, 42, coordenador de aquisição de talentos e desenvolvimento profissional no departamento de educação de Framingham, um dos responsáveis pelo recrutamento no Brasil.

"Nós até conseguíamos encontrar professores que falassem português. Mas precisávamos de profissionais que se parecessem com os alunos. Se um aluno consegue se enxergar no educador, o índice de sucesso aumenta", explica a deputada estadual Priscila Sousa, que também é presidente do comitê de escolas públicas de Framingham.

Cartaz com 'olá' em diferentes línguas, fixado no departamento de escolas públicas de Framingham - Gabriela Sá Pessoa/UOL - Gabriela Sá Pessoa/UOL
Cartaz com 'olá' em diferentes línguas, fixado no departamento de escolas públicas de Framingham
Imagem: Gabriela Sá Pessoa/UOL

É impossível calcular com precisão quantos brasileiros moram na cidade, mas, segundo a própria prefeitura, as escolas ajudam a ter alguma noção.

Dos 10,3 mil matriculados na cidade, 2,8 mil têm o português como primeira língua — em algumas escolas, esse percentual supera 80%. Como, para cada aluno, a prefeitura considera razoável admitir que o pai e a mãe moram na cidade, o número de brasileiros seria multiplicado por três. Assim, estima-se que cerca de 8,4 mil brasileiros vivam em Framingham (70 mil habitantes).

É uma comunidade de maioria conservadora, que encontra nas igrejas um dos principais pontos de convivência e sociabilidade. Na eleição presidencial de 2022, o ex-presidente Jair Bolsonaro recebeu 75,75% dos votos em Boston.

Preparando para a nova onda

Em seu primeiro dia como professora de uma turma da quarta série, majoritariamente brasileira, Juliana percebeu que as crianças estavam mais ansiosas do que ela própria. Outros docentes já tinham passado por aquele grupo, sem sucesso. "A pergunta mais frequente que faziam era se eu estava chegando para ficar", conta ela.

Juliana chama seus alunos de "pequenos guerreiros". A maioria dos recém-chegados partiu do interior de Minas Gerais, e carrega traumas de uma travessia difícil.

"São coisas que a gente não consegue nem imaginar que uma criança tão pequena possa passar. Tento escutar, acolher e mostrar que o importante é estar aqui, a escola é super legal e ela pode aprender um monte de coisa", diz.

Para estreitar a comunicação com a comunidade brasileira, a prefeitura de Framingham acabou de lançar um grupo de WhatsApp, inteiramente em português. O aplicativo não é tão popular nos Estados Unidos, e para o prefeito, "foi o jeito de ter certeza de que a comunidade pode saber o que está acontecendo na cidade e participar".

Além disso, o superintendente das escolas públicas de Framingham, Robert Tremblay, está de viagem marcada para o Brasil para o próximo mês. Ele passará dois meses no país, em um intercâmbio com a Universidade Federal de Minas Gerais. O objetivo é entender melhor a cultura brasileira e estruturar um programa de intercâmbio com professores da universidade.

Ele pediu ao TAB sugestões de apelidos poderia usar para se apresentar em uma conversa no Brasil, e avalia adotar o apelido Beto enquanto estiver em Minas Gerais.

"Às vezes fico nervoso quando falo português, mas é a mesma experiência de muitas famílias aqui. Quero mostrar que se sentir nervoso nessa situação é simplesmente humano", conta.

Framingham também está se preparando para receber um novo afluxo de imigrantes brasileiros, desta vez vindos da Flórida. O governador republicano Ron DeSantis, pré-candidato à presidência, aprovou uma lei mais severa contra os imigrantes. Entre as medidas que entram em vigor em 1º de julho, estão a invalidação de carteiras de habilitação, restrição de acesso a serviços públicos e reprimir empresas que contratam trabalhadores indocumentados.

"Há um aumento significativo de telefonemas de brasileiros da Flórida, dizendo que planejam organizar caravanas para Massachusetts e que alguns deles avaliam se estabelecer em Framingham", afirma a deputada Priscila Sousa.

O prefeito Sisitsky diz já estar ciente da situação, e conta que tem conversado com o gabinete da governadora de Massachusetts, a democrata Maura Healey, para discutir possíveis respostas. "Existem prédios vagos na cidade, propriedade da universidade estadual. Algumas famílias podem morar lá, pelo menos temporariamente."