'Cuckolding' por quem entende: as dinâmicas de ser corno por fetiche
Não faltam exemplos sobre a condição do homem traído - o corno, para os íntimos - na cultura brasileira. Tirando as milhares de músicas sertanejas sobre o tema, a história mais conhecida talvez seja a de Bentinho, protagonista de "Dom Casmurro", romance de Machado de Assis. Bentinho passa mais da metade do livro cultivando a suspeita de que a esposa Capitu estava lhe colocando um galho na cabeça com o melhor amigo, Escobar. Ciúme que o faz terminar a vida sozinho e melancólico.
A trabalhadora sexual e estudante de biologia Sany, 27, solta uma gargalhada quando é perguntada sobre Bentinho. Segundo ela, a agonia e a dúvida cultivadas pelo herói machadiano podem fazer parte da fantasia erótica. "Alimentar esse tipo de imaginação também dá tesão", explica. "Mas é algo mais masoquista. O Bentinho não teria sido menos infeliz, mas essa agonia que ele sentia poderia ser melhor trabalhada."
Se Bentinho vivesse no Brasil de 2023, "Dom Casmurro" talvez fosse uma história menos amargurada porque ele descobriria que essa ciumeira toda poderia ser revertida no cuckolding - ou, no português claro, no fetiche de ser corno.
O cuckolding é um dos fetiches mais comuns no Brasil. Não é sacanagem, é pesquisa mesmo: de acordo com o Sexlog, uma das principais redes sociais de sexo liberal, 9 entre cada 10 entrevistados já desejou ver a parceira com outro homem.
Sany é especializada em fetiches, sendo o cuckolding um dos mais procurados pelos clientes. Frequentemente, ela faz o papel de hotwife para clientes que a contratam. Segundo a trabalhadora, eles são em geral homens casados dos mais diversos perfis. "Um conhecido meu define o cuckolding como a 'paleta mexicana do sexo'", diz, referindo-se à popularidade da prática. "Eu colocaria essa frase em um adesivo no meu carro se pudesse."
'Monogâmicos com lapsos de liberdade'
Assim como a maioria dos fetiches, o cuckolding exige papéis bem definidos para se materializar. Em primeiro lugar, lógico, há o corno ou o "cuck" que quer ser traído — se for uma mulher com fetiche de corna, o termo é "cuckqueen". Para configurar a traição, há a esposa, a "hotwife", que vai trair com um comedor, um "bull", na frente do marido.
A partir daí, muita coisa pode acontecer neste triângulo amoroso, mas grande parte dos cornos gostam mesmo é de assistir. "O papel do corno é o papel de voyeur, observar. O tesão é ver sua parceira com uma ou outras pessoas", explica Sany.
O publicitário André Brito, 44, confirma o prazer de assistir à transa entre a esposa e um comedor. Na verdade, o maior prazer mesmo está em ver a parceira sentindo prazer na frente dele.
"Eu não participo, eu assisto", esclarece o publicitário. "É uma situação em que os ciúmes se misturam com o tesão e a adrenalina".
O desejo de ver a esposa, Paloma Peace, 38, com outro, foi se revelando aos poucos durante o relacionamento. No início, Paloma achou que se travava de uma tentativa do companheiro de transar com outras mulheres. Quando entendeu que o que ele queria mesmo era ver a própria esposa, ela foi se abrindo para a possibilidade de ser uma hotwife.
Atualmente, Paloma e André não sabem bem como definir a relação, mas se dizem realizados. "Não é poliamor, definitivamente", conta André. "Não sei, acho que somos monogâmicos com lapsos de liberdade." Eles vendem conteúdos temáticos de cuckolding e falam abertamente sobre o fetiche nas redes sociais e em um site oficial.
'Tô no céu'
A prática do casal virou um trabalho e, hoje, Paloma atende clientes com o mesmo fetiche via webcam e vende conteúdo exclusivo como hotwife. Para ela, é a melhor situação que existe. Ela dá ordens, ganha presentes e é mimada como uma rainha. "Teve um corno que bancou uma tarde de compras no shopping. Eu só tive que mostrar pra ele depois tudo que eu comprei", conta, orgulhosa.
Muitos cornos que procuram uma hotwife à distância, aliás, são casados e têm vergonha de falar sobre o fetiche com as esposas reais. "A maioria vem falar comigo porque eu pareço com a esposa", afirma Paloma. "Eles me tratam com carinho e eu obrigo eles a falarem que me amam, me darem presentes. Eu tô no céu."
Sany também atende clientes virtualmente assumindo o papel de hotwife, trocando mensagens e sexting dentro da dinâmica de humilhação. Assim como Paloma, a graça está em lembrar que o cara é corno e provocá-lo o tempo todo.
Quando Paloma está com André, a provocação é ainda mais quente. "Eu mando ele pegar água, uma cerveja e até peço pra ele colocar a camisinha do comedor", revela, sorrindo.
Já Sany diz que é mais raro que os clientes tragam a esposa para curtir o fetiche - e grande parte deles tem vergonha de assumir o desejo. "São caras que são casados e que me procuram para realizar essa fantasia que eles sabem que não vão realizar em casa", afirma.
"Eles não levam isso pra dentro de casa e, quando levam, as esposas rejeitam e acaba deixando os caras reprimidos. É aí que a gente, trabalhadora sexual, entra na história."
Um fetiche masculino
O mundo do desejo é colorido e diverso, claro, mas é inegável que a maioria dos que têm desejo de serem traídos e enganados são homens. "Cuckolding é um fetiche do homem", considera Sany. "Dentro dessa dinâmica tem o padrão de fábrica, que é o homem querer ser o corno."
De acordo com a experiência como trabalhadora sexual, Sany notou também outro padrão de fábrica dos cucks que a procuram para realizar o fetiche: a orientação política.
"E uma parada estatística", conta. "Grande parte das pessoas que me pedem é uma galera que envereda mais para direita mesmo. Uma das hipóteses que eu tenho é que os caras de direita têm muitas questões sexuais mal resolvidas e recorrem às trabalhadoras porque eles sabem que não vai ter julgamento e sem maiores questionamentos envolvidos".
O fato do fetiche de corno precisar de uma relação monogâmica, mesmo que seja a sugestão de uma, para se materializar, Sany acredita que ~e uma prática que acaba tendo mais entusiastas conservadores. "A questão do cuck tá ligada ao sistema da monogamia que é o sistema mais presente em caras de direita do que caras de esquerda", afirma.
Há, no entanto, maravilhosas exceções em relação ao gênero do traído. "Eu tive uma relação com uma cuckqueen em que a mulher fez o papel de corna e humilhada. Isso aconteceu uma vez, veio como humilhação. A mulher ficou amarrada enquanto eu transava com o marido na frente dela. Eu bati, deixei ele arregaçado com ela amarrada na cadeira, chorando desesperada."
Calma, o "choro" fazia parte do lance. "Deu tudo certo, foi dentro do combinado. Foi uma experiência muito interessante humilhar um casal. Eu acho maravilhoso, entrei no personagem mesmo, falei várias paradas", conta, aos risos.
O problema é o comedor
Nelson Rodrigues passou a carreira escrevendo sobre a infidelidade do brasileiro e as mazelas que decorrem da clássica história de esposas infiéis. No entanto, são poucas as histórias em que o maior cronista da vida como ela é retrata o homem que sente prazer na traição.
O dramaturgo via o corno com maus olhos e não achava uma figura digna de compaixão. "Todo castigo para corno é pouco", eternizou Nelson. Em "Engraçadinha", o personagem Zózimo encarna a figura clichê do corno manso brasileiro: submisso e um tanto acovardado da própria situação.
Mal sabia o autor que o fetiche de ser corno manso é um dos mais comuns entre os brasileiros - e que deixou de ser um motivo de vergonha para se tornar uma forma válida e deliciosa de prazer para muitos casais. O problema mesmo está em achar um comedor que entenda o trelelê todo.
Paloma diz que é primordial que ela se sinta confortável e com tesão pelo comedor. Aliás, ela é o foco. "Não é bagunça, não", ensina. "Porque eu também não gosto de ser submissa, eu gosto de controlar."
"Acho que que tem um fator do machismo aí no meio", especula André sobre os desafios de encontrar um terceiro elemento que tope transar com Paloma na frente dele. Mesmo que os dois quase não se toquem durante o ato, nem sempre os convidados ficam confortáveis. "Os caras não conseguem. Quem está fora do meio liberal sempre fica nervoso com esses pedidos."
O meio liberal, diga-se de passagem, dificilmente se mistura com o universo do swing. Pelo contrário. "Swing é uma troca de casais, né? Todo mundo ali vai transar. No cuckolding não tem isso, eu não vou participar", relembra André. "Por incrível que pareça, a gente fica meio perdido em casa de swing."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.