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Cantores de forró trocam 'risca faca' por festas gays do centro de SP

Michelle Maiara canta na festa Mel, em São Paulo - @jeffersoncarvalhoworld/Divulgação
Michelle Maiara canta na festa Mel, em São Paulo
Imagem: @jeffersoncarvalhoworld/Divulgação

Do TAB, em São Paulo

11/08/2023 04h00

É 1h30 da madrugada de domingo quando Michelle Maiara, 33, sobe a pequena escada rumo a um espaço onde sempre desejou estar. Até chegar ali, no palco do espaço cultural Mundo Pensante, no Bixiga, centro de São Paulo, o dia estava agitado. Foi para a formatura de uma amiga e saiu correndo para se apresentar na festa de aniversário de um ator. Antes de encerrar a noite como atração da festa "Mel", alugou algumas horas num "hotel baratinho" no meio do caminho. "Para descansar um pouco e tomar banho. Danço muito e meu cabelo me deixa parecendo uma doida", justifica-se.

Maquiou-se, modelou os cachos aloirados e jantou um pedaço de pizza por lá antes do principal evento da agenda. Escolheu um top e um kimono de paetê, presentes da gerente de uma loja de roupas que a acompanha desde seus primeiros shows no centro expandido na cidade. "Antes eu comprava roupas no Brás. Haja look, né?". A auxiliar administrativa, que bate cartão na UBS Vila Penteado, agora tem finais de semana "abarrotados", como ela mesma diz, sem um pingo de lamento no rosto.

Naquele último sábado de julho ela encarou uma plateia de 700 pessoas com energia e gogó que pareciam não caber em seu 1,55 metro. Acompanhada de uma dupla de dançarinos, um guitarrista freelancer e o parceiro Paulinho dos Teclados, emendou hits do forró, funk, sertanejo e axé — tudo na batida eletrônica da pisadinha.

Michelle Maiara é cantora de forró desde 2021, mas o sonho vem desde criança, quando morava num orfanato evangélico em Itapecerica da Serra, região metropolitana de São Paulo, e ouviu de uma das "tias" que ela cantava bem e podia até, quem sabe, gravar um CD. "Por que essa mulher foi falar isso? Desde então eu busquei o caminho da arte."

Aos 18 anos, ela se arriscou cantando em dupla nos barzinhos na Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte, onde morava. Trancou a faculdade de fisioterapia para se dedicar à música, mas sempre esbarrava em algum problema. "Teve uma vez que o cantor da banda ficou dando em cima de mim, aí eu parei", conta. "Até um ano atrás era muito difícil eu conseguir fazer show."

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Festas em bairros centrais e boêmios de São Paulo, preferencialmente para o público LGBTQIA+, preenchem a agenda de artistas e aspirantes do forró - @jeffersoncarvalhoworld/Divulgação - @jeffersoncarvalhoworld/Divulgação
Festas em bairros centrais e boêmios de São Paulo, preferencialmente para o público LGBTQIA+, preenchem a agenda de artistas e aspirantes do forró
Imagem: @jeffersoncarvalhoworld/Divulgação

Uma das poucas portas abertas foi a de um boteco no Campo Limpo, na zona sul, em 2022. "Tinha quatro homens bêbados e eu lá batendo meu cabelo, como sempre faço." Uma turma de amigos passou pela porta e foi impactada pela performance. "Eles me convidaram para fazer uma festa, achei que era de aniversário, mas quando cheguei vi que era uma balada com 200 pessoas."

O local era o Funilaria, bar concorrido na noite paulistana. Ela travou diante da plateia mais jovem e diversa. "Eu não conseguia falar no microfone, avisei o público e pedi ajuda para cantar junto comigo." O coro que ela ouviu estava muito longe do som dos botecos "raiz" em que se apresentava — e a fez chorar na porta na hora de ir embora. "Foi assim que eu consegui entrar no Centro."

Risca faca x Risca fada

O Centro a que Michelle se refere, neste caso, vai além da localização geográfica, e abraça a cena de festas que acontecem em bairros centrais e boêmios ao entardecer e madrugada adentro, preferencialmente para o público LGBTQIA+ — locais que hoje preenchem toda sua agenda de shows.

Num momento pós-pandêmico, essas festas introduziram artistas antes relegados a um circuito muito próprio de pequenas casas, botecos, padarias e lanchonetes da periferia, onde uma gama de músicos e aspirantes, com o auxílio do teclado eletrônico, disputa a vaga de chamariz extra para venda de cerveja.

"Eu cantava para um público 100% hetero, de 30 a 40 anos. E a energia é muito diferente. Existia muito preconceito, os homens não me respeitavam, mesmo sabendo da minha opção sexual", diz Michelle, que namora uma mulher há cinco anos.

Michelle Maiara na festa Mel, em São Paulo - @jeffersoncarvalhoworld/Divulgação - @jeffersoncarvalhoworld/Divulgação
Michelle Maiara na festa Mel, em São Paulo
Imagem: @jeffersoncarvalhoworld/Divulgação
Rafaela e Igor, dançarinos 'free-lancer' da cantora - @jeffersoncarvalhoworld/Divulgação - @jeffersoncarvalhoworld/Divulgação
Rafaela e Igor, dançarinos 'free-lancer' da cantora
Imagem: @jeffersoncarvalhoworld/Divulgação

No "Centro", Michelle e outros talentos pescados no fundo desses estabelecimentos passaram a se apresentar em espaços com decoração cintilante, luzes neon e público descolado. "Não imaginava que existia um lugar assim", ela reconhece. "Agora a gente pode até ter dançarinos, algo que nos botecos a gente não consegue ter."

Uma das dançarinas daquela noite ela conheceu logo nas primeiras apresentações do Funilaria. Foi na festa "Je Treme", onde o brega come solto, que a coordenadora de recursos humanos Rafaela Militão, 35, viu a chance de relembrar os tempos de bailarina e professora de dança contemporânea. "Michelle chamou a gente para dançar com ela de brincadeira e foi plantada uma semente." A primeira vez que se apresentaram juntas foi no trio da festa, durante o Carnaval deste ano. "Fui me apaixonando mais e aprendendo sobre dança e música. A música do povo é sobre isso. É uma grande honra participar desse cenário atualmente."

A valorização de um trabalho marginalizado é importante para entender o novo circuito, explica o estilista e DJ Ad Ferrera, 39, um dos criadores da "Mel", uma das festas que passou a agregar atrações como as duplas Michelle Maiara e Paulinho dos Teclados, Eliane Melo e Mazinho Teclas, e grupos como Swing de Mainha e Koladinho no Shortinho.

A festa está prestes a completar dez anos e foi uma das primeiras a jogar nas caixas de som da noite paulistana levadas e batidas populares que há anos circulam e se criam em rincões e periferias. "Começamos a festa na rua e tinha gente que achava aquele som 'música de pobre'", conta Ad, que cresceu sob influência musical do tio tecladista. "Na época não era legal, não era 'cool'. Eu tocava em algumas casas noturnas e fui demitido quando descobriram que eu tocava forró."

Para Michelle, o ganho não foi apenas artístico. Ela vinha de um círculo de amizade todo evangélico e confidenciava a vida afetiva apenas às pessoas mais próximas. "Eu era bem-vinda não só por ser cantora. Nesses lugares eles não precisam usar máscara. E a Michelle pode ser ela, sem a máscara que eu uso no dia a dia."

Embora nunca tenha sido a ideia, esse circuito acabou atraindo talentos que são LGBTQIA+ e já não se sentiam confortáveis nos botecos. "A gente chama ali de 'risca faca', que é o público que vai só para beber. Alguns falam de maneira bem pesada: 'E essa 'sapatão tocando?'. Se horrorizam ao ver que sou casada com o Marcão", diz Mary Lima, vocalista do Swing de Mainha.

Swing de Mainha durante apresentação na festa Mel no início de 2023 - Festa Mel/Divulgação - Festa Mel/Divulgação
Swing de Mainha durante apresentação na festa Mel no início de 2023
Imagem: Festa Mel/Divulgação
Marcão: largou confeitaria para acompanhar Mary Lima na noite - Festa Mel/Divulgação - Festa Mel/Divulgação
Imagem: Festa Mel/Divulgação

O swing de Marcão e Mary

Quando o paulista Marcão Balbino, 37, conheceu a sergipana Mary Lima, 35, ela já era apaixonada por karaokê. Ele, por sua vez, completava a transição de gênero. Estão juntos há 13 anos, indo da comunidade pobre da Fazendinha, em São Vicente, litoral paulista, ao Capão Redondo, zona sul de São Paulo.

Em um dos bares que frequentavam para tomar cerveja, um tecladista que amava sofrência chamou Mary para se arriscar nos vocais. "Eu tinha voz, mas não tinha noção", ela relembra. Marcão, que já sabia tocar violão e teclado na igreja, ajudava nos ensaios e servia de "roadie" carregando equipamentos entre os botecos. "Era uma vida dura, tocava às vezes para cinco pessoas, ouvia muito machismo", observa a cantora.

Para acompanhar mais de perto a mulher na aventura musical, Marcão largou o emprego de confeiteiro e comprou um teclado de R$ 300, apelidado pelo casal de "boca de Jacaré" — "Era todo aberto, quase não tocava", conta o marido e tecladista. Com auxílio de playback, assumiu o instrumento apenas cenograficamente. "Como era sempre um lugar meio escuro, vinha gente e falava: 'Pô Marcão, você toca muito hein'."

Os primeiros shows como a dupla Mary Lima e Gordinho do Arrocha aconteceram em 2020 e rendiam cachês de R$ 50 a 150. "Não tem como. Se você não tem o dinheiro forte para investir, fazer um CD, as casas de shows não te aceitam", explica Marcão.

MPB de boteco

Foi pensando num "risca faca" para a comunidade LGBTQIA+ chamar de seu que uns amigos do Centro de São Paulo criaram a festa "Risca Fada", em 2018. No começo, era apenas para os mais chegados. "O lucro era de R$ 50 e uma porção de frango frito", conta a sócia e DJ Hirai, 31. O sucesso de Barões da Pisadinha e João Gomes, além das referências de artistas pop ao forró, como Pabllo Vittar, fez o interesse pela festa aumentar.

Para pesquisar a cena, Hirai pingou de bar em bar, entre cascos de cerveja, narguilé e calçada como pista de dança, para pesquisar melhor a cena que ela chama de "MPBB" — "música popular brasileira de boteco". Numa dessas, ouviram da porta a voz de Mary. "Falei pro Gordinho do Arrocha: 'a gente é uma festa LGBT'. Ele falou: 'a gente é um casal diferente também'. Só aí entendi que eles eram um casal. Foi o match perfeito."

Criadores da festa Risca Fada com os artistas Val Salto 15 (segundo da esquerda p/ direita) e a dupla Eliane melo & Mazinho Teclas (últimos à direita)  - Hirai/Acervo pessoal - Hirai/Acervo pessoal
Imagem: Hirai/Acervo pessoal

Já com o nome Swing de Mainha, o grupo emendou outras festas, como a "Mel" e a "Desculpa Qualquer Coisa". Hoje, com o reforço de dançarinos, conseguem de R$ 600 a R$ 1,2 mil de cachê.

Foi um novo mundo que se abriu. Marcão e Mary até então não conheciam festas ou bares gays. "Eu tive brigas horríveis com o pai dos meus filhos, então a gente criou um mecanismo. Além de eu ficar mais em casa para cuidar dos meus filhos, a gente tinha que viver mais ou menos como uma família tradicional, e foi assim que a gente permaneceu. Acabamos nos fechando", observa Mary.

Para Marcão, o que mais o surpreendeu foram os looks. "Eu nunca tinha visto tantas pessoas quase sem roupa. O público é o show." Já para Mary, a sinceridade da nova plateia foi o que a conquistou. "Eles não precisam 'pagar sapo' para ninguém, então quando eles elogiam, é de verdade. Tem gente que ama Joelma, Calcinha Preta, não é só 'putz-putz'. Acho que eles não iam porque não conseguiam curtir esse som em paz."

O Swing de Mainha ainda divide a agenda de shows aos finais de semana entre os dois circuitos, mas não tem dúvida. "A sensação que dá nessas festas que a gente não conhecia é revigorante. O carinho, o camarim, o público que grita", observa. "Ali eu me sinto uma artista."