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Ex-corregedor é 1º caso de indenização por covid na polícia civil de SP

Cerca de 180 mil profissionais da segurança pública de SP foram vacinados, segundo o governo do estado - Danilo Verpa/Folhapress
Cerca de 180 mil profissionais da segurança pública de SP foram vacinados, segundo o governo do estado Imagem: Danilo Verpa/Folhapress

Mateus Araújo

Do TAB, em São Paulo

30/10/2021 04h00

O delegado Nestor Sampaio Penteado Filho, 56, é o primeiro caso de indenização por morte em razão da covid-19 entre policiais civis de São Paulo. Ele ficou internado por mais de 100 dias na UTI de um hospital em Taubaté e morreu em 20 de junho, deixando a esposa e dois filhos. No final de outubro, o governo do estado publicou em Diário Oficial a decisão de pagar R$ 200 mil à família do servidor, após se constatar que ele contraiu covid-19 no ambiente de trabalho.

Penteado Filho seguiu a profissão do pai — de quem tinha o mesmo nome —, em uma carreira de três décadas na Polícia Civil de São Paulo. Formou-se em Direito pela USP (Universidade de São Paulo) em 1987, especializou-se em Direito Processual e era mestre em Direito Processual Penal. Foi professor de outros policiais e em universidades particulares do estado, chefe de delegacias e de seções, além de autor de livros teóricos na área de criminologia.

Delegado de classe especial, uma das mais altas hierarquias na corporação, ele também chegou a ocupar em 2012 o cargo de Corregedor da Polícia Civil paulista. Ficou até 2015, após denúncias de corrupção entre agentes que cobravam até R$ 50 mil por mês para proteger colegas investigados por desvios de conduta. Embora não houvesse indício de envolvimento de Penteado Filho no esquema, o então secretário da Segurança Pública, Alexandre de Moraes, decidiu afastar o delegado do comando da corregedoria. "Não é razoável que o corregedor investigue sua própria equipe", disse Moraes, atual ministro do STF (Supremo Tribunal Federal).

O último posto público de Nestor Sampaio Penteado Filho foi de delegado da 1ª Seccional de Campinas, no interior, o qual assumiu em abril de 2020. Os planos dele, atrapalhados pela pandemia, eram criar uma força-tarefa com a Guarda Civil local que driblasse a falta de policiais na região e mapear as áreas com maior desfalque de profissionais para garantir reforços. Mas Penteado Filho morreu antes de concretizá-los, vítima de um inimigo invisível: o coronavírus. Ele foi infectado a um mês de completar um ano no cargo, em março de 2021.

Infectado no trabalho

O delegado Nestor Sampaio Penteado Filho, 56, morreu em junho de 2021 - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
O delegado Nestor Sampaio Penteado Filho, 56, morreu em junho de 2021
Imagem: Reprodução/Instagram

Em texto publicado no Diário Oficial em 21 de outubro de 2021, o governo explicou que a indenização à família do delegado "fundamenta-se nos elementos probatórios acostados aos autos, especialmente nas conclusões alçadas na apuração preliminar, indicativos de que a morte ocorreu em razão da função".

Entre os elementos probatórios anexados ao processo administrativo está um Boletim de Ocorrência registrado pela viúva. O delegado sabia do risco que estava correndo, e assim que fez o exame e comprovou a infecção, pediu à esposa que, caso morresse, formalizasse que fora infectado enquanto exercia suas atividades profissionais. "Esta indenização é um reconhecimento de que meu marido morreu trabalhando. Quando ele foi contaminado, ninguém da polícia tinha sido vacinado", afirmou a mulher em entrevista ao jornal Correio Popular. Desde a decisão, a família não quis mais se pronunciar publicamente sobre o caso.

"Era um profissional excepcional. Respeitado por todos os colegas, uma referência para muitos de nós", elogia ao TAB um escrivão, colega de Penteado Filho, que pediu para não ser identificado. "Nenhum de nós parou na pandemia, foram 24 horas por dia com os serviços funcionando normalmente. O que se sabe, no caso dele, é que durante um plantão havia gente com sintomas de gripe. Se conhecia pouco ainda da doença, naquela época, e não tinha como parar de trabalhar. Quando fizeram o teste, deu positivo, mas o quadro dele foi o mais grave."

Grupo do chamado serviço essencial, os trabalhadores da segurança pública não tiveram como fazer lockdown ou trabalho remoto durante a pandemia. Seguiram suas funções normalmente — muitas delas em contato direto com a população — e passaram a se expor mais aos riscos de infecção pelo vírus. "O medo foi uma constante", lembra o escrivão, lotado numa delegacia na capital paulista. Ele também teve a doença em junho de 2020, mas com sintomas leves. "Precisei ficar isolado, longe da minha família. Tenho uma criança em casa, não podia arriscar."

Um mês antes de sua infecção, uma pesquisa divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que 55% dos policiais civis e militares de São Paulo tinham algum colega ou familiar diagnosticado ou com suspeita de covid-19. O mesmo levantamento revelou que 54% dos profissionais afirmaram não ter recebido do governo equipamentos de proteção individual, como máscaras e álcool.

Agentes de segurança pública de SP foram vacinados em abril de 2021 - Danilo Verpa/Folhapress - Danilo Verpa/Folhapress
Agentes de segurança pública de SP foram vacinados em abril de 2021
Imagem: Danilo Verpa/Folhapress

'Inércia e morosidade'

A ausência dessa estrutura básica para trabalho seguro, diz a presidente do Sindpesp (Sindicato dos Delegados de São Paulo), Raquel Kobashi, é razão para que o governo seja responsabilizado pelos casos de infecção e morte dos policiais. "Nos colocamos como escudo real da sociedade — não só contra o crime. E é mais que necessário esse reconhecimento", afirma. "O sindicato teve que pleitear judicialmente a implementação de protocolos internos e a compra de equipamento de proteção individual, que ainda foram distribuídos sem cronograma e planejamento eficaz."

Segundo Kobashi, algumas delegacias não receberam o material e, em outros casos, alguns policiais chegaram a comprar os EPIs por conta própria. "Houve inércia e morosidade", resume. Desde março de 2020, 85 policiais civis e 105 militares foram vítimas fatais da covid-19, de acordo com os dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.

O estado iniciou a vacinação dos profissionais de segurança pública e agentes penitenciários em 5 de abril de 2021. O grupo de 180 mil pessoas incluiu policiais federais com atuação local, policiais militares, civis, bombeiros, Polícia Científica, guardas metropolitanos e agentes da Fundação Casa.

A decisão do governo Doria (PSDB) de indenizar a família do delegado de Campinas foi vista como um "necessária e justa" pela presidente do sindicato. "Apesar de ser triste que a gente tenha que falar na indenização após a morte", pondera. Ela, no entanto, não sabe dizer quantos processos semelhantes estão em andamento no estado.

Na Polícia Militar, por outro lado, essa "é uma ação tradicional", de acordo com o coronel Luiz Gustavo Toaldo Pistori, presidente da DefendaPM (Associação de Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar). Ele diz que há casos de familiares já indenizados pela morte de profissionais por covid-19, embora não saiba precisar a quantidade. "Um PM quando é acometido por covid-19, ele acaba sendo submetido a um procedimento preliminar. Se já for apontada uma relação de causa e efeito [da infecção, relacionada ao exercício da profissão], o processo de indenização da família já é iniciado."

A situação é diferente para outras categorias de serviço essencial, como a dos rodoviários urbanos, que inclui motoristas e cobradores de ônibus. Desde março de 2020, o Sindmotorista, entidade representante do grupo, contabilizou 2.346 pessoas com a doença e 201 mortes. O mesmo acontece com os trabalhadores da limpeza urbana, que até junho deste ano teve 60 mortos em decorrência da doença, segundo o Siemaco (Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Prestação de Serviços de Asseio e Conservação e Limpeza Urbana de São Paulo). Em nenhuma dos dos setores há casos de indenização às famílias nem processos em andamento, afirmam os sindicatos.

Governo montou estrutura com postos de vacinação em mais de 80 unidades da Polícia Militar no Estado - Danilo Verpa/Folhapress - Danilo Verpa/Folhapress
Governo montou estrutura com postos de vacinação em mais de 80 unidades da Polícia Militar no Estado
Imagem: Danilo Verpa/Folhapress

Precedente

O caso de indenização da família de Nestor Sampaio Penteado Filho abriu um precedente importante para familiares de policiais civis mortos pela covid-19. Num ofício enviado em 25 de outubro ao secretário João Camilo Pires de Campos, a delegada Raquel Kobashi pediu que o Estado adote medidas necessárias para estender o direito à indenização por morte acidental a todos os casos de contaminação de covid-19 durante o trabalho. O pedido ainda não foi respondido.

Segundo a presidente da AFPCESP (Associação dos Funcionários da Polícia Civil do Estado de São Paulo), Lucy Lima Santos, há pelo menos 20 processos do tipo abertos por advogados da entidade, que representa também integrantes das carreiras administrativas e agentes de segurança penitenciária. "Estamos solicitando uma pensão vitalícia para a família, além do seguro de vida."

O TAB perguntou ao governo de São Paulo quantas famílias de policiais já foram indenizadas por morte em decorrência de covid-19 e quais os critérios levados em consideração para definir que a infecção aconteceu durante o expediente de trabalho. Sobre isso, em nota, a Secretaria de Segurança Pública apenas disse que as "medidas cabíveis" tomadas "são fruto de apuração pelos canais competentes".

O texto afirma também que "desde o início da pandemia, o governo tem adotado todas as medidas necessárias para garantir a proteção de seus agentes, seguindo as recomendações e orientações das autoridades de saúde e do Centro de Contingência da Covid". Entre as medidas estão a testagem dos profissionais e seus familiares, revisão de escalas e turnos de trabalho, além da compra e distribuição de máscaras, luvas, aventais descartáveis, álcool gel e face shield.