Topo

'Espera cruel': internada contra a vontade pelo ex, escritora cobra Justiça

A escritora Helena Lahis é ex-mulher do produtor musical Paulo Lima - Lucas Seixas/UOL
A escritora Helena Lahis é ex-mulher do produtor musical Paulo Lima
Imagem: Lucas Seixas/UOL

Do TAB, em São Paulo

11/11/2022 04h01

Em 20 de outubro de 2019, um domingo à tarde, dois enfermeiros e uma médica atravessaram o longo corredor do apartamento onde a escritora Helena Lahis morava com as filhas e o marido, na Urca, região nobre do Rio de Janeiro. Sentada na escrivaninha do quarto onde passava horas escrevendo, Helena rascunhava páginas de novos contos. Eles entraram no cômodo e disseram que iriam levá-la a uma clínica de reabilitação — segundo a psiquiatra, Helena estava em uma crise de bipolaridade. "Tomaram meu celular e perguntaram se eu iria 'por bem ou por mal'", diz.

Escritora de histórias infantojuvenis, a pedagoga se aventurava em textos para o público adulto. Deixou de lado o universo lúdico para descrever, sem pudor, uma paixão repentina, repleta de sexo e prazer, misto de amor e desejos reprimidos, que vinha explodindo dentro de si. Aos 45 anos, mãe de duas filhas, vivendo um casamento desgastado, ela estava novamente apaixonada e convicta: queria se separar.

O então marido, o produtor musical Paulo Lima, presidente da Universal Music, uma das maiores gravadoras do Brasil, foi quem chamou a médica Maria Antonia Serra Pinheiro, amiga do casal, para intervir. À polícia, ela disse que Helena estava em surto devido ao uso de medicamentos para emagrecer. Helena passou 21 dias numa clínica psiquiátrica e para dependentes químicos no Rio, período em que foi proibida de ter contato com qualquer pessoa que não fosse um de seus familiares.

O episódio virou inquérito policial, concluído em julho de 2021 — o Ministério Público do Rio de Janeiro ainda não apresentou denúncia. De acordo com um relatório da Polícia Civil, os crimes identificados na investigação podem levar a penas de até 12 anos de prisão.

'Foi minha liberdade'

Helena Lahis e Paulo Lima se conheceram na adolescência. Ela tinha 17 anos; ele, 21. "Meu irmão trabalhava com ele numa gravadora. Nos conhecemos quando ele foi a Petrópolis [RJ], onde minha família morava. Nos apaixonamos e começamos a namorar. Foi meu primeiro namorado", lembra. Os dois se casaram em 1995.

Formada em pedagogia, Helena trabalhou como professora em uma escola privada da capital fluminense, até se dedicar exclusivamente à editora Lago de Histórias. O espaço funciona em um sobrado na Urca, com vista para o mar, e nele há oficinas de literatura e contação de histórias. Enquanto isso, Paulo se tornava um dos principais executivos da cena musical brasileira.

Helena pediu o divórcio pela primeira vez em 2002. Paulo surtou, segundo ela, "quebrou as coisas em casa, gritava, começou a dizer que era macumba", conta.

Em 28 de setembro de 2019, um mês antes de ser internada, Helena havia pedido novamente a separação ao marido. Seguiram-se "pressões psicológicas muito fortes e insuportáveis" de Paulo, a fim de dissuadi-la da ideia, relatou à Polícia Civil o psicanalista e psiquiatra Manoel Castro Sá, médico de Helena.

Ela havia mudado de comportamento, diziam os familiares. As filhas se queixavam que ela não ligava com a frequência habitual para saber onde estavam e passou a chegar mais tarde em casa. A mãe da escritora, Maria Luiza Tavares, dizia que Helena estava "fazendo uso abusivo de remédio para emagrecer" e "escrevendo compulsivamente".

Paulo acessou o e-mail de Helena, sem sua autorização, e depois leu as trocas de mensagem entre ela e Alexandre Barreto, com quem iniciava um relacionamento.

"Um dia, cheguei em casa, e estavam minha mãe, minha irmã e ele na sala, queriam conversar comigo", lembra Helena. "Ele mostrou todas as minhas conversas com Alex à minha mãe. Voltou a dizer que eu estava possuída. Me levantei e disse que não queria participar daquilo."

O presidente da Universal Music, Paulo Lima, na festa de lançamento da multiplataforma musical Tim Music, no Villaggio JK em São Paulo. (Foto: Marcus Leoni/Folhapress) - Marcus Leoni/Folhapress - Marcus Leoni/Folhapress
O ex-marido de Helena Lahis, Paulo Lima, presidente da Universal Music
Imagem: Marcus Leoni/Folhapress

Internação

Helena foi internada no Espaço Clif, uma clínica de luxo para tratamento psiquiátrico e reabilitação, em Botafogo. O lugar tem suítes confortáveis, piscina, academia, sala de jogos e "lounge" de convivência, com diária de internação que chega a custar cerca de R$ 1.000.

Além do atestado de Maria Antonia Serra Pinheiro, dois médicos deram laudos ratificando o tratamento na clínica: Silas Ferreira Barbosa e Leonardo Lessa. No prontuário de internação, consta que Helena "não apresentava risco de suicídio nem de automutilação" e tinha "aparência bem cuidada, comportamento cooperativo; consciência lúcida", além de "pensamento claro; fala coerente; humor estável".

No período em que esteve internada, Helena conta que resistiu, como pôde, ao uso de medicamentos sedativos. "Cheguei a esconder o remédio embaixo da língua e fingir tomar, para não ser dopada. Passei uns dias tentando falar com o médico, mas me diziam que ele ainda não tinha passado lá ou que ele ia lá."

Nesse tempo, chegou a receber visitas de familiares, mantendo-se firme no pedido de sair dali. Segundo ela, ninguém além da família sabia seu paradeiro: a escritora ia lançar um livro na semana seguinte, e o evento foi adiado. "Minhas amigas perguntavam a ele [Paulo] onde eu estava, e ele dizia que eu tinha me isolado por causa do estresse."

A alta, no entanto, só foi possível com a ajuda da acompanhante de uma outra paciente da clínica. "Ela viu a minha situação e perguntou se eu tinha alguém lá fora para me ajudar. Escrevi um bilhete, ela levou no sapato e entregou a Alexandre", relata.

Na carta, ela dava ao namorado os caminhos para se comunicar com as amigas dela e informar de seu internamento involuntário. Um grupo de pessoas próximas a Helena se mobilizou para contratar um advogado para pedir uma ordem judicial para a liberação. Ao pedido foi anexada uma carta do psicanalista de Helena, que atestou sua lucidez.

A escritora saiu da clínica em 11 de novembro de 2019 e, no dia seguinte, registrou um boletim de ocorrência contra o ex-marido — ela conseguiu o divórcio em dezembro de 2019.

Helena passou 21 dias internada em uma clínica psiquiátrica do Rio de Janeiro - Lucas Seixas/UOL - Lucas Seixas/UOL
Helena passou 21 dias internada em uma clínica psiquiátrica do Rio de Janeiro
Imagem: Lucas Seixas/UOL

Indiciamento

No inquérito policial assinado pela delegada Natacha Alves Oliveira, o produtor musical Paulo Lima foi indiciado pelos crimes de sequestro e cárcere privado, cuja pena varia de 2 a 8 anos de prisão, e invasão de privacidade, de 1 a 4 anos de prisão e multa.

Além dele, foram citados os médicos (Pinheiro, Barbosa e Lessa) e o diretor técnico do Clif, Gabriel Landsberg. O Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro) está investigando o caso. O TAB apurou que a entidade já abriu um processo ético-profissional contra Pinheiro. Os trâmites, porém, correm em sigilo. Procurado, o conselho não retornou o pedido de informações.

Maria Luiza, mãe de Helena, também é citada no inquérito. De acordo com a investigação, ela teria sido cúmplice de Paulo no sequestro e cárcere privado da própria filha. "Minha maior mágoa é o envolvimento da minha mãe. Muito maior do que a mágoa que sinto dele", diz Helena — da família, ela só mantém contato com suas duas filhas.

Em nota à reportagem, o Ministério Público do Rio de Janeiro diz que o procedimento foi devolvido à 14ª DP, em 15 de julho deste ano, "para o cumprimento de novas diligências". "Por tratar-se de procedimento sigiloso, não é possível fornecer informações sobre o conteúdo da investigação", finaliza.

O advogado Alexandre Lopes, responsável pela defesa de Pinheiro, diz que a médica "está sendo indevidamente investigada". "Ela apenas sugeriu a ida de Helena a uma clínica especializada para avaliação psiquiátrica, por conta de relatos da família. Foi sua única participação no episódio", diz, em nota.

Lopes alega que Helena foi avaliada por outros médicos, após internação, e que eles "concluíram, clinicamente, que a internação era necessária". Também refuta a acusação de cárcere privado e de que a escritora ficou incomunicável, pois "era visitada todos os dias por seus familiares". O advogado não comentou a investigação do Cremerj.

Por e-mail, Lessa disse que está "à disposição para todos os esclarecimentos necessários" junto às autoridades. Segundo ele, o conselho "não identificou qualquer irregularidade técnica" quanto à sua participação na internação.

A diretora-executiva do Espaço Clif, Sabrina Presman, não quis comentar o assunto. "A Clif não compartilha informações sobre seus pacientes ou tratamentos clínicos a eles aplicados, por razões éticas."

Helena Lahis na editora Lago de Histórias - Lucas Seixas/UOL - Lucas Seixas/UOL
Helena Lahis na editora Lago de Histórias, na Urca
Imagem: Lucas Seixas/UOL

'Uma espera cruel'

Helena chora toda vez que lembra da história, com indignação. Considera que o que ocorreu foi uma tentativa de impedi-la de ser quem ela queria ser. "Aos 45 anos, madura, segura, tomei a decisão de me separar", resume. "A escrita me empoderou."

Três anos depois da internação e mais de um ano da finalização do inquérito, ela reclama da demora para que o caso se torne uma ação do Ministério Público. "É uma espera muito cruel", afirma. "Quando você sofre uma violência tudo que você quer é uma resposta da Justiça. Só que três anos depois, você se dá conta de que nada aconteceu."

Helena diz que tem se dividido entre suas atividades literárias, a escrita e uma espera que, segundo ela, "repercute grandemente" na sua vida emocional, maternal, financeira e profissional. "Hoje eu entendo a sensação de uma pessoa que sofre um crime, uma situação grave, e não tem resposta jurídica. É uma sensação quase insuportável de injustiça, de falta de crença no amanhã."

As advogadas Eleonora Nacif e Maíra Fernandes, que representam a escritora no processo, dizem que a equipe tem ido "insistentemente" à delegacia cobrar celeridade. Elas também vão formalizar um pedido ao promotor responsável pelo caso reforçando a urgência ao MP.

A reportagem procurou as defesas de Paulo Lima e da mãe de Helena, Maria Luiza Tavares, e o médico Gabriel Landsberg, mas não obteve retorno. O médico Silas Ferreira Barbosa não foi localizado — o texto será atualizado caso queiram se manifestar.

Na sexta-feira (11), após a publicação deste texto, o Cremerj enviou uma nota ao TAB confirmando que "existe um procedimento instaurado sobre o caso" no conselho, mas que "segue em sigilo de acordo com o Código de Processo Ético-Profissional".