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Luiza Sahd

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Desinformação e estigma: como é ter suspeita de monkeypox na Europa

Fernando Moraes/UOL
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Colunista do TAB

02/08/2022 04h01

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O que vem depois do pânico e da exaustão que a pandemia de covid-19 proporcionou nos últimos dois anos e meio? Aparentemente, é o que vamos descobrir agora, com o crescimento vertiginoso de casos de varíola dos macacos em diversos continentes.

Em tese, a gente não precisaria arrancar os cabelos — é o que cientistas e comunicadores tentam explicar quando produzem conteúdos didáticos e confiáveis sobre as formas de transmissão e os cuidados com a doença. Exemplos de boas práticas nesse sentido são a coluna da colega Lúcia Helena, do VivaBem, e o podcast Café da Manhã, da Folha de S.Paulo.

Na prática, entretanto, a pessoa com suspeita de monkeypox periga enlouquecer antes de descobrir o que está acontecendo — ou foi o que atravessei quando feridas bem feias começaram a abundar no meu corpo sem causa aparente, depois que passei uma semana em um hostal no olho do furacão da varíola dos macacos: Madri, na Espanha.

Conduta médica e estigma

Quem acompanha o noticiário com atenção, dorme em lençol previamente usado por outras pessoas em Madri e acorda toda empolada tem motivo para se preocupar, sim. Mas não foi isso o que ouvi quando procurei ajuda médica na capital espanhola.

Cheguei ao atendimento consciente de que, por não ter outros sintomas (como febre, dores no corpo ou gânglios aumentados, que podem ou não acompanhar as feridas), meu caso poderia ser literalmente qualquer coisa. Mas expliquei que entraria em um avião naquela noite e não queria contaminar ninguém — ainda que casos de contágio desse tipo não estejam documentados.

A única pergunta que o doutor fez foi: "Você está fazendo sexo descontroladamente com muitas pessoas? Porque, se não está, não entendi por que acha que pode ter monkeypox."

Aqui, é importante lembrar como o estigma atrapalha na contenção de uma epidemia. Ele faria essa mesma pergunta às crianças que foram diagnosticadas com a infecção nesta semana? Gosto de acreditar que não, mas isso não é consolo. Se um médico do país mais afetado pela varíola dos macacos até o momento acha que a via única de contágio é "sexo descontrolado", estamos ferrados.

De minha parte, saí do consultório com a orientação única de observar outros sintomas e, para minha infelicidade, as feridas aumentaram e se espalharam bastante no dia seguinte, quando cheguei a Roma, na Itália.

A essa altura, fiz teleconsulta com médicos do Brasil enquanto rumava a um grande centro de saúde italiano. A médica brasileira me disse que não teria como diagnosticar nada sem exames, mas recomendou isolamento social caso a dúvida persistisse, por precaução. Foi provavelmente a coisa mais sensata que ouvi até então.

Sem exames e sem protocolos

Instantes depois, em um pronto-socorro italiano, o semblante da pessoa que fez minha triagem era de horror quando mostrei as feridas e disse que queria saber se teria como me examinarem para descartar ou confirmar a varíola dos macacos. Fui esquecida na ala de pacientes graves de covid-19 por duas horas, vi pessoas passarem agonizando por ali sem parar e, finalmente, me disseram que eu não deveria estar naquele prédio.

Com informações baseadas em mímica — já que ninguém da equipe falava inglês, espanhol ou português —, rumei para o que disseram ser o instituto de infectologia. Roma, 38°C. Fui parar no necrotério. Mais gente em sofrimento e gente morta. Mais exposição desnecessária.

Caminhei outros 20 minutos até encontrar o instituto de referência em infectologia na cidade e, por ali, também ninguém sabia o que fazer comigo.

Descrevi o caso todo em um tradutor, mostrei a tela do celular e as enfermeiras me conduziram à saída do prédio, para esperar que um médico saísse para dar uma olhada nas minhas feridas. Recomendaram apenas que eu não entrasse, não sentasse ou não encostasse em nada.

Minutos depois, o médico chegou, finalmente me colocou em uma sala privada e isolada para concluir que aquilo não era uma infecção por varíola dos macacos, mas provavelmente uma alergia de fundo emocional, porque eu estava atravessando um luto difícil. Nenhum exame laboratorial foi feito em nenhum dos atendimentos.

As notícias dão conta de que tanto os exames quanto as vacinas para a varíola estão em falta — o que faz algum sentido, já que esta é a primeira vez que muitos casos de varíola dos macacos foram relatados simultaneamente em países não endêmicos e endêmicos, em áreas geográficas muito díspares.

O que não faz sentido nenhum é que, a essa altura dos acontecimentos, ainda não haja um protocolo claro para o atendimento dos casos suspeitos e, pior ainda, que a própria comunidade médica dissemine estigma e desinformação, como fez o médico espanhol ao insinuar que a monkeypox só poderia afetar pessoas "promíscuas".

Na contramão da Europa, o bom atendimento no Instituto Emilio Ribas (São Paulo) surpreendeu a Anderson Ribeiro, 41, primeiro infectado confirmado no Brasil, que conversou com a reportagem do TAB.

A história de Anderson não só reforça o potencial inestimável do nosso Sistema Único de Saúde e dos nossos cientistas, mas prova também que informação confiável é item de primeira necessidade nesses tempos de ares apocalípticos.

A tabelinha entre população e comunidade médica bem informadas, com todo mundo sabendo o que fazer em caso de suspeita de monkeypox, é nossa única (e valiosa) ferramenta enquanto exames e vacinas não são distribuídos de forma abundante. Se todo mundo fizer sua parte, não repetiremos os erros e crueldades praticados desde o surgimento da aids — que persistem ao longo das décadas e só têm servido para atrapalhar a prevenção.

Contra tudo e contra todas as expectativas, resta torcer para que a Europa siga o exemplo do Instituto Emílio Ribas, no Brasil, e prepare seus profissionais de saúde e sua população para mais esse desafio coletivo.