Topo

'Sonic' inaugura lógica do recall de filmes em tempos de rede social

Reprodução
Imagem: Reprodução

Matheus Pichonelli

Colaboração para o TAB

20/11/2019 04h00

Quando a Paramount Pictures divulgou o primeiro trailer de "Sonic - O Filme", em abril de 2019, muitos fãs do clássico dos videogames se revoltaram. No Twitter, houve quem comparasse o ouriço-cacheiro azul superveloz da SEGA a um personagem do Trenzinho Carreta Furacão.

Renato Almeida, dono de uma agência de relações públicas na área de games e entretenimento, estranhou o "visual demasiadamente humano" do ícone da sua infância e adolescência. "Cheguei a me questionar se aquilo não era realmente apego à imagem que eu havia construído para um personagem tão querido", conta o fã.

Nas redes, a gritaria foi tanta que os produtores precisaram repaginar o personagem e atrasar seu lançamento de novembro de 2019 para fevereiro de 2020. O trailer da nova versão foi divulgada na terça-feira (12).

"Minhas dúvidas foram respondidas: a diferença do visual do Sonic no novo trailer é essencial para o espírito divertido e brincalhão do personagem. Foi a mudança mais necessária de todas", diz Almeida, que trabalhou no lançamento ou relançamento de 16 títulos do game nos últimos nove anos.

A diferença era tanta que, pelas redes, houve quem desconfiasse que "o Sonic horrível" da animação de Jeff Fowler fosse, na verdade, "um grande plano para todo mundo odiar o filme" e querer assistir à versão repaginada.

Na dúvida, o TAB enviou a mesma pergunta para a distribuidora da animação, mas não obteve resposta. "Não creio que tenha sido intencional", diz Renato Almeida. "Esse tipo de problema é bem mais comum do que se imagina quando acontece o licenciamento de uma marca tão grande. Gerou-se muita conversa e muito burburinho, o que vai ser bom para o filme. Embora os fãs tenham sido os motivadores da mudança, o crédito precisa ser todo da equipe, que humildemente voltou atrás e repaginou o personagem de forma mais fiel", avalia.

Quem manda é você

O episódio gerou duas grandes discussões.

A primeira é sobre a forma como os testes de audiência atingiram o ápice em tempos de redes sociais — a ponto de uma produção mudar a essência de um personagem antes mesmo de o filme ser lançado. A segunda diz respeito ao terreno minado da nostalgia, uma aposta cada vez mais comum do cinema e do mundo dos games.

Para a publicitária Camila de Ávila, integrante do grupo de pesquisa Audiovisualidades e Tecnocultura: Comunicação, Memória e Design (TCAv), o episódio mostrou como as redes sociais potencializaram a voz de um público especialmente exigente e sensível: o fã de games. "Para quem já passou horas jogando no Mega Drive, foi um impacto significativo ver o personagem principal com um visual diferente. As reclamações foram desde o personagem possuir suas feições do rosto mais humanizadas, a falta de luvas ou usar tênis de corrida e não a clássica sapatilha pontiaguda. Toda essa repercussão fez com que alguns fãs criassem a sua própria versão do personagem com o visual corrigido. O que chama a atenção é a maneira como se deram as críticas em massa através das redes sociais e, de certo modo, a apropriação por parte do público em remodelar o personagem."

Segundo a especialista, o fato tornou evidente a crise narrativa de uma mídia dentro da outra, assim como o conflito de referências entre diferentes gerações.
Para ela, o filme poderia não ter tido tanta visibilidade se não houvesse esse "glitch". "Acaba sendo uma produção colaborativa, em que o público, de certo modo, carrega uma satisfação em ter contribuído."

O produtor audiovisual e também publicitário Thiago Araripe considera o episódio uma síntese dos nossos tempos - no caso, um "case" duplo sobre o que não fazer, num primeiro momento, e sobre como voltar algumas casas e refazer o trabalho.

Ele lembra que os processos de pesquisa de marketing valorizam cada vez mais a opinião do público. Quando se trata de um produtor audiovisual, há duas formas de se captar essas impressões. Uma delas é providenciar pesquisas de grupo e apresentar as ideias e referências do projeto, rascunhos de imagens, layouts e até mesmo "animatics" antes do lançamento. "Alguns projetos até caem, literalmente, se essas pesquisas identificam que o público não tem interesse em tal ideia. Num projeto como o filme do Sonic seria primordial o estúdio ter ouvido seu público, principalmente porque se trata de uma das franquias de game mais bem-sucedidas da história."

Ele questiona se o estúdio de fato seguiu esse caminho. "Se fez, como é possível que tenham errado a mão de forma tão grosseira?", pergunta.
A outra alternativa é apresentar o produto final ao público através de pesquisas e coletar as opiniões antes do lançamento ao grande público. "Geralmente os grandes estúdios fazem as duas coisas quando se trata de um produto com investimento gigante: pesquisa antes de começar a pôr a mão na massa, e pesquisa depois, com o produto quase finalizado."

Esse processo de pesquisas qualitativas, diz Araripe, tem um alto custo, que muitas vezes superam o valor do filme publicitário.

No caso de "Sonic - O Filme", ele lembra que o erro inicial causou não só um prejuízo no orçamento de produção e pós-produção, mas também atrapalhou o calendário de lançamento — o filme originalmente sairia nas férias e fugiria do lançamento do próximo "Star Wars".

Araripe cita como exemplos positivos de empresas que souberam ouvir o público — muitas vezes pelas redes sociais, a melhor ferramenta de "pesquisa orgânica", segundo o especialista.

Filme "Super Mario Bros" (1993), com Bob Hoskins e John Leguizamo - Reprodução - Reprodução
Filme "Super Mario Bros" (1993), com Bob Hoskins e John Leguizamo
Imagem: Reprodução

Um desses casos é quando a Netflix, identificando a carência de obras de qualidade que representassem a vida nas periferias, associou-se ao maior produtor de conteúdo para esse público no YouTube e lançou a série "Sintonia" — segundo ele, um exemplo de quem soube reconhecer a audiência e o contexto cultural.

Houve ainda o cancelamento da série "Sense8", em que o público "fez um tsunami de reclamações e ameaças à empresa". "O que ela fez? Ouviu, refletiu e fez um episódio especial, um longa-metragem de despedida. Isso serviu para aumentar a relação de paixão com a marca."

Outro exemplo é a série "Lucifer", da Fox, que também foi alvo da fúria dos fãs quando foi cancelada. "A Netflix ouviu tudo, comprou a série e a fez ressurgir como produto próprio. Resultado? Amor incondicional do público e a confirmação de mais uma temporada."

Recentemente a Amazon fez o caminho inverso quando a Netflix cancelou a série "The Expanse". A concorrente ouviu as reclamações, comprou a série e está na iminência de lançar uma nova temporada.

O produtor lembra ainda os casos clássicos das novelas, em que os personagens mudam de destino ao longo da jornada, ou por desagradarem ao público (alguns chegam a ser eliminados da história), ou o oposto, quando caem nas graças dos espectadores e ganham mais relevância e tempo de tela.

Episódio final de "Sense8", com duração de longa metragem - Reprodução - Reprodução
Episódio final de "Sense8", com duração de longa metragem
Imagem: Reprodução

Adriana Amaral, professora e pesquisadora do Programa de Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos) e líder do CULTPOP (Grupo de Pesquisa em Cultura Pop, Comunicação e Tecnologias), também lembra da formatação das telenovelas para mostrar que esse tipo de interação, embora seja tendência, não é nova — mas tem mudado. "A diferença é que era um acompanhamento diário", diz.

Nostalgia no ar

No caso de "Sonic - O Filme", o deboche serviu de combustível para o buzz. "Eu acompanhei a tiração de sarro em cima do personagem. Algumas pessoas ficaram decepcionadas porque o personagem, agora, estava bem. E outros diziam o contrário. Tem sempre esse embate das audiências, principalmente através do Twitter e outras plataformas."

A pesquisadora afirma que a cultura pop vive se reciclando e que o apelo à nostalgia é uma forma de chegar a um público novo, que não conheceu o personagem. O vespeiro é que, como estamos no terreno da memória afetiva, ela pode resultar em um produto conservador. "Sempre tem quem diga 'ah, no meu tempo era melhor'."

Coincidência ou não, é difícil lembrar de algum filme inspirado nos games que não tenha sido um retumbante fracasso. A lista, segundo o jornalista Pedro Zambarda, editor-chefe do site Drops de Jogos, é extensa: "Street Fighter", "Mortal Kombat", "Super Mario Bros.", "Prince of Persia". "Acho que, em geral, existe uma expectativa, mas as histórias de jogos não se enquadram bem no cinema. No videogame elas têm lacunas maiores e é preciso dar espaço para o jogador pensar. No cinema isso fica oco."
Games inspirados em filmes, em contrapartida, têm mais chances de dar certo, segundo ele. Um exemplo é "Spider-Man 2", do Playstation 2, e as extensões da saga "Star Wars" em jogos distintos.

A própria indústria dos games está também cada vez mais atenta à reação do público, segundo Camila de Ávila. Um exemplo é o jogo "No man's sky", que foi se modelando em novas versões conforme as manifestações — e a fúria — do público se revelavam nas redes. "Existe uma forte cultura de modding nos jogos em que, a partir do código, os jogadores recriam suas versões e melhorias. Existem alguns jogos, como 'RuneScape', 'Doom', 'Age of Empire' e 'GTA', que possuem uma participação muito forte da comunidade do jogo."

Em "RuneScape", conta a pesquisadora, os desenvolvedores lançaram a versão "Old School RuneScape" após realizarem uma pesquisa com a comunidade do jogo. "Isso aconteceu por conta da evolução de 'RuneScape 2', com mudanças na forma de combate que geraram críticas. Hoje, 'Old School RuneScape' possui mais jogadores do que a versão mais recente, 'RuneScape 3'. O jogo é reconhecido por ter a participação de sua comunidade para contribuir com o melhor desempenho, tendo votações abertas se determinada melhoria entra ou não no jogo."