Crise política faz "Cannes brasileira" agonizar no interior paulista
"Sabe a Liz Taylor pondo os pés no petróleo em 'Assim Caminha a Humanidade'? Fui o primeiro ator a pisar em Paulínia. Isso eu vou jogar na cara de vocês".
Em julho de 2009, a empolgação do ator Ney Latorraca, um dos atores de "Topografia de um desnudo", um dos primeiros filmes rodados no Polo Cinematográfico de Paulínia, contrastava com o ceticismo de quem, quatro anos antes, via no projeto, que incluía ainda um festival de cinema, mais um sintoma de megalomania do então prefeito Edson Moura.
Um desses céticos era o crítico de cinema João Nunes, autor do recém-lançado "Paulínia - Uma História de Cinema" (Paco Editorial). Em um artigo publicado no jornal Correio Popular, reproduzido no livro, ele ironizava: "Festival Internacional de Cinema em Paulínia? Que coisa mais exótica! Cannes que se cuide?"
A desconfiança era justificável. Com cerca de 70 mil habitantes na época, Paulínia não tinha sequer sala de cinema quando o prefeito decidiu converter o dinheiro das refinarias de petróleo, principal atividade econômica da cidade, em cinema. A ideia era que, no futuro, quando a fonte de recursos natural se esgotasse, o município pudesse viver da produção, exibição e da exportação de filmes.
Para isso, foi construído um complexo com estúdios, uma escola de formação e um teatro para 1.350 espectadores onde, entre 2008 e 2014, aconteceram seis edições de um dos mais importantes e efêmeros festivais de cinema do país.
Foi lá que Fernanda Montenegro, mestre de cerimônias da inauguração, declarou: "Paulínia é Paulínia a partir deste teatro". Foi lá também que o ator e diretor Selton Mello, ao ver a sala lotada para o filme "O Palhaço", declarou ter presenciado a melhor sessão de cinema de sua vida.
E foi lá que um grupo de cinéfilos lançou a pedra fundamental da Abraccine, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema. "Os fatos me desmentiram", escreve João Nunes no livro.
Grana que brota
Vizinha a Campinas (SP), Paulínia tem um parque industrial petroquímico robusto e é cidade-sede da Replan, a maior refinaria de petróleo do Brasil, em operação desde a década de 1970.
Era uma cidade rica — a arrecadação de impostos é imensa — e sem grandes atrativos culturais. Até que Edson Moura, prefeito da cidade nos anos 1990 e 2000, anunciou o projeto de construção de um complexo cinematográfico na cidade, em 2005. A obra foi erguida em tempo recorde. Em 2007, a primeira produção começou a ser gravada ali, e em 2008, Paulínia promoveu seu primeiro festival de cinema.
"Edson Moura relata os números precisos: o teatro ficou em R$ 89 milhões, na escola de animação foram investidos R$ 25 milhões só em equipamento e os estúdios custaram R$ 20 milhões — estes, construídos em parceria com os Estúdios Quanta de São Paulo. O custo total de todo o projeto de governo — que vai além do polo de cinema - foi em torno de R$ 490 milhões. Esse montante inclui: teatro, shopping, estúdios, escolas e os terrenos instalados ao fundo do Parque Brasil 500. 'Comprei essa área porque eu tinha o projeto de um distrito cinematográfico, como Hollywood. Hoje, se a prefeitura quiser vender os terrenos, vai ganhar muito dinheiro. São três milhões de metros quadrados. A prefeitura pode arrecadar bilhões com a venda", escreve Nunes.
Com a bênção de Rubens Ewald Filho
Idealizador do complexo, o prefeito Edson Moura, segundo o autor, não era exatamente reconhecido pelo repertório cultural. Ele ficou popular na cidade graças a um programa de TV em que recebia cantores sertanejos. Suas referências em cinema eram limitadas, o que o levou a buscar ajuda de um crítico de cinema midiático para levar à cidade um "festival" como o de Hollywood.
O cinéfilo contratado como consultor era Rubens Ewald Filho (morto em junho de 2019), que precisou explicar ao prefeito que a festa de entrega do Oscar não era exatamente um "festival", e sim uma premiação, e que se ele quisesse se inspirar em um evento de exibições deveria conhecer Cannes, na França. Assim foi feito.
Para Nunes, que chegou a ministrar cursos para os jornalistas da cidade desacostumados a coberturas do tipo, Ewald Filho foi responsável por abrir as portas e dar legitimidade ao festival. "Ele era uma persona. Dava entrevistas. Tinha a visibilidade que o prefeito queria quando ninguém acreditava nele."
Outra sacada foi a nomeação, como secretária de Cultura, de Tatiana Stefani Quintella, executiva com experiência na Warner Bros. e na Sony Pictures.
De Dudamel à SWU
Os realizadores em busca de dinheiro e locações não demoraram a perceber que havia um pouco de tudo na região — de casarões do século 19 na vizinha Joaquim Egídio a hotéis de luxo, passando por cenários de periferia e o centro urbano de Campinas, utilizados em filmes como "Salve Geral" (2009), de Sérgio Rezende.
Se no começo o projeto rendia piadas e o apelido pejorativo de "Hollywood Caipira", aos poucos diretores, jornalistas e críticos de cinema se dobraram. Com o dinheiro que jorrava das refinarias e pingava no complexo, passavam despercebidas até mesmo as seis colunas gregas que o então prefeito fez questão de instalar na frente do teatro, um dos mais modernos equipamentos culturais do país.
"Só ouvi meu filme assim em Locarno", disse, em referência ao festival suíço, o cineasta Carlos Reichenbach depois de exibir "Falsa Loura" e receber o troféu Menina de Ouro no primeiro festival.
No livro, Nunes conta que Anna Muylaert prometeu a ele conceder uma entrevista na noite de apresentação de "É Proibido Fumar", em 2009. Ela pediu apenas para assistir alguns minutos da sessão e observar a reação da plateia. Ficou tão encantada com o som que não queria mais sair.
Assinado pelo arquiteto Ismael Solé (do escritório Solé Associados, o mesmo da Sala São Paulo), o projeto do teatro contou com a consultoria de técnicos de som dos estúdios de George Lucas. Nunes lembra que foi ali que ouviu a Sétima Sinfonia, de Gustav Mahler, sob o comando do maestro venezuelano Gustavo Dudamel. "Escutei detalhes, nuances e particularidades da composição que passam despercebidos em outras salas", narra.
Em seu apogeu, a cidade chegou a contar com quatro equipes de filmagens trabalhando simultaneamente no polo. Em 2010, a prefeitura estimava que um terço de toda a produção cinematográfica nacional passava por ali.
Cerca de 40 longas-metragens foram rodados em Paulínia com o auxílio do patrocínio dos editais lançados pelo município, entre eles "O Palhaço" (2011), "Bruna Surfistinha" (2011) e "Chico Xavier" (2010).
O complexo colocou Paulínia no mapa cultural do país e puxou outras atrações como o festival de música SWU, que em 2011 levou à cidade nomes como Kanye West e Black Eyed Peas.
Dinheiro na mão é vendaval
Narrado em primeira pessoa, o livro refaz a trajetória de ascensão e queda de um projeto abortado em meio a uma crise política que levou a 13 trocas de prefeitos desde 2013 — o atual, Du Cazellato (PSDB), tomou posse no início de outubro após vencer uma eleição suplementar convocada depois da cassação de Dixon Carvalho (PP) por abuso de poder econômico.
Ao ser empossado, Cazellato afirmou que o caixa estava praticamente zerado. Detalhe: Paulínia possui, atualmente, o maior o maior PIB per capita do país: R$ 314,6 mil.
O aperto econômico foi a razão para que o então prefeito José Pavan Jr., ex-aliado rompido com o antecessor e idealizador do polo, anunciasse, em abril de 2012, o cancelamento da quinta edição festival de cinema na cidade.
Naquele ano, a verba destinada ao festival era de R$ 10 milhões, que o governante prometeu repassar "às causas sociais". Na época, a prefeitura arrecadava cerca de R$ 1,2 bilhão (em valores atualizados), mas, segundo o mandatário, quase 80% do valor era destinado à folha de pagamento e em gastos obrigatórios.
"Ninguém discute que é preciso investir na questão social. Mas uma coisa não exclui a outra. Na Europa e nos EUA, a produção cultural é responsável por uma cadeia industrial imensa. No Brasil o descaso é absoluto", lamenta Nunes.
Síndrome da Descontinuidade Mórbida
A construção do polo em Paulínia mudou a rotina do autor. Ele conta que percebeu a importância do projeto quando esbarrou em um set de filmagem às portas de sua casa.
"Eu tinha matéria todo dia. A assessoria me ligava: 'João, o Rodrigo Santoro está aqui, quer falar com ele?'." Segundo o jornalista, Paulínia trazia um ar novo para uma região que tinha perdido relevância cultural nas décadas anteriores. "Alguma coisa estava acontecendo. O público estava descobrindo o festival. Cobri festivais em diversas cidades como jornalista. Vi muitas vezes as salas completamente vazias. Em Paulínia, tirando a primeira edição, que foi um caos, o teatro vivia cheio, e não só na abertura e no encerramento. Lembro de quando exibiram um documentário sobre o pai da Regina Casé e ela não tinha onde sentar." Nem tinha hotel para todo mundo.
Das noites memoráveis, João Nunes lembra de debates com os diretores de "Cinco vezes favela - agora por nós mesmos" e com o documentarista Eduardo Coutinho (1933-2014).
Ele lembra também que muitos profissionais e produtoras de cinema começaram a se instalar em Paulínia atraídos pelo polo e pelo festival.
Nunes decidiu escrever o livro após visitar um amigo na cidade, em 2018, e se deparar com o estado de abandono do complexo. Pudera: quando boa parte da estrutura ficou pronta, o festival acabou.
No dia 21 de outubro, a reportagem do TAB esteve no local e confirmou o cenário descrito no livro, com construções abandonadas, paredes pichadas, vidros quebrados e estruturas mal conservadas no entorno do teatro e dos estúdios, onde foi construído um shopping, uma rodoviária e um hotel.
No shopping, o movimento não era puxado por artistas, e sim pelo Detran e uma agência bancária. No teatro, a maior atração anunciada era um stand up com o comediante Matheus Ceará. "Há algum tempo ouço produtores reclamarem também dos camarins abandonados", diz Nunes.
A última produção rodada na cidade foi a novela "Jezabel", da RecordTV. Segundo uma funcionária, as gravações foram encerradas em maio de 2019. Desde então, tudo está parado. "Parece que agora tem só uns bagulho de dança ali", contou um funcionário que cortava a grama em frente ao prédio onde fica a Escola Paulínia Magia de Cinema. Ele se referia às aulas oferecidas pela prefeitura nas salas do local.
"A cidade virou um Velho Oeste", diz o autor, para quem Paulínia seguiu o roteiro de estúdios cinematográficos como Vera Cruz, Cinédia e Atlântida. "No Brasil sofremos da Síndrome da Descontinuidade Mórbida."
Um microcosmo do país
No auge da euforia brasileira com o pré-sal, o selo de investimento e o crescimento econômico dos anos 2000, Paulínia era o símbolo da pujança nacional.
Em 2014, logo que o festival foi retomado, para morrer novamente pouco depois, tinha como atrações Danny Glover, Jacqueline Bisset e Abel Ferrara. "O prefeito dizia aos estrangeiros: 'se aí vocês gastam US$ 50 milhões, aqui gastam US$ 20 milhões. Temos estúdios, teatro com som de primeira, locações de todo tipo, e condomínios que copiam os subúrbios americanos'", recorda Nunes.
Em março de 2019, Edson Moura e seu filho, o também ex-prefeito de Paulínia Edson Moura Júnior, foram condenados à prisão pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região por crimes como sonegação fiscal e falsidade ideológica. Eles recorrem em liberdade.
Em 2017, quando um esboço de retomada do projeto foi noticiado, Ewald Filho foi nomeado secretário da cultura da cidade. Ficou menos de três meses no cargo. O fim do festival teve um impacto profundo no autor, que cita Djavan ao dizer que Campinas voltou a conviver com o "deserto e seus temores".
"Paulínia mudou o cenário do cinema brasileiro, para além do Masp e do Cristo Redentor. Como observador e como personagem, posso dizer que Paulínia repercutiu em mim. A decepção foi muito grande. Foi a melancolia que me levou a escrever este livro", diz Nunes.
Tanto anos depois, Nunes diz não saber explicar exatamente o que levou ao rompimento entre Edson Moura e seu sucessor, mas atribuiu à querela a pá de cal no projeto. Vê na relação uma tragédia shakespeareana, repleta de personagens ambiciosos em um cenário de reis, palácios e paixões. Após deixar o cargo em 2013, José Pavan Jr., o "vilão" do livro, retomou o posto e, em 2015, pela segunda vez em três anos, cancelou novamente o festival.
A reportagem enviou questionamentos a ele e à atual administração de Paulínia. Até o momento, não houve resposta.
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