O preço da 'melhor versão de si': mercado do autoconhecimento gera bilhões
Mapa astral, páginas do Instagram com mensagens motivacionais, coaching, mindfulness, terapia. Parece que por todos os lados tem gente procurando se conhecer melhor, ter melhores resultados na vida. Se você teve essa impressão nos últimos anos e fica com aquela pontinha de preocupação ao ver que todos os seus amigos estão fazendo terapia e tomando suco verde, saiba que ela se confirma em números.
Uma pesquisa da Market Research divulgada em outubro de 2019 mostra que o mercado do melhoramento pessoal já movimenta quase US$ 10 bilhões anualmente nos Estados Unidos — e se estima que ultrapasse US$ 13 bilhões até 2022.
Além da tradicional sessão de terapia há livros de autoajuda, aplicativos, cursos, retiros espirituais... A lista de opções para quem quer investir em si mesmo só cresce. Cris Nunes que o diga. A jornalista de 34 anos, que gasta R$ 1.000 mensais nessa área, justifica que o autoconhecimento é um investimento que ela prioriza. "É muito dinheiro, mas é um investimento em mim mesma, não tem como parar. Sempre tem alguma coisa na vida que está te fazendo mal, e eu sei que é possível melhorar se eu olhar para isso", explica.
No artigo Improving Ourselves to Death (Melhorando a nós mesmos até a morte, em tradução livre), publicado na revista The New Yorker, a jornalista Alexandra Schwartz avalia como esse mercado se transformou nos últimos anos para se adaptar aos anseios dos nossos tempos conectados. Se na década passada a moda era pensar positivo à la "O Segredo", livro de autoajuda lançado em 2006, na era atual de avanços tecnológicos rápidos e resultados facilmente metrificados, o crescimento pessoal também exige resultados comprováveis. "Já não é suficiente imaginar nosso caminho até um estado mental melhor. Agora, precisamos tabelar nosso progresso, contar nossos passos, anotar nosso ritmo de sono, ajustar nossas dietas, registrar nossos pensamentos negativos — e então analisar os dados, recalibrar, e repetir", analisa Schwartz, com base em quatro livros que abordam esse mercado sob diferentes aspectos.
É possível ainda medir o fracasso, perceberam os autores do livro "Desperately Seeking Self-Improvement: A Year Inside the Optimization Movement" (Desesperadamente em busca do melhoramento: um ano dentro do movimento de otimização pessoal, na tradução livre), lançado por Carl Cederström e André Spicer no fim de 2017. Eles passaram — como você já deve imaginar — um ano testando as mais diversas técnicas: de dietas líquidas a mindfulness e workshops de masculinidade. Perceberam que não basta viver uma vida plena: é preciso mostrar (nas redes sociais, de preferência) que estamos sempre em busca de melhorar.
Performance até fora do trabalho
Cris Nunes "abriu a portinha do autoconhecimento', como ela mesma diz, quando decidiu estudar astrologia em um momento de crise profissional, após perceber que já havia investido muito em cursos ligados ao trabalho e mesmo assim não sentia que estava avançando. "Depois disso já fiz healing, retiro de tantra, barra de access, trezentos tipos de terapia, meditação, yoga, tudo", conta. Hoje, Cris está também do outro lado do negócio e lê tarô, além de manter o trabalho em uma agência de produção de conteúdo.
O misticismo reina no autoconhecimento millennial, mas o melhoramento pessoal vem nas mais diversas configurações, inclusive em cursos de grandes instituições. No início de 2019, a PUC do Rio Grande do Sul lançou uma pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional, com aulas de Luiz Felipe Pondé, Leandro Karnal e Lya Luft, entre outros nomes bastante conhecidos. Não é barato, e as vagas para a turma presencial se esgotaram.
O curso de 360 horas-aula pode ser feito presencialmente, em Porto Alegre, ou online, de onde o aluno estiver. Na modalidade presencial, custa R$ 11.020, e a versão online sai por R$ 9.360. Luciano de Jesus, coordenador do curso e professor de filosofia, afirma que já são quase mil inscritos em todo o Brasil, somando as duas modalidades.
"A maioria dos alunos busca [o curso] por conhecimento pessoal. Até tem certa vocação filosófica, mas quer que o curso seja útil para a vida concreta: para a carreira, para mudar a visão de mundo", relata de Jesus. "Mesmo na graduação de filosofia temos a busca de muitos alunos diplomados, que estudam por diletantismo. Mas a pós é mais light, eu quis fazer filosofia para não filósofos", explica.
O professor começou a conversa contando que recebeu tempos atrás um comentário depreciativo no Facebook, comparando o curso a autoajuda — termo do qual ele quer se distanciar. "Autoajuda é um tipo de literatura mais fácil, e a ideia do curso é aprofundar o autoconhecimento. Não é uma questão nova em filosofia, é talvez a mais antiga de todas", avalia, ao citar a máxima grega "conhece a ti mesmo".
Cris não tem ressalvas quanto ao termo autoajuda. "Não vejo de uma forma pejorativa. Você está aqui para se lapidar como ser humano, é válido. Não acho que vim aqui só para atualizar meu perfil no LinkedIn e pagar boleto", diz a jornalista.
Em uma coisa ambos concordam: você pode dar o nome que quiser, mas tem gente séria e charlatã em todas as áreas. De coaches que prometem mudar sua vida em poucas sessões aos professores de cursos que se veem mais "iluminados" do que quem não busca autoconhecimento nessa mesma configuração.
"Em alguns casos, você se sente guiado por uma pessoa com postura arrogante, totalitária", conta Júlia Neiva, publicitária de 28 anos que faz diversas atividades de crescimento pessoal. Ela também é voluntária na Base Colaborativa, uma organização que realiza projetos sociais e cursos de desenvolvimento. "Quando a pessoa que está te guiando trata como se aquele fosse o único caminho, pode ter uma influência negativa", avalia.
"Precisamos ter muito cuidado ao lidar com a vida, e principalmente com o sofrimento das pessoas", diz Luciano de Jesus. "Sair por aí oferecendo soluções mágicas é criminoso, para ser suave no termo." Júlia, por exemplo, começou a focar em autoconhecimento depois de desenvolver síndrome do pânico. Ela fez acompanhamento psicológico, mas sentiu que precisava de algo mais.
"Comecei a ficar incomodada. Aos 23 anos estava tomando remédios muito fortes, que me ajudavam, mas também me deixavam meio anestesiada e afetavam muito quem eu era", relata. Inicialmente, ela procurou meditação e, assim como Cris Nunes, foi descobrindo outras possibilidades. Fez retiros de silêncio, cabala, ritual com ayahuasca e o Panapanã, processo com que ela mais se identificou e onde agora atua como voluntária. "Tudo isso não sai barato. E num país igual ao nosso, com 13 milhões de desempregados, pessoas vivendo com muito menos do que o mínimo necessário, é um privilégio poder investir tempo e dinheiro nesse tipo de coisa", reconhece a publicitária.
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