'Se tem sangue, me interessa': as mulheres que querem ser peritas criminais
Pouco antes de a quarentena ser decretada na capital paulista, cerca de 20 pessoas chegaram cedo a um hotel na zona sul da cidade para assistir ao curso "Local de Crime", ministrado pelo casal de peritos criminais Rodrigo Wenceslau e Débora Lira Colombelli. Ao longo de oito horas, o casal explicou o básico da profissão e as várias etapas do concorridíssimo concurso público, e mostrou fotos explícitas de cenas que viram em Costa Rica (MS), cidade onde estão alocados. Dos 17 alunos, 15 eram mulheres.
A perícia criminal é uma das carreiras da polícia científica, um ramo da atividade policial que aplica métodos específicos para a coleta de provas materiais que ajudam a deduzir a ordem dos fatos e a autoria do crime investigado. Pelos desafios exigidos pela área, como analisar cenas de crimes violentos, manipular cadáveres e correr diversos riscos em locais insalubres, a profissão costuma ser mais associada aos homens.
No curso ministrado pelo casal de peritos mato-grossenses, a presença de mulheres jovens cursando ensino superior em áreas das ciências biológicas era considerável, derrubando o estereótipo de ser uma profissão masculina. "95% das pessoas que nos abordam para perguntar sobre a profissão e fazer nossos cursos são mulheres", conta Rodrigo Wenceslau. Débora Colombelli, perita especialista em papiloscopia (identificação por impressões digitais), confirma. "Quando comecei, era bem equilibrado o número de homens e mulheres. Hoje vejo muito mais mulheres querendo seguir carreira, não só na parte de criminalística mas também na polícia convencional", conta.
Na reta final do curso, as participantes tiveram de formar grupos para analisar a cena de crime improvisada por Wenceslau com uma boneca, além de colher digitais no automóvel do casal. Não empolgou tanto quanto as fotos de cenas de crime mostradas através do projetor, com rostos borrados para ocultar a identidade dos cadáveres. "Temos sempre de ser imparciais em nossa profissão, mas ser imparcial não é ser insensível", conta Colombelli. "No começo da carreira, algumas mulheres podem sofrer um pouco ao entrar em contato com cadáveres e cenas de crimes violentos, mas elas se adaptam rápido. As pessoas que frequentam os cursos me parecem bem mais resolvidas nesse sentido. Ninguém se importa muito com as tragédias, acredito que muitas até gostem de ver. Tenho certeza que foi [a série de tv] 'CSI' e a internet que despertaram todo esse interesse na perícia."
Porta de entrada para a ciência?
No mercado de trabalho brasileiro, as mulheres saem na frente em termos de formação superior, mas a presença feminina em áreas mais voltadas para a atividade científica é menos expressiva. A ciência forense pode representar uma porta de entrada menos convencional nesse campo.
Um fenômeno muito semelhante foi registrado nos Estados Unidos. Em publicações de ciência forense, pesquisadores acreditam que seriados de televisão com temática policial e protagonistas femininas atuando como peritas ajudaram no crescimento da participação de mulheres nessas áreas. Ainda que a presença feminina não seja tão marcante nas áreas STEM (sigla em inglês para Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática), é avassaladora na ciência forense: os principais cursos especializados para trabalhar na área de ciência forense são feitos por mulheres, alguns até somando acima de 70%.
Nayra Reis, presente no curso dos peritos em São Paulo, abandonou o curso de Direito para cursar Farmácia, uma graduação que lhe pareceu mais útil na jornada para se tornar perita criminal. "Quero trabalhar em laboratório na polícia científica", conta a estudante, que nos últimos três anos vem se preparando para o concurso público. "Já tenho experiência com isso, por causa do meu trabalho. Se eu cair em Local de Crime, tudo bem, mas vai exigir um pouco mais de trabalho psicológico."
Durante o curso, Nathaly Rodrigues Rosa, estudante de Ciências Biológicas, compartilhou sua experiência de testemunhar um caso de violência doméstica grave na própria família. "Não foi minha principal motivação para buscar essa área, mas com certeza a busca pela justiça me dá forças", afirma. Rosa diz nem considerar uma segunda opção de carreira. Toda a sua preparação acadêmica é voltada para se tornar perita. "A área policial e criminal foi onde me encontrei. Estou disposta a mudar de cidade se abrirem um concurso em outro estado", diz.
Trabalho sujo, mas apaixonante
As mulheres só começaram a ser aceitas na polícia brasileira a partir da segunda metade do século 20. É natural, portanto, que homens ainda sejam maioria na atividade policial, mas a presença feminina na polícia científica já é considerável nos Institutos de Criminalística de diversos estados brasileiros. No Pará, por exemplo, a polícia científica conta com 45% de mulheres no efetivo. No Rio Grande do Sul, onde a perícia é realizada por um órgão autônomo vinculado à secretaria estadual de segurança pública, mulheres já ocupam cargos de chefia.
"Hoje, no Instituto-Geral de Perícias, as funções de chefias e diretorias são em sua maioria exercidas por mulheres", conta Mariana Pellizzari, perita criminal do Rio Grande do Sul. "A chefe da Seção de Atendimentos de Locais, a Diretora do Departamento de Criminalística e a Diretora-Geral do IGP-RS são todas mulheres. No meu dia a dia, trabalho com peritas, papiloscopistas, fotógrafas criminalísticas e motoristas mulheres."
Pellizzari é formada em Medicina Veterinária e trabalha há mais de dez anos como perita criminal em Porto Alegre, a sétima capital mais violenta no país. Nos último cinco, tem se dedicado exclusivamente a atender locais de crime. Para ela, o trabalho é apaixonante. "Às vezes é até um pouco constrangedor dizer que amo atender locais de morte. Tenho compaixão pelas pessoas e pelas situações, lamento as mortes, mas quando atendo procuro ser profissional, afastando o viés emocional do meu trabalho. Tenho paixão pelo atendimento, pela proposição da dinâmica dos fatos, pela busca da verdade e por poder dar voz a quem já não tem: a pessoa morta", explica.
Em São Paulo as mulheres representam 32,4% dos peritos criminais no Instituto de Criminalística, vinculado à Superintendência da Polícia Técnico-Científica (SPTC). Entre elas está Maria Paula Valadares, trabalhando também há mais de uma década atendendo ocorrências de crimes contra a pessoa na capital paulista.
"Quando entrei percebi, claro, algum machismo, como ir até um local de crime e ser recebida com espanto pelas pessoas por ser mulher e mais jovem na época. (...) As pessoas achavam estranho uma mulher mexendo no cadáver ou tirando um enforcado da corda. Mas o número foi se equilibrando dentro da instituição. Antes a maioria das mulheres mais antigas na instituição trabalhavam nos setores internos, não estavam na rua. Estavam por exemplo nos laboratórios de química e biologia, ou nos núcleos de documentoscopia, que são bastante femininos. Hoje em dia os efetivos dos plantões são bem mais equilibrados. Tem mais mulheres fotógrafas, mais mulheres legistas", conta Valadares.
A busca feminina pela boa formação acadêmica em áreas relacionadas à ciência forense também é um fator determinante para o crescimento do número de mulheres na polícia científica. "As mulheres estão muito bem formadas, e isso agrega valor para a instituição, porque temos profissionais com mestrado e doutorado ingressando na área", explica a perita, graduada em Química e doutora em Biotecnologia pela Universidade de São Paulo (USP).
O interesse nos concorridos concursos públicos para o cargo de perito criminal é alto, mesmo com a rotina puxada do cotidiano da polícia científica. Os plantões passam de 24 horas, ainda há pouca infraestrutura para uma boa investigação e o contato intenso com crimes violentos exige uma estrutura psicológica firme para que o profissional não se deixe afetar. Mas as peritas acreditam que certas características socialmente relacionadas ao gênero feminino, como a atenção aos detalhes, se encaixam perfeitamente nas exigências da profissão.
"Cuidado, atenção e capricho na realização de um trabalho são características muito relacionadas ao feminino na sociedade. E é uma profissão apaixonante, cada vez mais divulgada pelas mídias, redes sociais e até em seriados. (...) Às vezes a pessoa acha o trabalho bonito, mas deve atentar que poeticamente pode até ser bonito, mas na realidade das ruas o trabalho da perícia é exaustivo, arriscado, sujo e impactante. Vemos todos os dias miséria, violência extrema e uma face da sociedade que fica escondida para a maioria, e além de atender os locais elaboramos laudos complexos, criando um volume bastante elevado de trabalho. É preciso vocação e boa equilíbrio mental para trabalhar na área", afirma Pellizzari.
Interesse pelo gênero "true crime" também é predominantemente feminino
As alunas do curso têm diferentes motivos para desejar seguir uma carreira de perita criminal, mas uma característica em comum é gritante: todas são ávidas consumidoras de séries, podcasts, livros e canais de YouTube sobre crimes verdadeiros, gênero conhecido como "true crime".
"Gosto muito de acompanhar canais de YouTube sobre crimes. Em especial sobre serial killers, sobre os quais eu adoro pesquisar. Uma época fiquei bem interessada na história do Ted Bundy, mas virou moda", conta Marina Ferrarezi, estudante de Biomedicina.
"Se tem sangue, eu me interesso", revela Cristiane Reis, administradora de pet shop que está estudando para prestar concurso. "Nunca assisti novelas, mas acompanho matérias jornalísticas. Sempre assisto esses telejornais com notícias de mortes. (...) Pode parecer meio mórbido, mas quando era criança eu adorava acompanhar enterros. Sempre queria entender como a pessoa morreu, o que era aquela marca roxa na pele do defunto. Fiz curso técnico de enfermagem para entender algumas coisas. A parte macabra da profissão é o de menos pra mim."
Grande parte das mulheres presentes no curso mencionou os filmes "A menina que matou os pais" e "O menino que matou meus pais", cujos lançamentos foram adiados por causa da pandemia, e contam a história de Suzane von Richthofen e dos irmãos Cravinhos. O roteiro é assinado por Raphael Montes e pela escritora e criminóloga Ilana Casoy, uma das mais conhecidas especialistas brasileiras em mentes criminosas.
Ivan Mizanzuk, idealizador dos podcasts "AntiCast" e "Projeto Humanos", diz que se impressionou com a grande audiência feminina que a quarta temporada do "Projeto Humanos" conquistou investigando o assassinato brutal do menino Evandro Ramos Caetano, cometido em 1992 no litoral do Paraná, supostamente por um culto satânico.
"Minha audiência em "O caso Evandro" teve picos de audiência feminina que ultrapassaram 50%", conta. "Em um primeiro momento não parece grande coisa, mas segundo a Podpesquisa, o público de podcasts é bastante masculino. Em 2018 era 84% masculino, e em 2019 passou para 72% masculino e 27% feminino. Ainda são poucas as mulheres que escutam podcasts. Sabemos disso porque os podcasts brasileiros vêm de uma cultura nerd, um grupo um pouco complicado para mulheres. (...) Por isso, quando vejo a média de ouvintes mulheres no Brasil e vejo que metade da audiência de "O caso Evandro" é feminina, é muita coisa."
Em alguns episódios de "O caso Evandro", Mizanzuk narra detalhes macabros e bastante chocantes do crime, afastando os mais fracos de estômago. "O curioso é que muitos homens entraram em contato dizendo que não conseguiam ouvir o programa porque eram pais. Com as mulheres ouvi relatos parecidos, mas ao mesmo tempo lembro sempre de uma ouvinte dizendo que era viciada no podcast por ser uma coisa que ela podia ouvir enquanto amamentava o filho (risos)."
O interesse por true crime não se restringe apenas a quem deseja seguir carreira na polícia. Segundo escritoras que exploraram o grande interesse feminino em crimes macabros, múltiplos fatores explicam esse fenômeno — mas sem oferecer nenhuma resposta fácil.
"Uma explicação comum é que histórias de crimes verdadeiros permitem que mulheres explorem sua vulnerabilidade e falem a respeito dela. Ler um caso sobre um stalker que assassinou a namorada pode ser uma forma de uma mulher processar as próprias ansiedades", especulou Rachel Monroe, jornalista dos EUA que escreveu um livro sobre o tema, em entrevista ao jornal inglês The Guardian.
Assassinato, ela escreveu
Na ficção, não são poucas as personagens femininas que se debruçam sobre crimes violentos para descobrir os responsáveis. Agatha Christie, a mais notória escritora do gênero policial, criou a detetive amadora Miss Jane Marple em contraponto ao rabugento policial belga Hercule Poirot. Nos livros de Thomas Harris, a agente do FBI Clarice Sterling se consulta com Hannibal, o sofisticado serial killer antropófago. Na televisão são inúmeros os exemplos de mulheres trabalhando com investigação policial, como as investigadoras da equipe do "CSI: Las Vegas", a investigadora de crimes sexuais Olivia Benson em "Law & Order: Special Victims Unit" e assim por diante.
Mulheres conduzindo investigações criminais com o sangue frio necessário para analisar uma tragédia não marcam presença somente na ficção. Mulheres também foram responsáveis pelo avanço da área no mundo real, como no caso de Frances Glessner Lee, cientista norte-americana considerada a "mãe da ciência forense" por ter inventado os dioramas — pequenas casas de bonecas que reproduzem cenas de crimes. Os dioramas são usados até hoje para treinar investigadores de homicídios e desenvolver suas habilidades de observação em cenas de crimes reais.
A antropóloga forense Clea Koff é outro nome ilustre da área, por ter trabalhado com uma equipe designada pela ONU para exumar corpos das vítimas dos genocídios de Ruanda e posteriormente no Kosovo. Koff trabalha hoje em Los Angeles com identificação de cadáveres de identidade desconhecida, e publicou um livro sobre sua profissão chamado "Bone Woman" ("Mulher dos Ossos", em tradução livre).
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.