Suruba pelo Zoom: em tempos de Covid-19, grupos 'afetivos' vão além do sexo
Suruba não é bagunça. É lugar de "desconstrução do patriarcado, autoaceitação, carinho, afeto, amizade e amor".
Essa é a proposta de dois grupos de suruba afetiva de São Paulo, Petit e Aconchego. Eles nasceram de uma insatisfação com espaços liberais como casas de swing, que, segundo os participantes, atendem à demanda sexual, mas deixam a desejar quando o papo é afetividade.
Criados antes da pandemia, os grupos seguem mais operantes do que nunca durante a quarentena. O período de isolamento os fez ganhar força. As rodadas de nudes acontecem no WhatsApp; reuniões maiores e mais quentes, no Zoom. E, como a ideia é compartilhar afeto, quem participa afirma se sentir à vontade para conversar e desabafar.
A biomédica Carla*, de 36 anos, trabalha em um hospital, o que a coloca numa situação de vulnerabilidade, tanto física como emocionalmente. Ela garante que o apoio de membros do Aconchego tem sido fundamental para encarar o dia a dia e a quarentena sozinha em casa.
"Estou lidando com a questão do vírus de perto e sempre recebo mensagem de carinho deles, me dando uma palavra, me apoiando. Fico em casa muito sozinha, então me chamam por vídeo e conversamos bastante. Está sendo muito importante a presença do grupo neste momento, porque são pessoas completamente diferentes que se apaixonaram e querem estar juntas o tempo todo, mesmo de longe", conta a biomédica.
Eduardo Fonseca, de 33 anos, ajuda a organizar os encontros (presenciais e virtuais) do Aconchego, e também participa do Petit. Ele conta que não há uma periodicidade, mas o movimento no WhatsApp é intenso e as conversas rolam quase que 24h, todos os dias, com assuntos que vão de sexo a problemas pessoais, pedidos de sugestão de cortes de cabelo, pandemia e vídeos de pessoas do grupo tocando violão em homenagem aos membros. "Estamos 'comportados', em contato, ansiosos e com altas expectativas para o que vamos fazer depois do isolamento social", diz.
Sistema "matriarcal"
Mônica* (nome fictício) é a organizadora dos encontros do Petit, que antes da Covid-19 eram marcados via WhatsApp e aconteciam trimestralmente, desde dezembro de 2018, em grandes suítes de motel. A formação é uma espécie de dissidência de uma festa liberal organizada somente por mulheres que acontecia anualmente e era divulgada pelo Facebook.
"Os encontros eram muito espaçados e comecei a questionar os valores cobrados. Não achava inclusivo. Teve festa que chegou a custar R$ 150. Um dia estava com um ex-namorado, que frequentava esses ambientes comigo, e decidimos fazer um 'petit comité' [pequeno grupo] da festa que íamos, e assim surgiu o nome", conta Mônica.
O que não mudou da "festa-mãe" foi o "sistema matriarcal" que rege a suruba. Nela, os homens que querem participar precisam seguir regras de convivência determinadas pelas mulheres do grupo. Os homens, segundo Mônica, podem palpitar, mas quem bate o martelo são as mulheres. E isso vale tanto para quem está chegando agora quanto para quem já foi aceito.
Solteiros em quarentena
A organizadora explica que, para entrar para o Petit, os parceiros das mulheres que conhecem o grupo precisam de mais de uma recomendação. Homens solteiros, além da recomendação, passam por um período de 'quarentena'. Quando um homem não segue as regras, outros homens ficam responsáveis por tratar do assunto. "São problemas causados pela socialização de homens, eu já lido com isso todos os dias, não quero lidar nas festas também. Eles que se resolvam com a masculinidade tóxica deles. Nós, mulheres, temos mais o que fazer."
Eduardo Fonseca ressalta a importância de os encontros serem organizados por mulheres e destaca a amizade e o respeito como trunfos para o sucesso das surubas. É uma oportunidade de rever suas atitudes como homem.
"Me ajudou a perceber melhor o homem que eu sou, lidando com minhas inseguranças, com meus sentimentos, e em ser transparente comigo e com quem está envolvido nisso. Me ajudou ainda a lidar com sentimentos tóxicos como competitividade, inveja e ciúmes", afirma.
Suruba feminista
O diretor de arte Paulo*, de 44 anos, participa dos dois grupos de suruba afetiva. Paulo frequenta os encontros com sua companheira, Ana*, que já organizou festas do gênero. O casal chegou até esse formato de suruba quando se sentiu cansado das dinâmicas do swing. E foi entre os amigos e amigas poliamoristas e em relações livres que criaram um ambiente mais fraterno para expressar desejos e sexualidade.
Mas tem que organizar direitinho para todo mundo transar com segurança.
"Isso é um aprendizado para os homens que se movem pelos desejos primários. Não é porque todo mundo está nu que é obrigado a alguma coisa ou se sente pressionado. Tem a ver com estar ali vivendo o que é consentido. É um encontro afetuoso, que envolve dinâmicas de aproximação de contato, carinho. Você se sente protegido. No homem, deixa de prevalecer o lado animal e fluem outros caminhos. Uma evolução muito grande da própria sexualidade", afirma o diretor de arte.
Mas, quem pensa que instituir um sistema matriarcal num ambiente que envolve sexo é fácil, esquece. Encontrar homens "preparados" para encarar esse processo de desconstrução dá trabalho.
Ana conta que quando os encontros começaram a crescer, não havia como não impor regras. Mesmo que houvesse a participação dos homens, a maioria das decisões eram discutidas por mulheres.
"Quem dita o conforto, bem-estar e como as coisas acontecem são as mulheres. Existe uma dificuldade muito grande de encontrar homens que realmente tenham uma cabeça pronta para participar dessas festas e círculos. É uma desconstrução muito grande do machismo", desabafa.
Os laços de amizade criados são tão grandes que os encontros vão além das festas trimestrais. Pequenos encontros acontecem na casa de alguns participantes, além de baladinhas que podem ou não terminar em suruba. Essa dinâmica, segundo Fonseca, é o que garante a legitimidade das amizades construídas nesses espaços.
Aceitação e liberdade
Maria* está num relacionamento com seu parceiro há cinco anos. Porém, cada um vivia suas experiências sozinho, num esquema que ela chama de "não pergunte, não conte". Apesar dos diversos acordos, a carreira era solo.
A decisão de não trazer novas pessoas para o relacionamento era de Maria, que carregava inseguranças. Mas a abertura começou aos poucos. Durante dois meses, tentaram inserir outra mulher no sexo, mas a fetichização não a agradava. "Percebi que não me sentia tão confortável com algumas coisas, por exemplo, o fetiche por parte de algumas meninas que queriam ficar com um casal como uma experiência de descoberta sexual delas e também as relações de sexo por sexo. E, em todas as tentativas, rolava uma pressão muito grande na minha cabeça", conta.
Foi então que Maria e seu companheiro foram em uma festa com 50 pessoas, em uma suíte de motel, após a indicação de um amigo. Para a surpresa do casal, a liberdade e o consentimento marcavam o ambiente. Sem pressão, a diversão foi garantida e as amarras, afrouxadas.
"Essa experiência me ajudou inclusive a rever com outros olhos o meu próprio corpo, pois quando 50 pessoas estão peladas, todas são lindas. E aí percebemos que todas as pessoas são lindas, cada uma a seu modo, sempre, e que o desejo vai muito além do físico", declara.
Mas não é só para as mulheres que esses encontros se tornam um grito de libertação. Mônica, a organizadora da Petit, conta que em uma das festas presenciou uma cena entre homens que chamou sua atenção.
"Vi cinco homens nus na piscina conversando sobre suas inseguranças. Um falava sobre o tamanho do pênis, o outro sobre a quantidade de pelos nas costas, sobre sua barriga, sobre a voz não ser grossa. Eles estavam se ajudando. E isso é o que mais me dá tesão no rolê inteiro", conta.
"Novas formas de vida"
A formação desses grupos aponta tendências de comportamento que vêm sendo observadas na sociedade. A sexóloga Gabriela Dias relembra que o princípio básico do diálogo deve permear todos os tipos de relação, monogâmicas ou não, e alerta para os cuidados necessários para que o processo seja saudável.
"O casal que entra nessa tem que estar muito bem alinhado. As mulheres carregam cobranças diferentes homens e isso as coloca num lugar de maior atenção, uma vez que podem se sentir desconfortáveis. O diálogo é a chave."
Para a psicóloga Eleni Bougiotakis, não há novidade nessa abertura. Mas a formação de grupos de suruba afetiva expressa novas necessidades da vida moderna. "As pessoas querem ativar outras formas de vida. É sempre uma busca de afetividade. Para a psicologia, há sempre uma carência, mesmo no prazer. Fico contente que as pessoas queiram chegar ao objetivo real da vida, que é o amor, o cuidado, a proteção, a escuta. No paralelo, esses grupos vivem todos os prazeres que eles precisam e querem ter. Mas, agora, a orientação é ficar em casa. Esse é o momento de ampliar conexões de outra maneira", afirma.
*nomes trocados a pedido dos entrevistados
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