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Autora de 'Valéria', estreia da Netflix, fala sobre a Espanha dos 'nem-nem'

A escritora espanhola Elísabet Benavent, best-seller espanhola e autora de "Valéria" - Divulgação
A escritora espanhola Elísabet Benavent, best-seller espanhola e autora de 'Valéria' Imagem: Divulgação

Luiza Sahd

Do TAB

06/05/2020 04h00

A Espanha parece uma fábrica de sucessos na Netflix. Na esteira de sucessos como "La Casa de Papel", "Vis a Vis" e "Elite", a plataforma de streaming aposta, mais uma vez, em uma produção original espanhola para o seu catálogo. A série "Valéria" estreia dia 8 em 190 países, mas já nasce como um hit consagrado. Por trás dela está Elísabet Benavent, uma gigante do mercado editorial espanhol.

Aos 36 anos, a escritora — também conhecida como Beta Coqueta por seus seguidores apaixonados do Instagram — já lançou 20 livros. O primeiro deles, "En los zapatos de Valeria", ainda sem tradução no Brasil, foi disponibilizado na Amazon em 2013 pela própria autora. De lá para cá, Benavent ganhou editora, transformou Valéria em personagem de uma saga de cinco volumes, escreveu outros 15 livros e já vendeu 2 milhões de cópias para leitores de uma Espanha que se encontra em crise econômica aguda desde 2008.

Numa leitura rápida, os livros "Valéria" falam dos dilemas da geração 'nem-nem' (sem estudo e sem trabalho) numa pegada "Sex and the city". Benavent, ela própria, se define como autora de comédias românticas contemporâneas. Em suas sagas, dilemas típicos da geração millennial ganham lente de aumento e são tratados sem um pingo de cinismo. Paradoxalmente, parece ser esse o segredo do sucesso entre leitores de uma geração tão cínica.

Por causa da pandemia, Benavent conversou com TAB por videochamada, de sua casa em Madri — cidade onde a série "Valéria" foi rodada. Por duas vezes, a fala da autora foi abafada por ruídos de sirenes nas ruas, embora a situação esteja melhorando por lá. A capital espanhola deve sair do estado de alarme em 11 de maio, quando a população voltará a ter permissão para visitar amigos ou familiares.

Ao TAB, ela fala sobre sucesso, pandemia, geração Y, política e amor.

TAB: Como é a sensação de ver seu primeiro trabalho literário ganhar as telas e ser exibido para pessoas de 190 países diferentes... Em meio a uma pandemia?

Elísabet Benavent: Um pouco complicado. Tínhamos muitos planos para esse lançamento e tivemos que nos adaptar às circunstâncias. Não é o lançamento que queríamos, mas, pelo menos, as novas tecnologias estão a nosso favor e a recepção tem sido muito boa. Estou muito emocionada, sentido vertigem, mesmo. Quando escrevi a saga, não cogitei que meu trabalho pudesse sequer ser lido por tanta gente da Espanha. Imaginar as meninas de "Valéria" viajando para tão longe é algo que nunca tive nem tempo de sonhar.

TAB: Por falar em pandemia, como você vê o futuro desta geração? Os millennials devem ficar ainda mais desconfiados e frios nos relacionamentos ou podem se tornar um pouco menos ariscos?

EB: Algo vai mudar. Só não sei quanto essa mudança dura, porque a gente esquece muito rápido de tudo que acontece. A humanidade é maravilhosa para algumas coisas, mas costuma repetir os mesmos erros. A história está repleta desses tropeços. Olhando ao redor, vejo as pessoas querendo sair de casa para ficar junto de quem se gosta, para trocar abraços e rever prioridades. Pode ser que a pandemia sirva para reorganizar nossas prioridades, porque ela chegou como uma bofetada para quem andava distraído nesse sentido. Antes de tudo isso começar, eu andava super preocupada com a melhor forma de gerir meu tempo para conciliar trabalho e vida pessoal. De repente, aconteceu tudo isso na Espanha e minha única prioridade passou a ser viver, ver as pessoas com saúde e poder voltar a sair de casa. Respondendo à sua pergunta, eu, particularmente, vou sair dessa morrendo de vontade de abraçar e beijar as pessoas.

TAB: Em "Valéria", a gente nota como as pessoas de 25-30 anos lidam mal com seus sentimentos e com o amor. O que acontece no coração da geração Y, de quem você tanto fala?

EB: Acho que somos uma geração que teve sempre as necessidades primárias mais supridas do que as anteriores. Então, parece que colocamos mais foco nas emoções... sem ter recebido uma educação emocional adequada. Isso nunca foi uma prioridade na nossa formação, e ainda lidamos com tabus, como o preconceito contra a psicoterapia. Compartilhar emoções pode ser assustador: a gente tem medo de ser ferido, tem medo de ser chato, de ser rejeitado. Daí, a gente esconde tudo. Mas, repito: somos muito privilegiados. Isso embaralha um pouco as coisas.

TAB: Por falar em privilégios, a série também aborda as maiores dificuldades dos jovens adultos de Madri hoje: o desemprego, a gentrificação e, finalmente, o volume assustador de gente com 30 ou 40 anos que segue morando com os pais. Erramos em algo?

EB: Quero acreditar que não temos culpa. A gente faz o que pode. Nossos pais quiseram nos proporcionar toda a escolarização possível, somos uma geração muito bem preparada intelectualmente, mas em 2008 uma crise mundial despencou sobre nossas cabeças justamente quando estávamos a ponto de ingressar no mercado de trabalho. Foi tipo "bom, esqueça seus sonhos e contente-se com o primeiro trabalho mais ou menos fixo ou minimamente bem pago que você conseguir". Sendo que "bem pago" não significa que você chegue a ganhar mil euros ao mês. Enquanto isso, o aluguel de um estúdio com um quarto em Madri passa a custar 900 euros. Então, a gente está fazendo algo errado? Acho que não. Poderíamos culpar as pessoas, a especulação imobiliária, a corrupção? Mas essas coisas são cíclicas. Faltou um pouco de sorte, mas ainda assim essa geração fez coisas muito importantes: vemos grandes cientistas, tecnologias impensáveis até pouco tempo, tivemos muitos avanços também. Então quero pensar que nós lutamos com as ferramentas que temos.

TAB: Como autora best-seller e agora com a estreia na Netflix, você se sente mais responsável do que antes pelo seu próprio poder de influência?

EB: É algo que venho arrastando comigo há algum tempo. Não por achar que sou muito influente, mas por notar, nos lançamentos de livros, que meus leitores são cada vez mais jovens. Essa gente que ainda está se formando, aprendendo, não é tão experiente e forma suas opiniões sobre modelos de relações através daquilo o que consome. Acabou passando pela minha cabeça que preciso mostrar, nas minhas histórias, exemplos de relações saudáveis — ou que fique muito claro no enredo quando uma relação não é saudável. Ando bem centrada em transmitir a mensagem de que o amor não dói, de que ninguém é a metade da laranja de ninguém, que todo mundo é 100% si mesmo, que não existe maneira mais certa ou mais equivocada de ser mulher. Vou aprendendo enquanto escrevo, então é claro que tenho medo de não saber muito bem o que estou fazendo. Tento não deixar que isso interfira muito no processo criativo, mas somos responsáveis tanto pelo que dizemos quanto pelo que omitimos.

Cena de 'Valéria', nova aposta de produção original da Netflix rodada na Espanha - Divulgação - Divulgação
Cena de 'Valéria', nova aposta de produção original da Netflix rodada na Espanha
Imagem: Divulgação

TAB: Você já foi cobrada para tornar seus romances mais politizados ou menos pop? Foi por isso que abandonou o Twitter recentemente?

EB: Faço entretenimento e tento manter meus romances à margem de questões políticas. É claro que o pano de fundo de todas elas é a sociedade e o momento cultural em vivemos — e isso ecoa nas histórias. A gente já tem muita política e muito problema em que pensar, então prefiro que a politização não invada meu trabalho de forma massiva. No Twitter, tive problemas. Achei que o objetivo de todas as redes sociais fosse a conexão entre pessoas, com troca saudável de opiniões, mas ali se respira muita hostilidade. Você diz "gosto de maçã" e te escrevem da associação de produtores de cereja dizendo que a fala foi ofensiva. Não se pode fazer humor — e olha que o meu humor é politicamente correto: sou abertamente feminista, participo de mobilizações e não gosto de piadas muito transgressoras. As redes sociais são como janelas por onde entra muita luz, mas há também gente demais escondendo frustrações por trás dos avatares e isso torna a dinâmica bem tóxica.

TAB: A relação através de telas — como a paquera via aplicativo — também obedece a essa lógica?

EB: Tenho amigas em relações de dois, três anos, muito saudáveis, que começaram por causa do Tinder. O problema é que nem sempre a gente segue o tempo adequado de cada coisa quando usa esse recurso. Talvez, nos aplicativos, as pessoas se relacionem não de maneira insalubre, mas menos consciente. Isso pode resvalar no que chamo de "fast-food emocional".

TAB: Sobre o que você acha que vai estar escrevendo daqui a 10 anos?

EB: Não tenho ideia. Isso me inquieta porque publiquei "Valéria" há sete anos, mas foi escrito há 10 anos. Tudo mudou muito. Nessa profissão, a gente mal sabe onde está hoje. Só desejo que, daqui a 10 anos, eu saiba me moldar ao espírito do tempo.

TAB: "Valéria" envelheceu bem ou precisou ser muito atualizada para ir ao ar?

EB: Fizemos muitas trocas em parceria com a equipe de roteiro. Imagine que, no livro, as amigas trocavam SMS? Nem existia WhatsApp. A personagem da Lola anotava os contatos dos caras que pegava em uma agenda vermelha, de papel. Em 2020, a Lola virou rainha do Tinder. Madri também era diferente há 10 anos e, quando escrevi a saga, tinha 25 anos e pensava muito diferente. Olhando para o livro hoje, vejo que tinha valores muito heteropatriarcais, ingênuos. A gente adaptou a série com mulheres mais fortes, independentes e com menos obsessão de encontrar o amor da vida delas. A Valéria do livro era tão vidrada no Víctor que se esquecia que tinha acabado de lançar um livro e ia lançar o segundo, deixava a própria vocação em segundo plano. Agradeço que, agora, a personagem tenha sido atualizada.