Mundo pós-pandemia: como podemos aprender a cultivar a resiliência
Fugir foi um dos primeiros impulsos após a pandemia do novo coronavírus estourar e inundar o noticiário no mundo todo.
No fim de março, um casal canadense saiu aterrorizado do Quebec e rodou 5,5 mil km para tentar escapar do Covid-19 no longínquo território indígena de Yukon. Nos primeiros dias de abril, após a declaração de estado de emergência deste lado do mundo, jovens japoneses surtaram e subiram a hashtag #EscapeTokyo, movidos pelo instinto de fugir da capital, maior foco de Sars-Cov-2 por aqui, e se isolar no interior do arquipélago asiático. Na época, um mochileiro paulista quis quarentenar no Alasca, no estilo "Na Natureza Selvagem", livro (que virou filme) da famosa história do andarilho americano Christopher McCandless (1968-1992).
Nenhuma das fugas deu certo: os canadenses foram expulsos do território, os japoneses viram o vírus se espalhar pelo país, e o brasileiro precisou ser resgatado de helicóptero.
Os exemplos são extremos, mas mostram como a pandemia foi um tipo de gatilho para o instinto de sobrevivência, um impulso imediato e irracional na busca por autopreservação. Isolamento, incerteza, medo e a torrente de informações têm provocado angústia e agravado quadros psiquiátricos e psicológicos - e viver sob esse sentimento de alerta máximo instigou fugas impensadas, fazendo com que as pessoas esquecessem que a casa é o lugar mais seguro para se estar agora.
"Todo mundo está operando um pouquinho no 'modo sobrevivência'. Nessa hora, é mais difícil conseguir pensar em ser feliz, filosofar e refletir. Mas talvez dê para 'abrir brechas', pensar novas práticas e quebrar hábitos, ainda que à força", apostou o psicanalista Lucas Liedke no UOL Debate sobre ser feliz na pandemia.
Fugir de casa, agora, é tão arriscado quanto fugir da realidade e das próprias emoções, negando ou deixando de encará-las de frente. "Quando não lidamos bem com o medo, ele acaba se tornando pânico, que e? uma forma de desequilíbrio das emoções", diz ao TAB Gustavo Arns, professor de psicologia positiva na pós-graduação da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).
A palavra do momento é "resiliência", a habilidade de superar situações adversas e se adaptar a novas realidades, transformando experiências negativas em aprendizados para a vida. Não é conversa de coaching: já está em andamento um estudo internacional sobre resiliência psicológica diante do trauma da pandemia, liderado pelo Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental da Universidade de Coimbra (Portugal) -- que contará com cientistas de 18 países, entre eles, Brasil, Itália e Japão.
Resiliência é um tipo de elasticidade emocional, que não necessariamente tem a ver com ser feliz, pregar "leveza" ou filosofia "good vibes". Mas, assim como não há chave para pausar o "modo sobrevivência", não há fórmula mágica para ativar o "modo superação". Então onde, afinal, nasce a resiliência?
Psicologia positiva
Instinto e resiliência são expressões do comportamento humano, que dependem de diversos fatores. "Diante de uma ameaça iminente, podemos ser mais conduzidos por processos automáticos associados aos instintos de sobrevivência. Na pandemia, é possível que muitos sejam mais levados pelo pânico de ficar sem suprimentos alimentares, pelo medo de morrer ou pela possibilidade de perder recursos financeiros, enquanto outros tendem a não se deixar levar tanto", pondera o psicólogo Cristian Zanon, professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
"Isso não significa que eles não tenham temores, mas, ao invés de se preocupar na maior parte do tempo (e sofrer intensamente com isso), eles podem buscar alternativas plausíveis para lidar com as adversidades da melhor forma possível", acrescenta Zanon, autor do estudo "Covid-19: Implicações da psicologia positiva em tempos de pandemia", que será publicado na revista Estudos de Psicologia. Resiliência, argumenta o artigo, é "essencial para o enfrentamento das adversidades derivadas da pandemia".
Segundo ele, a resiliência resulta de um misto de personalidade e desenvolvimento pessoal. Se de um lado pesam características hereditárias como a capacidade de auto-regulação emocional, de outro, é possível aprimorar a habilidade a partir da psicoterapia, exercitando a autocompaixão e o otimismo.
Autocompaixão é olhar para si mesmo e compreender as limitações impostas pelo momento. Alguém pode se martirizar por não conseguir ser produtivo, por dormir mal ou comer demais na pandemia, por exemplo. Ou se sentir culpado por não ter ticado as conquistas "escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho" na quarentena. Mas, como bem resumiu a jornalista Nina Lemos, colunista do UOL, "sim, as coisas estão péssimas e você tem o direito de ficar mal sem sentir culpa."
Assim, de acordo com Zanon, é preciso considerar o contexto como um todo para não se sentir um fracasso "e sim um ser humano normal" que está sofrendo, de diferentes maneiras, diante de uma crise inédita. "Muitos estão sob condições semelhantes (ou até piores). Esta mudança de perspectiva pode reduzir o estresse e a ansiedade", aponta. De acordo com a tese, você deve se tratar como você trata seu melhor amigo, isto é, com compaixão.
"Essa dor é nossa. É a dor do mundo", definiu Monja Coen, no UOL Debate. Referência do zen budismo no Brasil, a líder religiosa defende um equilíbrio entre a busca de bem-estar individual e o reconhecimento do que está acontecendo ao nosso redor. Quer dizer, resiliência envolve autocompaixão (como destaca Zanon), mas também compaixão (como diz Coen).
Otimismo, por sua vez, é a expectativa de um futuro positivo pós-pandemia. "Isso não significa ser ingênuo, passivo ou esperar que tudo se resolva magicamente. Ser resiliente não significa simplesmente 'pensar positivo', mas conseguir lidar com adversidades agora. E ninguém é resiliente em todos os contextos e para sempre", lembra Zanon.
Positividade tóxica
"Não precisamos ser 'Polianas' e ver tudo belo, mas também nem tudo é catastrófico. Cada um de nós vai ser o guardião da sua saúde emocional e tudo isso vai passar", destacou a psicóloga Dorli Kamkhagi, Laboratório de Neurociências do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), referindo-se à resiliência.
Nos últimos tempos, o embate entre otimistas e pessimistas marca discussões sobre como sobreviver à pandemia. "Para os primeiros, já estamos saturados de más notícias e infelicidades, portanto, por que não olhar para o lado bom da vida e tomar, devagarinho, a metade que sobra do copo cheio? Para os ditos pessimistas, a vida boa é a vida intensa e o maior intensificador de experiência que pode existir é saber que aquilo com o qual se está é real", ilustrou o psicanalista Christian Dunker, professor da USP e colunista do UOL.
Otimistas veem pessimistas como propagadores do caos e conflitos. Pessimistas veem otimistas como "iludidos e idealistas". Para Dunker, o otimismo não nos protege do pior e pode se tornar tóxico quando passa a negar a realidade.
Se fugir não é o melhor remédio e sentir medo é normal, o que faremos com o medo daqui para frente?
A jornalista americana Eula Biss se faz essa pergunta no livro "Imunidade" (Todavia, 2017), um misto de diário e investigação científica sobre sua busca obsessiva por saúde após o nascimento de seu filho, durante a pandemia - outra, a de influenza (H1N1) -- de 2009.
O medo, argumenta a autora, muitas vezes é instintivo: ela temia o fato de ser mãe de primeira viagem, longe da família, anêmica e delirando de fadiga. Entretanto, estava tomando todas as precauções possíveis de higiene e tinha condições financeiras para passar pelos dias difíceis. O aprendizado, escreve Biss, é que se vivemos assustados o tempo todo, perdemos perspectiva dos "riscos reais" e nos desesperamos, o que abre brechas para imprudências". Segundo ela, é preciso entender que podemos nos proteger "até certo ponto".
Assim, além de perspectiva, resiliência pede tempo. "É uma força interna, que nasce dentro da gente e cresce diante da adversidade", define Gustavo Arns, da PUC-RS. Pode parecer simples, mas não é -- principalmente para quem está tentando sobreviver a um dia de cada vez na tempestade. "A gente precisa de tempo para conseguir perceber como a gente saiu mais forte. E pensar: daqui a uns cinco anos, quando lembrar do período da pandemia, será que eu vou me orgulhar das minhas ações ou de quem me tornei?", indaga.
Pois, "sim, a tempestade passará, a humanidade sobreviverá, a maioria de nós ainda estará viva -- mas habitaremos um mundo diferente", escreveu o historiador israelense Yuval Noah Harari, o guru-autor do best-seller "Sapiens" (L&PM, 2015). Pós-pandemia, nem o mundo nem nós seremos mais os mesmos. Mas sairemos melhores?
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