'Cara no sol': vozes LGBTQs+ se consolidam como filão na música brasileira
"Qualquer maneira de amor vale aquela. Qualquer maneira de amor vale amar." São versos emblemáticos como este, escritos por Caetano Veloso e Milton Nascimento, em 1975, que traduziam o sentimento e as questões LGBTQ+ na música brasileira, muito embora "Paula e Bebeto", aparentemente, não contasse a história de um casal gay. Durante décadas, a comunidade buscou seus hinos em letras que não falavam necessariamente sobre gênero e sexualidade e, muitas vezes, sequer trazia um personagem ou narrador LGBTQ+.
A relação desse público com a música brasileira mudou com "Zero", canção romântica de Liniker e os Caramelows, lançada sem muita pretensão no YouTube, em 2016. Versos como "a gente fica mordido" e "deixa eu bagunçar você" falavam de um afeto sem distinção de artigos e gêneros, mas a presença da cantora trans, com seu vozeirão carregado de blues, fez a diferença.
Em pouco mais de uma semana, a canção gravada de forma amadora somava 1 milhão de visualizações. Ninguém sabia ainda, mas a música seria um marco na consolidação de artistas LGBTQ+ na música brasileira — algo que já vinha sendo gestado dentro de uma bolha com ousadia e criatividade.
"Esses silenciamentos em outras décadas não eram só uma questão de não ter espaço ou não conseguir gravar um disco. Eram também a falta de espaço no debate, porque não se chegavam nos termos, nem nas questões", observa o pesquisador Renato Gonçalves, em entrevista ao TAB. "O objeto é atemporal, a leitura é que é sempre histórica. É nosso contexto que vai ressignificar."
Novos artistas, público novo
Doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), Gonçalves analisa o discurso LGBTQ+ na música brasileira ao longo dos anos em seu livro "Questões LGBT e Música Brasileira Ontem e Hoje" (disponível gratuitamente em formato digital) e observa que, apesar de ter representantes fortes na indústria musical, havia uma lacuna de corpos representativos e vivências mais explícitas. O olhar do público e a discussão em jogo também eram outras.
"Os gays sempre olharam muito para as cantoras, como Adriana Calcanhotto, Ana Carolina, Marina Lima, Zélia Duncan. Só mulheres lésbicas, todo mundo reconhecia isso e sabia que tinha alguma coisa diferente. Mas só agora a gente vai entender, ter o repertório para pensar a questão de gênero e sexualidade", explica. "A mesma coisa da Cássia Eller. Claro que a questão LGBTQ+ estava ali, mas a gente reconheceu a grandeza e a importância dela em relação à questão do casamento homoafetivo, a questão da parentalidade homossexual só agora."
O jogo mudou da metade dessa década para cá, quando jovens artistas colocaram a cara no sol e a própria vivência à frente de canções. É o caso do rapper Rico Dalasam, que movimentou, em 2015, a cena do rap com versos sobre relacionamentos com outros homens, e Pabllo Vittar, que em 2017 tomou de assalto o Carnaval — e segue em ascensão meteórica.
Hoje, Pabllo é a grande referência de drag no mundo da música, e foi convidada para se apresentar este ano no famoso festival Coachella, nos Estados Unidos (suspenso por causa da pandemia). Apesar de ter sua música voltada para as pistas, com letras que falam de paixões fugazes e sentimentos universais, há algo poderoso quando a performance de Pabllo chega na TV aberta — principalmente quando apresentadores ficam na dúvida se usam o artigo masculino ou feminino para definir sua persona drag. Uma discussão impossível de existir em outras épocas, mas que evidencia uma mudança de comportamento no mundo. A arte, como sempre, serviu de antena para captar o espírito do tempo.
"A coletividade é uma insígnia dessa onda. Hoje, a gente tem um público que se interessa mais por esse assunto, que se identifica com essas pautas e passa a apoiar e incentivar lançamentos. Criam-se redes de divulgação e incentivo desses artistas. Essa identificação é como um gesto político, uma forma de apoiar os artistas locais num momento tão conturbado. A questão política não é o principal, mas atravessa", explica Gonçalves.
Força da onda
Se, há cinco anos, ainda existia a dúvida se a onda era apenas modismo, a trajetória desses artistas prova o contrário. Com a repercussão orgânica de sua música, Liniker conseguiu gravar o primeiro álbum, "Remonta", com auxílio dos fãs, e hoje prepara sua estreia solo. Linn da Quebrada também usou do crowdfunding para o lançamento do seu début, "Pajubá", e hoje experimenta novas formas de comunicação no cinema, com o documentário "Bixa Travesty", além de fazer trabalhos na TV, como a participação na série "Segunda Chamada" as entrevistas ao lado de Jup do Bairro, no programa "TransMissão", do Canal Brasil.
O trio As Bahias e a Cozinha Mineira, liderado pelas cantoras Raquel Vírginia e Assucena Assucena, beberam direto da fonte da MPB de Gal Costa e Caetano Veloso, conquistando uma indicação ao prêmio Grammy Latino em 2019, ao lado de Mahmundi e Liniker. Pabllo e Majur gravaram, em 2019, a música "AmarElo", ao lado de Emicida, somando vozes e vivências na releitura do clássico de Belchior, "Sujeito de Sorte".
Conquistas importantes para artistas que nasceram e sobrevivem de forma independente. "Essa onda LGBTQ+ pegou também a questão da mudança da indústria da música de uma forma irreversível. E elas só poderiam ter surgido nesse ambiente", opina Gonçalves. "Esses trabalhos independentes, agora, ganham reconhecimento institucional e cultural, estão sendo absorvidos por um sistema de legitimação. É uma consolidação mercadológica, mas não somente. É também institucional."
A validação rendeu parcerias com marcas e uma rede de apoio entre os próprios artistas, fazendo com que, a cada ano, a cena fique ainda mais diversa, com a chegada de artistas como Potyguara Bardo, que brinca com o fantástico em suas letras e apresentações, Getúlio Abelha, que aposta no visual "camp" e na inspiração no forró eletrônico, e Bia Ferreira, que com a bossa de seu violão dispara versos sobre sua vivência lésbica e negra. Parceira de Linn da Quebrada, Jup do Bairro lançou, no último dia 10, um EP autoral, com letras profundas e reflexivas sobre as muitas vidas e mortes da comunidade LGBTQ+ — outro trabalho financiado pelos fãs.
A onda foi tão forte que mudou até mesmo o comportamento de artistas de uma fase anterior, como Filipe Catto, Thiago Pethit, Juliana Perdigão e Lulu Santos, que passaram a se firmar como vozes LGBTQs+. "Essa geração, cada vez mais, está fazendo conexões interseccionais, atrelando a questão de gênero com a questão da mulher, a questão racial. Virou um um filão cultural dentro da música brasileira com uma pluralidade de voz e uma visão racializada."
Mudança é cultural
Para Gonçalves, essa onda chegou a ser apontada nos anos 1980, quando Marina Lima, Angela Ro Ro e Ney Matogrosso cantavam sobre amores e prazeres sem restrições. Mas a década que começou com o anúncio da revolução sexual chegou ao seu fim triste e careta. "Tinha tudo para dar certo, se não fosse o HIV, que veio solapar todas as conquistas", observa.
Isso talvez explique o grande lapso geracional, inclusive entre os artistas. "Nos anos 1980, era tudo sapatão e viado, na linguagem popular. Hoje, a gente entende as múltiplas sexualidades, discutem-se gênero e sexualidade como nunca antes. Havia as feministas norte-americanas, mas era uma discussão que não chegava aqui", observa.
Já era assim nos anos 1970, quando Caetano Veloso e Gilberto Gil apareciam com visual mais andrógino, o cantor Ronaldo Resedá dançava ao som da disco music e Odair José, que sempre olhara para a população marginal em suas canções e cantava sobre "entendidos" — gíria na época para denominar quem era gay.
"Todo produto cultural é fruto de uma época. Ter artistas LGBTQs+ consolidados também mostra a consolidação desse assunto na cultura. Veio pra ficar, não vamos voltar atrás, por mais que a Damares [Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] queira. O sucesso desses artistas é um recado em relação a isso e aos avanços de sexualidade e gênero no debate", diz Gonçalves.
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