Topo

Por que brasileiros radicados nos EUA estão preparando seus testamentos

Leandra Guerra, que vive nos Estados Unidos, com a família - Arquivo pessoal
Leandra Guerra, que vive nos Estados Unidos, com a família Imagem: Arquivo pessoal

Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

16/07/2020 04h00

Foram as histórias norte-americanas que inspiraram a bióloga brasileira Maria Helena Carneiro, de 43 anos, há 20 radicada em Nova York, a passar seus últimos desejos para o papel. Assustada com a escalada de mortes por Covid-19 nos Estados Unidos em abril, ela decidiu deixar prontos seguro de vida e testamento de tutela.

"Não sou grupo de risco, mas teve muita gente infectada no Brooklyn e no Queens. Ouvimos histórias horríveis de pessoas doentes. Fiquei com muito medo do futuro", conta ela, que é casada e mãe de dois filhos, todos instalados no território norte-americano. No testamento, ela definiu que, se algo acontecer com o casal, os filhos pequenos deveriam ficar sob a guarda de sua irmã, que vive no Brasil. É compreensível: os dois "lares" de Maria Helena lideram o número de casos de Covid-19 - até quarta-feira (15), eram 3,5 milhões de infecções nos Estados Unidos e 1,9 milhão no Brasil.

Temer pelo futuro dos dois filhos, nascidos nos Estados Unidos, também motivou a assinatura de apólices da pianista Leandra Guerra, de 48 anos, natural de São José do Rio Preto (SP) e há quase 22 em Nova York. "Não estava nem conseguindo dormir pensando no destino dos meus filhos na minha ausência, pois minha família toda está no Brasil. Não imagino voltar a morar no Brasil, pois fiz minha vida aqui. Então, quis deixar tudo pronto", relata.

Testamentos estão em alta em diversos países. "De uma hora para outra, a pandemia de Covid-19 trouxe uma percepção de finitude que as pessoas não tinham. Ninguém ficava pensando em morte o tempo todo", declarou o advogado Carlos Eduardo Regina ao jornalista Paulo Sampaio, colunista do UOL, que identificou a alta procura de registro de testamentos no Brasil. No fim de março, segundo reportou a emissora estadunidense CNBC, a companhia de serviços jurídicos Gentreo, de Boston, registrou um aumento de 143% de preenchimento de testamentos digitais; na Trust & Will, de San Diego, foram 50% a mais. No fim de abril, a agência britânica BBC destacou uma alta de 50% de testamentos, segundo a empresa Killik & Co, de Londres.

Entre latino-americanos radicados nos Estados Unidos, segundo o escritório Pinhas Law, de Nova York, o aumento foi de 70%. O documento abrange a distribuição do patrimônio material e a indicação de orientações do testador, os últimos desejos. "Mas, na verdade, noto que uma das maiores preocupações dos expatriados é o destino dos filhos, a designação da custódia de menores", avalia a advogada Vitória Pinhas, que atende clientes de países como Brasil, Colômbia e Honduras.

A advogada Vitória Pinhas - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A advogada Vitória Pinhas
Imagem: Arquivo pessoal

Papel passado

O hondurenho Hector Ruiz, de 58 anos, vive há 38 no distrito nova-iorquino de Staten Island. Ao longo de três décadas, ele investiu parte de seu salário no mercado imobiliário da capital de Honduras, Tegucigalpa. "Eu tinha um rascunho de testamento há mais de dois anos. Mas, quando começou a quarentena, resolvi concluir as formalidades. Quero que as casas que possuo por lá fiquem para meu único herdeiro, meu filho de 17 anos", diz.

Segundo Pinhas, uma das vantagens do documento é simplificar o processo do inventário, pois tramita mais rápido. "Independentemente do status imigratório, seus bens são seus. Muitas vezes, as pessoas pensam 'ah, mas eu não tenho nada', não preciso desse documento burocrático. Você pode ter filhos, já é uma questão. Você pode ter joias de família ou itens de valor sentimental, bens que você pode querer que fiquem com alguém que você ama", lembra a advogada.

Josiane Cordeiro Oliveira, de 47 anos, está à espera da primeira neta, que deve nascer até dia 20 de julho. Natural de Ponta Grossa (PR), ela está há sete anos na Filadélfia, onde vende bolos e fatias húngaras para imigrantes brasileiros. "O que guardei aqui, quero que fique para minha filha e minha netinha, que será uma cidadã americana. Talvez um dia, depois da pandemia, vamos todos voltar para visitar a família no Brasil, mas não voltar de vez", diz.

Josiane, Leandra, Maria Helena e Hector se estabeleceram nos Estados Unidos e não pretendem voltar a seus países de origem. Entretanto, como todos têm familiares fora, decidiram pôr no papel seus últimos desejos para que o que conquistaram nos últimos anos não se perca num limbo jurídico. É, afinal, seu legado.

Organizar pendências pensando na possibilidade da morte é um dos espectros que vem rondando a pandemia do novo coronavírus, não só pela busca de valor legal de documentos, mas pelo processo psicológico de encarar a finitude da vida. Doulas, por exemplo, atuam para fazer valer os desejos de seus clientes após a morte -- o que pode incluir o destino de cartas e documentos como o testamento, conforme reportou a jornalista Daniela Arcanjo, para o TAB.

Últimos desejos

"Mais do que nunca, nós estamos sendo convocados a pensar na nossa própria finitude. Morte, luto, despedidas, perdas, rompimentos são tabus de uma sociedade que não gosta de falar das consequências. Mas fato é que elas são realidades, parte natural do ciclo da vida humana", lembra a psicóloga Erika Pallottino, do Instituto Entrelaços e coordenadora do Ambulatório de Intervenções e Suporte ao Luto.

"Testamento é uma forma de se preparar e preparar os outros para a morte -- muitas vezes, a gente não tem tempo ou simplesmente evita pensar nisso", diz ao TAB. Segundo Pallottino, a Covid-19 traz, pela primeira vez, a ideia de morte como desaparecimento de repente: em casos graves, o paciente é internado no hospital, não pode ser visitado e, se o quadro piorar, não tem tempo de resolver questões pendentes nem chance de se despedir de seus entes queridos. "O vírus chegou de uma hora para a outra, e muitas famílias estão começando a conversar sobre isso. É tentar organizar burocraticamente e administrativamente, mas também afetivamente o que vai ficar para trás. Uma revisão do legado", define. É uma tentativa, pois, ainda que todos tentem se preparar para o pior, a morte sempre é um impacto imprevisível para quem fica.

A morte é uma radicalidade que retira a gente da vida, dos nossos lugares de amor e de afeto. Gosto muito de uma frase de Cicely Saunders, que foi a precursora da área de cuidados paliativos, que diz que o evento final é sempre inesperado, mesmo quando esperado. A morte de alguém que nós amamos é sempre um impacto. Frente à pandemia e às mortes múltiplas por dia, reflete a fragilidade e a transitoriedade da vida.

Erika Pallottino, psicóloga

Isso porque, analisa a psicóloga e psicopedagoga Karina Okajima Fukumitsu, autora de "Vida, Morte e Luto: Atualidades Brasileiras" (Summus Editorial, 2018) e coordenadora do curso de pós-graduação em suicidologia e luto da USCS (Universidade de São Caetano do Sul), uma das principais necessidades do ser humano é a segurança que, uma vez ameaçada, compromete a autorrealização.

A psicóloga e psicopedagoga Karina Okajima Fukumitsu - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A psicóloga e psicopedagoga Karina Fukumitsu
Imagem: Arquivo pessoal

"Trabalhamos a vida inteira para que a continuidade de nossos feitos possa se tornar legado para as gerações futuras. No entanto, com o aumento das mortes por Covid-19, tudo está sendo mudado e nada pode ser mais 'previsível' como antes. O boom de testamentos tem relação direta com a necessidade de as pessoas se sentirem minimamente seguras", diz, em entrevista ao TAB.

Qual o sentido de manifestarmos nosso último desejo por meio de um testamento? Obviamente, estamos melindrados durante este tempo de incertezas e constatamos diariamente a angústia de finitude, ao ver a morte se tornando 'vizinha'. As mortes que antes eram números se tornaram nomes e, para lidar com a impotência inerente à fase 'do talvez', e por julgarem que a morte esteja próxima, o testamento tem sua serventia, pois é testemunho de última vontade.

Karina Okajima Fukumitsu, psicóloga

Há pontos psicológicos positivos e negativos na redação de um testamento. O positivo é a tentativa de encontrar segurança e tranquilidade nas questões pendentes possíveis. O negativo é a antecipação: como o testamento é um instrumento que expressa o desejo do aqui e agora, os beneficiados são as pessoas que o testador está se relacionando e, portanto, será direcionado para privilegiar relações mais imediatas, o que, se publicizado, pode provocar conflitos familiares, sentimentos de injustiça, inveja e ciúmes entre quem fica.