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'Idosos morrem sozinhos há anos': doulas da morte agora atuam a distância

Doulas da morte dão apoio aos que enfrentam doenças degenerativas e terminais - Dominik Lange/Unsplash
Doulas da morte dão apoio aos que enfrentam doenças degenerativas e terminais Imagem: Dominik Lange/Unsplash

Daniela Arcanjo

Colaboração para o TAB

26/05/2020 04h00

Quando o novo coronavírus chegou aos Estados Unidos, Diane Button seguiu a orientação de especialistas de saúde: se possível, fique em casa e adapte o seu trabalho para o home office.

Em seu caso, a decisão implicou, por exemplo, continuar ajudando uma cliente que está escrevendo uma carta de despedida. Agora, ela orienta por telefone. "Eu digo: 'se a sua família pudesse estar reunida novamente por uma última vez, o que você diria a eles?' Ela vai me falando e eu escrevo."

Diane Button é uma doula da morte. Doular uma pessoa, função mais conhecida quando uma profissional auxilia a mãe durante o parto, vem ganhando espaço agora na outra ponta, no fim da vida.

A doula oferece conforto físico, espiritual e prático para o seu cliente quando ele está próximo da morte e faz valer seus desejos após seu falecimento. Isso pode significar acender uma vela na cabeceira da cama, entregar uma mensagem, garantir que seu corpo seja cremado e até mesmo resolver questões burocráticas, como testamentos. Outras atribuições estão vetadas, como a aplicação de remédios.

O ofício é menos protocolar do que outros ligados ao momento da partida. A ideia é entender com o cliente quais são suas demandas, os últimos pedidos e questões a resolver. Isso não significa que não seja necessário treino: no Brasil, o primeiro curso para doulas da morte foi ministrado em 2019. O curso foi criado pelas gaúchas Tatiana Santana e Ana Portillo. Antes disso, era preciso buscar orientação fora do país. Em março, começaram as aulas da terceira turma — que agora ocorrem online, por causa da necessidade de distanciamento social.

O trabalho ainda não tem suas atribuições tipificadas no Brasil, mas Santana começa a observar um movimento das doulas para exigir essa regulamentação. "Assim como as doulas de nascimento se organizaram e em alguns locais já são regulamentadas, a gente entende que esse processo vai começar a acontecer com as doulas da morte também", explica.

A procura no Brasil ainda é baixa. Durante a pandemia, porém, Santana, que é enfermeira, relatou maior interesse das pessoas pelo seu trabalho.

É consenso entre os profissionais entrevistados por TAB que deveríamos falar mais sobre a morte. Maria Julia Kovács, professora do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), explica que a pandemia colocou um holofote sobre o tema, mas não antecipa as possíveis consequências dessa mudança.

"Estamos sendo submetidos a uma overdose de imagens de morte em UTIs, com muito sofrimento. (...) Ela invade nossos lares, nossas vidas", explica. "Muitas pessoas estão morrendo sozinhas nos hospitais ou em casa. Familiares e amigos estão sofrendo sem notícias", diz Kovács, que coordena o Laboratório de Estudos Sobre a Morte da USP. "Muita coisa vai mudar, mas ainda não sabemos em que direção."

Para Cristiane Moro, fisioterapeuta há 20 anos e doula da morte, a solidão não é novidade. "Todo mundo hoje fala que a morte por Covid-19 é solitária, porque está muito evidente no momento. Mas vejo mortes solitárias de idosos há muito tempo."

Abaixo, as três profissionais ouvidas por TAB descrevem como têm trabalhado na pandemia.

Tatiana Barbosa é enfermeira e doula da morte em Porto Alegre - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Tatiana Barbiere Santana
Imagem: Arquivo pessoal

Tatiana Barbiere Santana
36 anos
Enfermeira em Porto Alegre (RS)

Iniciei minha vida profissional trabalhando como enfermeira de UTI, mas algo ali me incomodava. Você não se envolve emocionalmente com o paciente, só trata daquela urgência e logo encaminha. A morte se tornava corriqueira. Decidi que queria trabalhar de maneira diferente. Hoje moro em Porto Alegre, mas sou de uma cidade do Rio Grande do Sul que faz fronteira com o Uruguai, um país que tem uma cultura maior em cuidados paliativos. Foi assim que descobri que existiam doulas da morte. Tive que buscar conhecimento, porque na faculdade só se fala em salvar a vida do paciente a qualquer custo, o que não é uma decisão só nossa. Fazer tudo pelo paciente pode ser respeitar a vontade dele e não aplicar nenhum procedimento invasivo. Atuando na pandemia como enfermeira e doula, tenho sentido muito o sofrimento das famílias. O paciente é diagnosticado com a Covid-19, vai para o hospital e a família não o vê mais. Se ele evolui mal e morre, fica uma lacuna enorme. Por isso, nós desenvolvemos algumas possibilidades. Uma delas é a cerimônia online. A gente organiza salas e coloca os familiares, todos conectados. Abrimos o cerimonial falando um pouco daquela pessoa e todos desabafam. Falar sobre essa dor ajuda. Outro ritual que tem sido útil neste momento é o do plantio de uma árvore pela família, designada pelo paciente. Hoje, nossa preocupação com pessoas no final da vida é muito maior. A gente está vendo profissionais exaustos, o sistema de saúde e funerário, a sociedade, o sistema econômico, tudo entrando em colapso. Mas existem coisas que a gente não pode esquecer. Todo mundo tem direito de ter uma morte digna e a criar um ritual de despedida para o seu familiar.

Diane Button, que trabalha como doula da morte na Califórnia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Diane Button, que trabalha como doula da morte na Califórnia
Imagem: Arquivo pessoal

Diane Button
61 anos
Diretora da Aliança Nacional de Doulas da Morte do EUA

Minha filosofia é: quanto mais sabemos o que nos espera no final, mais chances temos de viver uma vida com mais sentido e conscientes do que é mais importante. Essa profissão me transformou tremendamente. Tenho a oportunidade de sentar ao lado de pessoas que estão morrendo e conversar sobre o que faz a vida delas valer a pena. É meu maior privilégio. Para trabalhar durante a pandemia é preciso ser criativo e achar caminhos para se conectar com seus clientes e tentar aliviar a solidão. Hoje, grande parte do meu trabalho é no telefone, porque muitas pessoas idosas se sentem inseguras usando outras tecnologias. Nesta pandemia, estou em mais contato com os meus clientes. Normalmente eu os vejo apenas uma ou duas vezes por semana. Agora, sigo com as sessões fixas, mas gosto de ligar para eles entre as sessões. Sei que as pessoas estão mais sozinhas do que o normal, não estão vendo suas famílias e nem podem sair de casa. Uma das minhas clientes está fazendo uma carta de despedida. Não posso vê-la, não posso visitá-la. Conversamos por telefone algumas vezes por semana e eu pergunto sobre tradições importantes de sua família, por exemplo. Eu digo: "se a sua família pudesse estar reunida novamente por uma última vez, o que você diria a eles?" Ela vai me falando e eu escrevo. Nós vamos criando essa carta juntas e, quando ela morrer, terá uma carta para ser lida em seu memorial, escrita por ela em seus últimos meses. Durante a pandemia ainda não planejei um funeral inteiro, mas tenho recebido ligações de pessoas que perderam um ente querido para a Covid-19 ou por outros motivos. Nós as encaminhamos para uma empresa que faz funerais por videoconferência. Uma das mulheres me disse que foi fantástico, porque havia pessoas no funeral de todas as partes do mundo. Não é o ideal, mas estamos aprendendo formas novas de fazer o nosso trabalho nesses tempos.

Cristiane Moro trabalha como fisioterapeuta e coordenadora do Death Café, roda de conversa sobre a morte - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Cristiane Moro é fisioterapeuta e coordenadora do Death Café, roda de conversa sobre a morte
Imagem: Arquivo pessoal

Cristiane Moro
47 anos
Fisioterapeuta de Porto Alegre

Trabalho com idosos há 20 anos, então a finitude sempre esteve presente no meu dia a dia. Como meus pacientes sabem que sou doula da morte, começaram a falar sobre o assunto quando surgiu a pandemia. Foi uma grande oportunidade conversar com eles. Foi bom tanto para os cuidadores, que poderiam ser os transmissores da Covid-19 para aquele paciente, quanto para os familiares, que não sabiam se mantinham cuidadores, se mantinham terapias. Falar facilitou o manejo desses pacientes. O medo de morrer é o que mais tem surgido entre os idosos. Eles falam que querem viver mais tempo com as suas famílias. Em segundo lugar aparece o medo de não ter organizado tanto a vida financeira e os bens materiais. A gente acha que nonagenários e octogenários têm tudo organizado, mas nem sempre. E, em um terceiro momento, o que mais ouvi foi: "por que nós velhos? Nós já somos velhos". É um fenômeno social interessante. O idoso sabe que estaria mais próximo da morte. Mas foram justamente os que mais sentiram esse impacto da notícia de que eles são vulneráveis. Os idosos estavam apostando nessa longevidade afetiva. "Agora que eu estou velho e consigo fazer as coisas que eu não fazia antes, eu vou morrer?" Morrer sozinho também foi uma questão muito falada. Eu respondo: "então, a partir de hoje é aproveitar todos os dias com todas as pessoas. É fazer do limão uma limonada. Tentar conversar com todo mundo e fazer essa rede afetiva à nossa volta. Para, caso isso aconteça, a gente tenha a sensação de que tudo está bem resolvido". Todo mundo hoje fala que a morte por Covid-19 é solitária, porque ela está muito evidente, mas vejo mortes solitárias de idosos há muito tempo.