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Como o musical 'Hamilton' se transformou em fenômeno cultural

Cena do musical "Hamilton" - Divulgação
Cena do musical 'Hamilton' Imagem: Divulgação

Mariana Tramontina

Colaboração para o TAB, em Lewisburg (EUA)

29/07/2020 04h00

A essa altura, muita gente no Brasil já ouviu falar de "Hamilton".

Mesmo que não tenha assistido ao musical da Broadway, em Nova York, ou a versão filmada para o serviço de streaming da Disney (os direitos da obra estão com a Disney Plus, que segue sem previsão de lançamento no Brasil), você sabe que "Hamilton" é um sucesso. Ou desconfia.

"Hamilton" é mais do que isso: o musical é o maior fenômeno cultural dos últimos anos nos Estados Unidos.

A peça é a interpretação que o ator e compositor Lin-Manuel Miranda fez de um livro, uma biografia lançada em 2004 por Ron Chernow sobre Alexander Hamilton (1755-1804), primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, que influenciou as bases do capitalismo no país, considerado um dos "pais fundadores" da nação.

Hamilton, que hoje tem seu rosto estampado nas notas de US$ 10, era um "bastardo, órfão, filho de uma meretriz e um escocês", um imigrante saído da Ilha de St. Croix, no Caribe, aos 17 anos. Com um relato sobre o furacão que devastou a ilha em 1772, ele convenceu empresários a bancarem seus estudos em Nova York. Mais tarde, lançou-se na política e se tornou o braço direito de George Washington, o primeiro presidente norte-americano (1789-1797).

Essa história (e a dos anos seguintes) foi reformulada para uma adaptação nada convencional no teatro musical: uma inovadora mistura de rap, jazz, R&B e música pop, junto com um elenco multiétnico, conta como foi a fundação dos Estados Unidos por jovens revolucionários e rebeldes que buscavam a independência do país em relação ao Reino Unido. Tudo isso em 2h40 de duração.

Com toda sua ousadia e originalidade, "Hamilton" se tornou popular desde a estreia nos palcos, em fevereiro de 2015, no circuito off-Broadway. Ingressos esgotados e filas de espera eram constantes. Por isso, foi grande a comoção quando a Disney comprou os direitos do musical por US$ 75 milhões (uma das compras mais caras de um único filme na história de Hollywood) e anunciou, em fevereiro, que o musical gravado seria lançado nos cinemas em 2021.

O que ninguém esperava é que uma pandemia atravessasse o caminho. Com os cinemas fechados e todo mundo em casa, os planos mudaram: a Disney antecipou o lançamento em um ano e colocou a obra em seu serviço de streaming, disponível nos EUA, Canadá, países da Europa e Reino Unido. "Hamilton" estreou em 3 de julho, véspera do Dia da Independência dos Estados Unidos. Nada mais emblemático.

Outros tempos

"Hamilton" é uma relevante história política, em todos os sentidos, em forma de entretenimento.

O então presidente Barack Obama foi um dos primeiros e grandes apoiadores do projeto. Em 2009, ele convidou Lin-Manuel Miranda para se apresentar no White House Poetry Jam, um evento cultural na Casa Branca. Miranda já tinha a ideia de um álbum conceitual de hip-hop sobre Alexander Hamilton e, lá, apresentou a música que hoje é o número de abertura do espetáculo. Tempos depois, Michelle Obama ainda chamou o musical de "a melhor obra de arte que eu já vi na vida".

Quando "Hamilton" foi lançado, os tempos eram outros. A narrativa de Miranda, que tem raízes portorriquenhas, sobre a vida de Hamilton, um imigrante, é reflexo de seu conceito sobre os ideais norte-americanos: muito trabalho, determinação e inclusão. E isso se traduz no slogan que foi usado como propaganda do musical: "Essa é a história da América do passado, contada pela América de agora".

De 2015 para cá, porém, muita coisa mudou: o clima político, a relação dos imigrantes com a América, o entendimento sobre a democracia, o próprio significado de patriotismo. E a história do musical, tão celebrada por gerar identificação, passou a servir como uma rica fonte de mensagens de protesto.

20.jan.2017 - Marcha das Mulheres, em Washington - Getty Images - Getty Images
Marcha das Mulheres, em Washington, em 2017, tinha cartazes com letra de 'Hamilton'
Imagem: Getty Images

Em 2017, frases da narrativa de "Hamilton" estamparam cartazes em manifestações contra o então recém-empossado presidente Donald Trump por todos os Estados Unidos, como "a História está voltada para você" (da música "History Has Its Eyes On You") ou "Amanhã haverá mais de nós" (de "The Story of Tonight"). As citações se repetiram nos anos seguintes, especialmente na Marcha das Mulheres, movimento feminista internacional que luta por causas das minorias.

Não foi diferente em 2020: em um momento de profunda reflexão sobre o racismo sistêmico no país, as citações repareceram nos protestos de Vidas Negras Importam (Black Lives Matter), após a morte do americano negro George Floyd por policiais brancos, como "não é um momento, é um movimento" (da letra de "My Shot").

No Twitter, uma pessoa escreveu: "Eu me pergunto se Lin-Manuel Miranda sabia quão boas seriam as letras de 'Hamilton' para as faixas de protesto". E é mesmo bem oportuno para dar um recado: o sentimento de uma nação querendo ser reconstruída e trazendo a discussão sobre os valores de seu povo.

Acesso a milhões de pessoas

A influência de "Hamilton" reproduzida nas ruas é só mais um sinal de um fenômeno cultural incomparável. No Brasil, onde o musical nem passou perto e onde a exibição na TV ainda é um mistério (apesar de especular-se para novembro, a Disney não confirma a data de estreia do serviço de streaming no país), as buscas sobre a peça dispararam no Google nas últimas semanas. E, nas redes sociais, pipocaram relatos de brasileiros que já haviam assistido ao filme em serviços alternativos não oficiais (a famosa "pirataria").

É compreensível. Os cinemas seguem fechados e a Broadway não abrirá mais em 2020, até onde se sabe. Disponibilizar em um serviço de streaming uma obra de alto nível tão premiada (são 11 prêmios Tony, o mais importante do teatro) é uma oportunidade sem igual de acesso a um evento com ingressos raros e caros (no mínimo US$ 270, enquanto a assinatura do serviço custa US$ 6,99 por mês).

'Hamilton' - Divulgação - Divulgação
Cartaz da versão filmada de 'Hamilton'
Imagem: Divulgação

A Disney não abre os números de audiência, mas de acordo com a revista "Variety", no final de semana da estreia de "Hamilton", o aplicativo Disney Plus foi baixado 266 mil vezes nos Estados Unidos, um aumento de 72,4% na média de downloads em relação aos finais de semana anteriores. O álbum da trilha sonora, "Hamilton: An American Musical", com 46 faixas, já vendeu quase 2 milhões de cópias nos EUA, segundo dados da Billboard.

Mesma história, outro olhar

Uma obra com tantas nuances, acessível a milhões de pessoas, também trouxe interpretações diversas e olhares diferentes para a narrativa.

Ainda que seja questionável a ideia de analisar a história real por meio de uma obra de arte parcialmente ficcionalizada, a precisão histórica e seus princípios viraram debate. Isso porque o espetáculo traz figuras norte-americanas importantes para sua história, num momento de questionamento de valores.

Ao lado de Hamilton na Guerra da Independência Americana e na criação dos mecanismos de uma nova nação, como a Constituição e o sistema financeiro, estavam personalidades como George Washington, Thomas Jefferson e James Madison. Eles são só alguns dos muitos monumentos que vêm sendo removidos de locais públicos nos Estados Unidos.

E ainda que Hamilton fosse um abolicionista convicto, seu relacionamento com essas figuras sugere que ele tenha participado, de alguma maneira, do sistema de escravidão da época. George Washington, por exemplo, possuía mais de 300 pessoas escravizadas em sua casa em Mount Vernon, na virada do século 18, algo que o musical não aborda.

O fato de a maioria do elenco ser multiétnico, com negros e latinos, interpretando personalidades brancas na vida real, também entrou em discussão. A historiadora Lyra Monteiro publicou, em 2016, um ensaio na revista "Public Historian", da Universidade da Califórnia, lembrando que essa é uma história branca. "É problemático ter atores negros representando os bons feitos de homens brancos, do começo dos Estados Unidos, em uma peça que não reconhece que os ancestrais destes mesmos atores foram excluídos de suas liberdades pelas pessoas que eles estão retratando", ela escreve.

O contraponto a essa crítica, que Miranda apontou em seu Twitter, é o argumento de que "Hamilton" era um veículo para atores não-brancos lançarem suas carreiras, já que muitas vezes eles sequer têm oportunidades nos palcos da Broadway. Em outra perspectiva, ainda oferece uma América na qual negros, pardos e latinos ocupam posições de poder dominadas por homens brancos.

No fim, "Hamilton" é uma idealização do passado sem cair na ilusão de que seu presente é exemplar. Esse é o recado dado no momento de sua morte, quando Hamilton chama a América de "grande sinfonia inacabada". E ainda que sejam outros tempos, segue sendo uma obra com a cara dos Estados Unidos e do mundo de hoje: diverso, cheio de cores e em reconstrução.