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'Desculpa, só que não': por que pedidos de perdão são tão difíceis e raros

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que se orgulha de nunca pedir desculpas por eventuais erros - Alex Wong/Getty Images
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que se orgulha de nunca pedir desculpas por eventuais erros Imagem: Alex Wong/Getty Images

Marilia Marasciulo

Da Agência Eder Content, colaboração para o TAB

04/08/2020 04h00

A última vez que conversei com minha melhor amiga da adolescência foi há uma década, mas lembro como se fosse hoje. Ela me enviou uma "indireta", como chamávamos as provocações disfarçadas de elogios naquela época, por depoimento no Orkut. Respondi via MSN messenger tentando entender de onde veio aquela raiva. Talvez eu a tivesse magoado sem perceber e deveria pedir desculpa. A resposta veio numa sequência de desaforos, e terminei o assunto mais perdida do que comecei. Chateada, não a procurei mais, esperando um pedido de desculpa. Continuo esperando até hoje.

Encontrei essa pessoa algumas vezes depois do episódio, pois tínhamos o mesmo grupo de amigos, mas nunca mais conversamos a sós. Se ela tentava puxar algum tipo de assunto, minha cabeça entrava em parafuso. Será que não se deu conta de que me chateou? Por que não pede desculpa? Devo fingir que nada aconteceu? Ou nada de fato aconteceu e eu é que estou exagerando? Depois de alguns bons anos, aceitei o fim da amizade, mas sempre que escuto alguém falar dela, sinto a mágoa ressurgir.

"Somos todos seres imperfeitos, então a necessidade de receber um pedido de desculpa está conosco até o último respiro", me disse a psicóloga Harriet Lerner, autora do livro "Why Won't You Apologize? Healing big betrayals and everyday hurts" ("Por que você não pedirá desculpa? Curando grandes traições e mágoas cotidianas", em tradução livre), publicado em 2017 e sem edição em português. "Um pedido de desculpa ruim ou a ausência dele pode colocar uma rachadura na base de uma relação — ou até acabar com ela."

Lerner me fez perceber que o problema não era só meu e, mais que isso, aparentemente estamos todos passando pelo que ela considera uma "crise" nos pedidos de desculpa: quando não ausentes por completo, foram substituídos por falsos arrependimentos ou afrontosos "e daí?".

É só olhar para episódios recentes. A reação do presidente Jair Bolsonaro ao ser informado sobre o número de vítimas de Covid-19 provavelmente não vai ser esquecida tão cedo. A família Bolsonaro, aliás, protagonizou tantos episódios de ofensas seguidas por pedidos de perdão mascarados de negação que, para muitos críticos do governo, o arrependimento soa falso — o clássico "sinto muito que você sinta muito". Uma busca rápida no Google por "Bolsonaro pede desculpa" resulta em nada menos que 7,190 milhões de resultados.

Nos Estados Unidos, o atual presidente, Donald Trump, parece ter aprendido a lição com o colega de partido Mitt Romney, ex-candidato à presidência, que há uma década publicou o livro "No Apology: The Case for American Greatness" ("Sem desculpas: O Caso da Grandeza Americana", em tradução livre). Trump chega ao extremo de se recusar a pedir desculpa. No ano passado, confundiu um apoiador com um crítico e o ofendeu. Após o incidente, uma repórter da CNN informou que Trump teria telefonado ao homem e pedido desculpa — só para ser corrigida pela própria Casa Branca: ele de fato telefonou ao homem e agradeceu pelo apoio, embora não tenha usado a palavra desculpa.

"A crise da desculpa" não é restrita à política. No mundo dos ricos e famosos, o arrependimento também tem curta duração. O comediante Louis C.K., por exemplo, recentemente debochou do movimento #MeToo e reclamou do "politicamente correto". Em 2017, quando foi acusado de assédio sexual, escreveu uma carta admitindo o erro e pedindo desculpa às suas vítimas. O ex-produtor de cinema Harvey Weinstein, condenado a 23 anos de prisão por crimes sexuais, até pediu desculpa, mas repetidamente se negou a admitir os erros.

Falar e fazer

"Há pessoas que encaram o pedido de desculpa como uma declaração de inferioridade", diz a psicóloga Marina Vasconcellos, especialista em psicodrama e terapia familiar. A verdade, porém, é justamente o contrário: o maior risco é parecer arrogante. "Quem sabe pedir desculpa costuma ser muito bem visto, porque as pessoas se aproximam e se sentem acolhidas", continua. Reconhecer os próprios erros, além de sinal humildade, demonstra sabedoria por ser o primeiro passo para aprender com eles. E é crucial para formar relações bem-sucedidas, explica a psicóloga.

Harriet Lerner afirma que uma desculpa sincera pode libertar a pessoa magoada do sentimento de estar presa em raiva, amargura e ruminação obsessiva. "Também permite que ela se sinta novamente segura e confortável na relação, além de validar o senso de realidade dela". É como se a vítima passasse a se sentir culpada ou deslocada por ter se magoado — exatamente como aconteceu comigo no episódio com minha amiga.

Por que, então, pedir desculpa pode ser tão difícil? Uma explicação que talvez também indique o motivo por trás dessa "crise" é a falta de exemplos ou da valorização do pedido. "Tem gente que não consegue pedir perdão porque nunca ouviu outros pedirem. Nós aprendemos com modelos", explica Vasconcellos. Há também dificuldade em verbalizar o pedido, sob a justificativa do "não falo, mas faço", ou de que as ações valem mais do que a palavra em si — ainda que, na prática, uma coisa não anule a outra. "Mais do que só as palavras, a vítima quer saber que realmente compreendemos a mágoa, que nosso remorso é genuíno, que vamos carregar um pouco da dor e continuar a pensar sobre o que nos falaram", acrescenta Lerner.

O maior desafio, no entanto, parece ser sair do modo defensivo, tão inerente ao comportamento humano. "Quando alguém que ficou ofendido nos diz isso de uma maneira raivosa ou crítica, nossa reação automática é escutar buscando motivos pelos quais não concordamos", diz Lerner. "É tão automático que exige motivação, coragem e boa vontade para observar nosso próprio comportamento defensivo e nos distanciar disso."

O comportamento é perigoso, porque aumenta outro reflexo bastante comum, de tentar inverter a situação e mudar o foco para os erros da vítima. "Nós automaticamente buscamos exageros, imprecisões e distorções, que inevitavelmente vão estar presentes", diz a psicóloga americana. Isso vai contra a própria essência da palavra, que significa "tirar a culpa" por algo, e não transferir a culpa para o outro. O risco é acabar com um pedido que soa falso ou vazio, que pode inclusive se transformar em uma nova ofensa.

"Pedir desculpa não deve ser só uma saída para conversas difíceis, embora nós tentemos usar dessa maneira quando somos pressionados", lembra a autora, que tem diversos livros publicados sobre questões de relacionamento humano.

Mas e quando já passaram dias, semanas, meses ou anos da ofensa? "Não adianta ficar esperando que a pessoa se toque sozinha, ela não vai se tocar, ou você esquece, ou releva", diz Vasconcellos. Não que isso signifique que é muito tarde para pedir desculpa, como questionou Justin Bieber na canção-hit de 2015. Nestes casos, recomendam as especialistas, cabe à vítima indicar que gostaria de ouvir o pedido de desculpa — e aí todo cuidado é pouco.

"É importante falar como está se sentindo, mas sem falar primeiro do outro, para não colocá-lo na defensiva", recomenda. Por exemplo: em vez de dizer para a minha (ex) amiga "você me disse um monte de desaforos pelo MSN há uma década e me deixou chateada, acho que deveria reconhecer o seu erro", eu poderia tentar dizer que "fiquei muito chateada de saber que você pensava tudo isso de mim e não consegui superar isso sem um pedido de desculpa". Isso, é claro, deve ser feito sem expectativas.

"Abra a conversa se achar que realmente vale a pena, porque certas pessoas simplesmente não vão pedir desculpa", alerta Vasconcellos. E é preciso também estar disposto a perdoar — afinal, como lembra Bieber, trata-se de um jogo "de dois" — e conseguir desculpar faz parte dele.

Os ingredientes essenciais de um pedido de desculpas verdadeiro, segundo a autora Harriet Lerner:

Foque em suas próprias ações, e não em como a pessoa reagiu a elas. Exemplo: em vez de dizer "sinto muito se você se magoou com o que eu disse", diga "sinto muito pelo que eu disse".

Não exagere. Não deixe seus próprios sentimentos de remorso ou culpa se tornarem maiores que a mágoa que você provocou.

Não tente encontrar culpados ou quem "começou" a discórdia.

Além de pedir desculpas, adote uma postura que demonstre mudança.

Suas desculpas nunca devem ter como objetivo silenciar o outro. Exemplo: "já pedi desculpas mil vezes, por que você insiste em voltar a tocar neste assunto?"

Também não podem servir só para aliviar a sua própria culpa.

Desculpas verdadeiras não substituem o reconhecimento de que só isso não basta e é preciso fazer o necessário para restabelecer a confiança.