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Brasil Paralelo faz 'guerra de edições' e disputa narrativas na Wikipédia

Brasil Paralelo - Reprodução
Brasil Paralelo Imagem: Reprodução

Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

09/09/2020 04h01

"Brasil Paralelo é nome fantasia da LHT HIGGS LTDA, uma empresa brasileira fundada em 2016 em Porto Alegre. A empresa faz ciberativismo através de filmes com formato documentário sob o viés de direita política (especificamente a Nova Direita) e do cristianismo. [...] Além de ter publicado notícias falsas, o discurso do Brasil Paralelo é considerado milenarista e conspiracionista. Historiadores também criticaram a empresa pelo conteúdo negacionista e anti-intelectualista dos vídeos, que distorcem fatos históricos como a ditadura militar, a escravidão e a colonização do Brasil, e promovem as teorias conspiratórias e negacionistas de Olavo de Carvalho, Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo."

Esta era, até 8 de setembro, a definição de "Brasil Paralelo" na Wikipédia. O usuário "Fmdonadel", que se identificou como advogado da produtora gaúcha, discordou do texto e, no fórum de discussões do verbete na enciclopédia digital, pediu alterações na página, alegando que as "atuais informações nela inseridas são inverídicas e foram escritas para denegrir [sic] a imagem da empresa".

Segundo o post do advogado, cuja autenticidade foi confirmada pelo TAB junto à Brasil Paralelo, a produtora seria uma empresa "absolutamente independente, apartidária, despida de viés ideológico".

Brasil Paralelo produz documentários sobre política, história e atualidades. Lançado em 17 de agosto, "Os Donos da Verdade" trata de liberdade de expressão e usa trechos da reunião ministerial de 22 de abril para defender o ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, em que ele dizia querer prender os "vagabundos do STF" na cadeia e odiar o termo "povos indígenas". De junho, o documentário "7 denúncias: as consequências do caso Covid-19" critica a imprensa, as diretrizes de isolamento social e as orientações de cientistas e da OMS (Organização Mundial da Saúde) no combate à pandemia. "Desta vez, a produtora parece ter assumido seu papel na tropa de choque digital do presidente", afirmou o jornalista Fábio Zanini, autor do blog "Saída pela direita", no jornal Folha de S.Paulo.

Antes disso, seu filme "1964: o Brasil entre armas e livros", de 2019, reuniu opiniões infundadas sobre o golpe militar. Ouvindo fontes ligadas à direita, o documentário questiona a versão da historiografia ancorada em documentos e depoimentos, sustentando a tese de que o golpe foi uma resposta necessária a uma suposta ameaça comunista no país — ameaça que nunca foi provada —, e relativiza a repressão e a tortura do Estado. Controverso, o filme foi alvo de protestos e teve o lançamento cancelado pela rede Cinemark.

Página trancada

O verbete da produtora Brasil Paralelo na Wikipédia é uma página protegida, isto é, atualmente há restrições para editar o texto. "Proteger uma página é uma medida extrema, reservada a casos nos quais a discussão não surte mais efeito", informa a Wikipédia.

"Tentamos colaborar na [página da] Wikipédia, mas não podia mais editar, corrigir informações e submeter fontes novas [no verbete]. Aí nosso escritório jurídico entrou em cena", diz Lucas Ferrugem, um dos fundadores da produtora Brasil Paralelo, que considerou o texto "absurdo e difamatório".

"O verbete é alvo de disputa de narrativas", definem Lucas Piantá e Pedro Toniazzo Terres, autores do História na Wiki, um desdobramento do projeto Teoria da História da Wikipédia, realizado pelo Núcleo de Estudos em Políticas da Escrita da Memória e da Imagem da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Isso quer dizer que as palavras "Brasil Paralelo" despertam discussões entre os usuários que ajudam a construir a enciclopédia digital que, de fonte duvidosa nos seus primórdios, passou a baliza para quem navega na internet, inclusive mediante parcerias com universidades.

Um dos pilares da enciclopédia é a imparcialidade: os artigos "devem representar as diferentes visões sobre um assunto, incluindo-as e definindo claramente onde há conflitos e quais são os lados da disputa", define a plataforma.

A disputa às vezes vira guerra: um usuário escreve, outro rapidamente edita, um terceiro reedita, outro reverte para o sentido original e assim por diante. São as chamadas guerras de edições.

'O fim da história', da produtora Brasil Paralelo - Facebook/Reprodução - Facebook/Reprodução
'O fim da história', da produtora Brasil Paralelo
Imagem: Facebook/Reprodução

Batalhas wikipédicas

"O verbete 'ditadura militar brasileira' é um bom exemplo. Um editor vai lá e troca 'ditadura' por 'regime', outro vai lá e muda de novo. Se um conflito fica grave, os administradores podem trancar o artigo e bloquear os editores envolvidos", diz Terres. Às vezes, as guerras transcendem fronteiras.

Foi o que aconteceu com o verbete "military dictatorship in Brazil" da Wikipédia anglófona. Na página de discussões, o usuário "Pedrix52" escreveu, em 2017: "Os comunistas estão tentando tomar o controle da Wikipédia em inglês também".

Uma das últimas batalhas wikipédicas foi travada em meados de agosto na página da senadora norte-americana Kamala Harris, a primeira negra candidata a vice-presidente dos Estados Unidos, pelo Partido Democrata. Segundo um artigo na revista The Atlantic, a disputa se deu logo depois que ela foi anunciada. Em questão de horas, sua página foi mudada desde seu nome (um usuário trocou Kamala por Cuntala), até a negação de que ela seja afro-americana — Harris é filha de um economista jamaicano e de uma oncologista indiana.

Biografias de políticos vivos ou acontecimentos têm um aviso: este artigo é sobre um evento em curso, sujeito a atualizações. Mas, muitas vezes, as disputas mais ferrenhas estão relacionadas a fatos históricos. Em geral, os conflitos devem ser resolvidos nas páginas de discussão dos verbetes, buscando construir consensos. É o ideal "hiperdemocrático" da Wikipédia.

O processo de escrever na Wikipédia envolve um longo levantamento bibliográfico de fontes históricas e jornalísticas, construir índices, escrever, editar, acrescentar verbetes secundários, traduzir referências internacionais e, a cada passo, privilegiar o ponto de vista neutro, o NPOV (neutral point of view, na sigla em inglês). A política editorial da Wikipédia é feita a muitas mãos: a comunidade global de editores voluntários é quem equilibra as edições, considerando os argumentos nas páginas de discussões. "Os editores reconhecem que o que acontece no mundo também acontece na Wikipédia, isto é, conflitos ideológicos e políticos não são exceções", diz a Wikimedia Foundation ao TAB.

"Todo mundo pode editar na Wikipédia, mas editores são fortemente desencorajados a editar ou escrever artigos sobre si mesmos ou sobre assuntos próximos. (...) Editores com conflito de interesse são encorajados a usar a página de discussão para sugerir mudanças." O pedido do usuário "Fmdonadel", na página da Brasil Paralelo, esbarraria nesses dois pontos, a imparcialidade e as referências.

Sobre a definição da Brasil Paralelo na Wikipédia: sim, a produtora foi de fato fundada em 2016, em Porto Alegre. Produz, sim, documentários alinhados à direita, com diversas entrevistas de personalidades da extrema-direita. Sua série "Brasil: a última cruzada" foi, sim, transmitida na íntegra pela TV Escola. Seu filme "1964: o Brasil entre armas e livros" reúne, sim, opiniões que distorcem o contexto histórico pré-golpe, contradizendo documentos e historiadores.

Brasis paralelos

Fundada por Lucas Ferrugem, Henrique Viana e Filipe Valerim, a Brasil Paralelo se define como uma produtora de filmes de cunho "jornalístico e historiográfico".

Jornalistas, críticos de cinema e acadêmicos discordam do caráter jornalístico e historiográfico da produtora. Os jornalistas Ethel Rudnitzki e Rafael Oliveira, da Agência Pública, por exemplo, incluem a produtora no rol do "cinema olavista". O crítico Inácio Araújo, da Folha, considerou o documentário "1964" como um "universo paralelo da propaganda"; para o crítico Eduardo Escorel, da revista Piauí, um "panfleto audiovisual".

Algumas produções contam com a participação de Olavo de Carvalho, Jair Bolsonaro, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, Ernesto Araújo e Bernardo Küster, personalidades da extrema-direita. "[Discutir] o que é direita e esquerda é justamente nosso ambiente de pesquisa e produção intelectual", diz Ferrugem, da Brasil Paralelo. "Palavras como 'direita' e 'esquerda' são como guarda-chuvas para aglutinar milhões de pessoas, que certamente discordam muito entre si. Então, que outro espectro se pode utilizar? Prefiro conservadores versus revolucionários. E aí afirmo que nós somos conservadores, na interpretação rigorosa da palavra: entender que temos uma história, construída graças a muitos elos da nossa civilização, e que mudanças podem acontecer, mas não impostas de cima para baixo. Elas precisam ser experimentadas no nível individual. A partir do sucesso dessas iniciativas individuais, voluntariamente vamos aderindo em foros cada vez maiores", define.

Ferrugem rechaça duas expressões no verbete da Wikipédia: anti-intelectualista e negacionista. "[Brasil Paralelo pretende] Justamente elevar o debate público através da apresentação de grandes ideias de grandes pensadores", argumenta. Quanto ao negacionismo, cita como exemplo a abordagem da escravidão na série "Brasil: a última cruzada", produzida entre 2017 e 2018. "A escravidão é o calcanhar de Aquiles da história do Brasil, diz nosso documentário. Historiadores como Alberto da Costa e Silva e Antonio Paim estão entre nossas fontes. Dizer que negamos a escravidão é desconhecimento, um ato difamatório." A série foi transmitida na íntegra pela TV Escola, em 2019. "Não recebemos um centavo de dinheiro público. Nossos documentários são públicos e gratuitos ", diz Ferrugem.

Segundo o post do advogado da Brasil Paralelo na Wikipédia, a empresa se financia com a monetização dos vídeos no YouTube, a venda de cursos online e a assinatura de conteúdos exclusivos no seu site oficial. Ferrugem, entretanto, diz que a produtora não monetiza mais e a receita gerada por produções anteriores nunca foi sacada do YouTube.

Sobre as críticas ao trabalho, Ferrugem diz: "É bom que façam críticas. Sempre assistimos [lemos] a todas", diz Ferrugem. "[Mas] São dois ou três que fazem críticas e mais de dez milhões de pessoas assistem nossos vídeos."

"Brasil Paralelo é uma engrenagem na máquina ideológica bolsonarista", diz Fernando Nicolazzi, professor de história da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e pesquisador do Luppa (Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado), listado nas referências do verbete "Brasil Paralelo" na Wikipédia. Segundo ele, o sucesso midiático das produções da Brasil Paralelo se insere em um contexto político de instrumentalização da história. "Há um conjunto de fatores que criaram condições de produção e difusão de tais obras. A voga bolsonarista-olavista contribui, mas precisa ser situada junto a outros elementos, como a ausência de um efetivo esforço de lidar com nosso passado recente (a ditadura militar) e o mais distante (a estrutura escravocrata e patriarcal da sociedade)", pondera.

"Será que a sociedade brasileira, que sempre cultivou um espírito conciliatório, assumindo o passado como 'página virada' e retroalimentando a velha ideia de 'país do futuro', está realmente aberta a enfrentar suas contradições?", questiona. Nesses Brasis paralelos, disputas de narrativas sobre o passado e o presente não devem terminar tão cedo, dentro e principalmente fora da Wikipédia.