#NoFapSeptember: grupos de jovens promovem cruzada contra masturbação
O ano era 2016. A hashtag #NoFapSeptember subia na timeline do amazonense Sérgio* (nome trocado para proteger a identidade da fonte). Postada por perfis representados por pinturas de templários em cruzadas cristãs, tratava-se de um desafio estrangeiro aparentemente simples: não se masturbar pelos 30 dias do mês de setembro.
Criado sob o discurso de que a masturbação aumenta a timidez masculina, traz vergonha ao homem e pode levar à fraqueza física, Sérgio aderiu ao desafio sem pestanejar. "É um desafio que estimula você a evitar o ato da masturbação e o consumo de pornografia por um mês. Pode trazer ganhos para o corpo e mente, sabe? Você se sente mais livre, não precisa ficar submetido a isso todo dia", opina o jovem.
Se bem-sucedido, Sérgio "chegaria a Jerusalém" — como é chamada a vitória dos que ficam 30 dias sem se masturbar. A iconografia templária vem também acompanhada da expressão "Deus Vult", atrelada atualmente à extrema-direita.
Para azar de Sérgio, não há rede social, moral religiosa ou, como ele mesmo disse, leitura de pesquisas científicas que o façam superar o décimo quinto dia de desafio. "Me sinto extremamente decepcionado. É como se eu tivesse perdido tudo que construí."
Fenômeno cresce no Brasil
Centenas de garotos entre 15 e 25 anos, oriundos de todo o Brasil, se reúnem no ambiente online durante o mês de setembro para combater a masturbação — meio na brincadeira, meio a sério. O movimento começou em 28 de agosto de 2009, com uma postagem no fórum 4chan. Em pouco tempo, o #NoFapSeptember replicou-se em outras línguas e sites, ganhando seu primeiro post em português no dia 31 daquele mesmo mês, num fórum do jogo Tíbia, e até um verbete no Urban Dictionary, no primeiro dia de setembro daquele ano.
Em 2011, o norte-americano Alexander Rhodes criou até uma marca, "NoFap", para inspirar homens a largar o vício da pornografia. Embora sigam conduta parecida, os jovens envolvidos com o #NoFapSeptember não estão ligados a Rhodes.
Hoje em dia, jovens trocam experiências no Twitter e formam grupos em aplicativos de conversa para lidar com o desafio, que se tornou real na vida de muitos. As abas começam pelas regras gerais, construídas com base em prints de outros grupos. Não pode: se masturbar, usar "ticket" (quando alguém te dá permissão para se tocar uma vez, sem perder o desafio), postar pornografia ou transar com "coisas não-humanas". Há ainda um chat, chamado "Tribunal de Jerusalém", onde um participante explica sua situação e, por meio de votação, outros usuários decidem se ele completou ou não o desafio.
Em um dos grupos, há a orientação de rezar o Pai-Nosso todos os dias para aliviar a pressão. Algo que Rogério* (nome trocado), participante assíduo, explicou ser uma piada com um fundo de verdade. "A gente faz uma oração de vez em quanto. A gente entra em call, todo mundo desliga os microfones e os caras botam uma oração para distrair", conta ao TAB.
A pesquisadora Marlene Hartmann, da Universidade Técnica de Chemnitz, na Alemanha, estuda esses grupos há algum tempo. Ela acredita que a tendência seja um produto cultural da mistura entre a moral religiosa dos últimos séculos e o neoliberalismo. "A masturbação é o escape das ansiedades particulares, porque, aparentemente, contradiz a lógica da sociedade de mercado e da sociedade civil. No mercado, os desejos privados acabaram por promover o bem comum. Na masturbação existem desejos privados envolvidos, mas eles não parecem conduzir ao bem comum", observa, em conversa com o TAB. "Para se envolver na esfera pública, em sociedade civil, você tem que aprender a se governar eticamente na esfera privada, e a masturbação acontece em privado, mas não parece promover um engajamento entusiástico na esfera pública", conclui.
Não é mais a família, o médico, a clínica, que manda na pessoa se masturbando -- agora, o próprio sujeito que se masturba recorre à internet em busca de ajuda para si mesmo
Marlene Hartmann, pesquisadora
Tamanho é um problema
O movimento #NoFapSeptember tem crescido tanto no Brasil que já conta com uma extensão para navegadores, feita pelo coletivo de desenvolvedores Metflix Lab, para bloquear o acesso a sites com conteúdo pornográfico — impedindo os participantes de caírem em tentação. "A gente conheceu um cara que se dizia viciado em masturbação. Ele não conseguia ficar um dia sem olhar pornografia na internet, então, unimos essa história com o nosso trabalho na área de TI. Achamos que o desenvolvimento dessa ferramenta pode ser útil para ajudar muita gente que vive esse mesmo drama", explicam.
O grupo de apoio de Sérgio no Discord (plataforma de call e grupo entre os jovens, especialmente gamers), criado poucas horas antes da meia-noite do dia 1º de setembro, já tem mais de 400 pessoas. Os participantes dizem que há grupos ainda maiores no WhatApp, mas afirmam preferir que o deles não cresça muito, pois quanto mais gente, mais expostos a trolls ficam os participantes.
Embora finjam não levar o movimento muito a sério, a reação dos participantes a quem tenta provocá-los é sempre muito hostil. No décimo dia do desafio, um usuário chamado AlguémAleatório brincou de jogar um link de site pornográfico no grupo, de madrugada, e foi recebido com raiva pelos colegas. Quando a tentação não está num usuário brincalhão, está nas mulheres. "Há algumas meninas no servidor, mas elas não participam, só enchem o saco, mesmo", diz Sérgio. "Afinam a voz demais para tentar seduzir, ou enviam fotos e pornografia do próprio corpo, só por sacanagem, para encher nosso saco e fazer a gente perder."
No Twitter, garotas que rentabilizam fotos eróticas e packs de nudes usam agora a hashtag #NoFapSeptember para atrair mais clientes. Uma usuária que prefere ser chamada pelo pseudônimo que usa na rede, Haruka Miyuki, explica que, diariamente, os mesmos participantes que respondem às suas postagens chamando-a de bruxa (termo usado entre os participantes para mulheres provocantes) a chamam depois, no privado, para admitir que estão prestes a desistir do desafio: basta ela "doar" uma nude.
A pesquisadora Marlene Hartmann inclui o movimento numa esfera maior de grupos que atuam pelos "direitos dos homens", que costumam formar uma "economia da heterossexualidade", cuja moeda acaba sendo a aprovação masculina. "Se você observar bem, descobrirá que, quando eles se juntam para dividir suas experiências, mesmo que estejam fazendo isso para apoiar movimentos feministas, é muito comum que acabem enveredando por caminhos de anti-feminismo e misoginia. Não há nenhum potencial emancipatório em homens formando grupos exclusivos, seja online ou offline. Ao contrário: isso é o que nos trouxe ao caminho em que estamos atualmente."
Origem infundada
A motivação original do desafio estava calcada na ideia de que a masturbação tornaria o homem menos viril, numa correlação entre índices de testosterona no sangue e potência sexual (embora a ciência afirme que virilidade seja multifatorial); segundo uma pesquisa chinesa, de 2003, homens que ficam uma semana sem se tocar teriam um aumento de testosterona de até 145%. O problema é que a pesquisa não deixa claro o método para ser replicada e verificada, e o experimento contou com uma amostragem baixíssima: 28 voluntários.
Como explica o psicólogo e sexólogo David J. Ley, autor do livro "The Myth of Sex Addiction" ("O Mito do Vício em Sexo", em tradução livre), "a mudança de nível de testosterona parece só ter aparecido no sétimo dia, e não há razão biológica de por que isso ocorreria. Por que a mudança seria especificamente no sétimo dia? Se não for replicada, essa pesquisa não tem como ser científica".
Ley, que se posiciona com ceticismo em relação ao movimento NoFap, acredita também que o estudo só serve para embasar as crenças preexististentes dos praticantes.
Beáta Both, do departamento de psicologia da Universidade de Montreal (Canadá), realiza pesquisas sobre o assunto com amostragens na casa das dezenas de milhares de voluntários. Ela afirma que ainda não há um consenso científico sobre o modelo de vício para pornografia, tampouco para masturbação. A chave para compreender o consumo problemático de pornografia (segundo sua própria pesquisa, assola de 3% a 4,4% dos homens entrevistados e 1% a 1,2% das mulheres) está na incongruência moral — que costuma estar ligada a religiosidade intensa do indivíduo, algo presente nos grupos.
"O que acontece é que a pessoa não tem um vício, mas uma autocrítica muito severa, pautada em princípios morais rígidos, sobre o ato de se masturbar", explica o professor de psiquiatria da USP (Universidade de São Paulo) Marco de Tubino Scanavino, à frente do AISEP (Ambulatório de Impulso Sexual Excessivo e de Prevenção aos Desfechos Negativos Associados ao Comportamento Sexual).
Ele adverte, também, que a masturbação tem que ser tida como algo normal. "Nessa época, para muitas pessoas que não têm parceiro estável, a prática da masturbação se faz mais presente. E é algo que está dentro dos parâmetros saudáveis da vida."
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