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Futurista e analógico: como tecnologia e tradições se misturam no Japão

8.abr.2020 - Transeuntes caminham no distrito comercial e de entretenimento de Kabukicho, em Tóquio - Issei Kato/Reuters
8.abr.2020 - Transeuntes caminham no distrito comercial e de entretenimento de Kabukicho, em Tóquio Imagem: Issei Kato/Reuters

Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

28/09/2020 04h00

Morre uma Hello Kitty toda vez que alguém diz que o Japão é pura tecnologia. É verdade que é no arquipélago japonês que a startup SkyDrive está desenvolvendo o carro voador SD-XX, estilo Jetsons, que deve decolar em 2023. Para 2030, a expectativa é sobre o Alfa-X, capaz de viajar a 400 km/h, o trem-bala mais rápido do mundo. O país também está traçando protocolos para encontros com OVNIs. E aqui nem todas as festas de formatura foram canceladas por conta da pandemia: graduandos da Business Breakthrough University, em Tóquio, receberam diplomas controlando avatares vestindo becas, os robôs Newme.

Também já existe no Japão robô-monge, o androide Mindar, que recita sutras budistas no Templo Kodaji, em Quioto; robô-meretriz operando no bordel Lumidolls, em Nagoia, e robô-garçom no bar & grill The Galley, em Tóquio; robô-smartphone, o humanoide RoBoHoN (Sharp), e robô-pet, o "filhote" Aibo (Sony).

Desde a década de 1950, no pós-guerra, o Japão construiu esse imaginário futurista flertando com a ficção científica. Animes, filmes, mangás e livros lapidaram certa ideia de modernidade, como se o Japão já estivesse vivendo no futuro. O boom tecnológico das décadas de 1980 e 1990, com os games da Nintendo, os notebooks da Sony e os produtos da Panasonic, também impulsionou essa imagem internacional do país.

Mas o tempo não para. Empresas eletrônicas japonesas passaram a disputar o mercado com a americana Apple, a britânica Dyson e outras companhias concorrentes logo ao lado: em 2017, o Japão registrou 31 mil produtos de design industrial, enquanto a China registrou mais de 628 mil e a Coreia do Sul, 67 mil, reportou a agência Reuters. Em 2020, apesar de todas as inovações, expectativas e excentricidades robóticas, é como se o Japão tivesse parado no tempo em certos pontos, atado a tradições quase analógicas -- o que ficou mais evidente na pandemia de Covid-19.

Aeronave do tipo VTOL parece mais um drone tripulado - Divulgação - Divulgação
Aeronave do tipo VTOL parece mais um drone tripulado
Imagem: Divulgação

Carimbo, cash e fax

As tradições "analógicas" japonesas nada têm a ver com as quase clássicas contraposições entre arranha-céus e templos, kawaii e quimonos, Doritos Wasabi, KitKat e sushi. Fato é que o cotidiano é marcado por certos costumes que soam anacrônicos, como a exigência de assinar documentos com um carimbo pessoal e intransferível -- o "hanko", instrumento também é conhecido como "inkan". Isto é, para firmar acordos, é preciso carimbar documentos impressos como contratos, transferências, títulos etc. O carimbo é necessário para cerca de 10 mil tipos de trâmites governamentais, como é o caso da declaração de imposto de renda.

Assinatura digital e contrato online não estão no horizonte japonês -- tanto que, no fim de julho, autoridades e lideranças empresariais fizeram uma declaração conjunta comprometendo-se a reduzir expressivamente o uso tresloucado de papel e do hanko, para que a população evite saídas desnecessárias de casa, informou a NHK. Bancos como o gigante Mizuho estão mudando agora para contratos de empréstimos online, que não exigem carimbos. Entretanto, como destacou a própria NHK, a agência pública japonesa, a resistência é forte: mesmo se o hanko não é exigido por lei para certas situações, a tradição é tão arraigada que, muitas vezes, constitui uma exigência de fato.

"O uso do hanko está tão enraizado em algumas áreas do país que muitos governos municipais acreditam, erroneamente, que se trata de um requisito para alguns tipos de documentos oficiais", escreveu a jornalista japonesa Reiko Sakurai, correspondente sênior da agência.

Outro exemplo analógico local é a cultura do cash: até hoje, muitos bares, cafés e mercados só aceitam dinheiro vivo. Terceira economia mundial, o Japão só tem cerca de 20% das transações feitas sem cédulas (o indicador é o "cashless ratio"), ante 96% na Coreia do Sul e 66% na China. Na pandemia, os bancos japoneses continuaram movimentados. "Os mais velhos preferem cash", justificou Hitoko Taki, de 79 anos, à Reuters.

O favoritismo do fax, apesar das alternativas de comunicação (como o e-mail) é outro símbolo importante da cultura japonesa. O país estava atualizando dados de casos de Covid-19 por fax: os médicos precisavam preencher, de próprio punho, os formulários -- e transmiti-los assim às autoridades de saúde. Os formulários, detalhou o diário Mainichi Shimbun, tinham 19 campos apertados a preencher, incluindo o desenvolvimento dos sintomas. Tóquio estava atualizando dados via fax até pouco tempo. O governo metropolitano só passou a utilizar a internet para receber dados de 31 centros de diagnóstico da capital japonesa no dia 3 de agosto, mas os hospitais continuam no fax. Detalhe: o sistema digital agora pede 279 tipos de informação.

O Japão é "high tech image, low tech reality", escreveu a jornalista escocesa Jen McClure, que viveu deste lado do mundo em 2008, no Edinburgh Napier News. Em português: imagem de alta tecnologia; realidade de baixa tecnologia. Talvez ela tenha razão, mas como o Japão exportou essa ideia de país "do futuro"?

Soft power

"É o contraste da expectativa de quem vem visitar e a realidade de quem mora aqui", arrisca o produtor, documentarista e consultor de viagens brasileiro Roberto Maxwell, de 45 anos, há 15 no Japão. "A expectativa é encontrar cidades mega futurísticas e, ao mesmo tempo, tradições milenares. Acontece que são ideias muito mais imaginadas do que reais", acrescenta Maxwell, editor do site Direto do Japão, que já visitou 45 das 47 províncias nipônicas — faltam apenas Fukui e Saga.

O consultor de viagens Roberto Maxwell  - Bruna Luise/ Divulgaca?o - Bruna Luise/ Divulgaca?o
O consultor de viagens Roberto Maxwell
Imagem: Bruna Luise/ Divulgaca?o

Há cidades japonesas relativamente novas, que precisaram ser reconstruídas diversas vezes depois de terremotos e outras intempéries. "Na arquitetura convivem temporalidades diferentes. Não é nem um futuro de ficção científica, nem um passado parado no tempo."

Para nós, brasileiros, certos costumes podem parecer atrasados, como o carimbo e o fax. Mas, para a sociedade japonesa, a que mais possui idosos no mundo, são tecnologias que ainda funcionam, ainda fazem sentido. No contexto japonês, não são anacrônicas.

Roberto Maxwell, consultor de viagens

Quinze anos atrás, o governo japonês traçou diretrizes de desenvolvimento do turismo a partir da palavra-chave "contents tourism" (sim, em inglês, língua muito incorporada para neologismos no Japão), um tipo de turismo impulsionado -- integralmente ou não -- por narrativas e histórias da cultura popular, incluindo animes, filmes, fotos, livros, mangás, games e dramas de TV (os "contents", isto é, conteúdos). "Moldaram-se assim imaginários turísticos, que constantemente se ajustam diante dos encontros e desencontros com a realidade", ponderam os antropólogos Nelson Graburn, professor emérito da Universidade da Califórnia, Berkeley (Estados Unidos), e Takayoshi Yamamura, da Universidade de Hokkaido (Japão), em artigo acadêmico no Journal of Tourism and Cultural Change, publicado em 2020. Exemplo disso é a experiência de cruzar imagens de animes com o endereço exato nas cidades japonesas.



Ancorado na indústria criativa multimídia e intensamente incentivado pelo mercado e pelas autoridades, o "contents tourism" pode magnetizar estrangeiros para destinos asiáticos como Japão e Coreia do Sul -- no caso sul-coreano, o exemplo mais óbvio é o fenômeno K-pop. "Esses centros criativos do Leste Asiático se tornaram destinos de jovens fãs fervorosos da Europa e dos Estados Unidos", exemplificam os autores.
Os conteúdos variam segundo nichos de idade e de gênero.

Popularizam-se, por exemplo, os "power spots" (sim, em inglês), pontos turísticos em que os visitantes esperam receber energia espiritual, atraindo peregrinos a lugares que, na verdade, não necessariamente estão relacionados a nenhuma tradição religiosa japonesa. Quer dizer, é possível forjar tradições e, ao mesmo tempo, atrelar ficção e realidade.

Para Graburn e Yamamura, a construção desses imaginários a partir do turismo é mais uma manifestação do "soft power" japonês, isto é, o poder simbólico do país. De tanto se martelar a imagem de harmonia entre tecnologia e tradições, basta ir ao Google para constatar os milhares de textos neste tom. Só esquecem que é preciso carimbar e passar por fax.