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No centro de SP, 'Stalin' é um dos poucos que prestam atenção na CPI

Uma das poucas TVs transmitindo a CPI da Pandemia, em lanchonete da galeria Metrópole, no centro de São Paulo - Ricardo Matsukawa/UOL
Uma das poucas TVs transmitindo a CPI da Pandemia, em lanchonete da galeria Metrópole, no centro de São Paulo
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Daniel Lisboa

Colaboração para o TAB

21/05/2021 04h01

Stalin votou em Bolsonaro, mas perdeu a paciência.

Para ele, o que o presidente dizia sobre as vacinas estava certo, até certo ponto — aquela história sobre não poder processar os fabricantes, se os imunizantes causassem óbitos ou algum efeito colateral. "Isso é um absurdo. Você vai lá, vacina 100 mil pessoas, morrem 80 mil e o governo concordou?", questiona.

Alexandre Stalin Silveira, 44, não domina a letra miúda dos tais contratos de compra de vacina, mas tem opinião mais ou menos formada no tocante a essa questão. Calvo, usando camisa social preta apertada sobre o corpo robusto e calça jeans, é chamado de "dono" da rua Sete de Abril, no centro de São Paulo. Pelo menos entre aqueles que acompanham sua conversa com a reportagem do TAB, em frente ao restaurante por quilo, vizinho da imobiliária onde ele trabalha.

"Mas não dá para negar que houve uma falha séria na compra das vacinas", desabafa. "Se o mundo inteiro está vacinando...Nos Estados Unidos, até pessoas de 30 anos..." Apesar de fazer questão de revelar seu voto nas eleições de 2018, o corretor imobiliário se diz "apartidário", porque já votou "em todos os partidos possíveis e imagináveis, da esquerda até a extrema-direita".

Stalin está acompanhando a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que vem apurando os malfeitos do governo no combate à pandemia de covid-19. "Alguma coisa teria que acontecer [como consequência da comissão], além da mancha que o governo já ganhou. Mas, na minha opinião, não sai impeachment. E prisão de alguém também acho bem improvável."

O corretor Alexandre Stalin da Silveira aproveita a hora do almoco para assistir à CPI da Pandemia em algum restaurante do centro de São Paulo - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
O corretor Alexandre Stalin Silveira
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

A TV nos fundos do restaurante está ligada na TV Senado, mas as poucas pessoas no local não dão a menor bola para o depoimento do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Elas estão concentradas em suas conversas e no bufê de aspecto apetitoso.

TAB percorreu a região central da capital paulista na quarta-feira (19). Da Praça da República ao Largo São Bento, da avenida São Luís ao Largo do Paissandu, conferiu dezenas de bares, botecos, pseudo-botecos (restaurantes caros decorados como se fossem um pé-sujo) e restaurantes em busca de TVs ligadas na hora do almoço. Apenas em três locais a tela estava sintonizada na CPI ou em telejornais que a noticiavam. Neles, quatro ou cinco pessoas pareciam interessadas no assunto. Franziam a testa e espichavam o pescoço na direção do aparelho, em busca de pistas sobre que diabos acontecia em Brasília.

Ninguém espera de uma CPI o engajamento popular de uma partida de Copa do Mundo. Vida real não é a timeline do Twitter. Horário de almoço existe para se falar mal do chefe e comer ovo de codorna achando que era muçarela de búfala.

O Brasil caminha para meio milhão de mortes, cerca de 270 mil delas ocorridas durante a gestão do general três-estrelas que fala enquanto os clientes misturam batata palha ao molho de estrogonofe. Parece pouco caso, parece alienação. Mas é só rotina, cumprimento de obrigações, em meio à tragédia.

Transeuntes pela rua Sete de Abril, no centro de São Paulo - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
Transeuntes pela rua Sete de Abril, no centro de São Paulo
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Rota de fuga

Em março de 2017, viralizou a foto de um homem idoso fumando seu cachimbo tranquilamente enquanto escutava um disco de vinil sentado na cama em Aleppo, na Síria. O nome dele é Abu Omar e seu quarto está em ruínas. Uma reportagem da revista Time contou a história da imagem. Seu autor, o fotógrafo da agência de notícias AFP Joseph Eid, explicou que Omar "é tão apegado ao passado e às coisas que sempre estimou e amou que, sem elas, perderia sua identidade. É por isso que ele insiste em ficar e retomar sua vida".

A história está cheia de exemplos como os de Omar. Para quem estava no centro de São Paulo nesta quarta-feira, o cigarrinho do intervalo para almoço é o cachimbo do velhinho sírio. O restaurante servindo normalmente o prato do dia é o hotel de Ruanda, em meio a um genocídio.

"Gostaria que as pessoas saíssem da CPI presas, porque um monte de gente fala um monte de mentira. Mas, infelizmente, isso não vai acontecer", diz Luís Carlos da Silva, colega de Alexandre Stalin. O assessor jurídico de 53 anos se apresenta como uma exceção e diz que está, sim, acompanhando a CPI. Ele espera que, ao menos, o Ministério Público abra processo contra alguns investigados. "O que mais me irrita é a questão da cloroquina. Não tem eficácia nenhuma, não tem comprovação científica e ainda se insiste nisso."

A comparação entre pandemia e guerra está longe de ser nova, e não deve ser tomada de modo literal. Mas os números mostram que, pelo menos no que diz respeito à mortalidade, a analogia não é exagerada. A guerra civil na Síria, por exemplo, deixou em torno de 400 mil mortos em dez anos de conflito. A covid-19 fez 442 mil vítimas no Brasil, em um ano e três meses.

Poucas catástrofes são comparáveis ao grau de ferocidade e violência do genocídio em Ruanda. Entre 800 mil e 1 milhão de pessoas foram assassinadas em apenas três meses. Em números absolutos, porém, o Brasil pode alcançar esse patamar em pouco tempo. Estudo do Instituto de Métricas de Saúde e Avaliação da Universidade de Washington, nos EUA, projeta mais de 750 mil mortes por covid-19 até o final de agosto.

Bares e restaurantes no centro de São Paulo transmitem a CPI durante o horário de almoço - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
Restaurante apinhado, no de São Paulo, transmite a CPI da Pandemia durante o horário de almoço
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

"No final das contas, todo mundo sabe o que aconteceu. Eu espero que a CPI dê em alguma coisa, se for apurado que houve essa irresponsabilidade por parte do Executivo", diz o advogado Daniel Ortega, 39. Ele é outro dos poucos que prestam atenção às manchetes sobre a CPI no único bar lotado onde a TV está ligada na comissão. Cerca de 25 pessoas se aglomeram no apertado boteco, na esquina da rua Dom José de Barros com a Sete de Abril. Ortega acha que é preciso punição, se ficar comprovada não só omissão no combate à pandemia, mas ação efetiva do governo em favor do alastramento do vírus.

Morrer de covid-19 não tem o mesmo apelo gráfico que morrer em uma guerra. Não há sangue, corpos machucados, fumaça. Muito raramente vemos imagens do que acontece dentro de uma UTI. Ser feito em pedaços porque uma bomba foi lançada sobre o restaurante que você frequenta é algo medonho, mas a ameaça invisível que paira sobre alguém que almoça em um local abarrotado não traz consequências mais agradáveis — o que dizer de passar semanas, ou meses, intubado e arcar com possíveis sequelas pelo resto da vida? Isso, claro, se a vítima sobreviver.

Uma matéria da revista piauí de junho de 2020, quando a cidade de São Paulo acumulava "apenas" 7.396 mortes por covid-19, mostrou que viver na capital paulista, à época, era tão arriscado quanto passar 28 dias no Afeganistão em 2010, ano mais sangrento da guerra por lá.

Clima pesado

Ortega desiste de fazer uma foto para a reportagem depois que uma colega o puxa de canto e o convence de que não é uma boa ideia mostrar o rosto. "É que as coisas andam tão pesadas", ela justifica.

Gerente do restaurante, João Paulo Gama confirma que ali é um raro ponto de atenção à CPI. "Escuto todo o tipo de comentário. A favor e contra. Muita gente passa aqui, então temos uma democracia de ideias."

Além dos restaurantes onde Stalin, Silva e Ortega comiam, a reportagem do TAB só encontrou mais um local onde a TV transmitia notícias da CPI. Em todos os outros, a morte de MC Kevin ou programas esportivos dominavam as atenções.

Encostado no balcão de um bar próximo à praça Dom José Gaspar, um homem com cara de mau e peito estufado assiste ao "Os Donos da Bola". Perguntado sobre um eventual interesse na CPI, ele tira a máscara, olha para o alto, a coloca de volta sobre o rosto e, aparentemente alheio ao restante da programação, responde: "Você vê? Ninguém fala mais sobre a morte do prefeito."