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Cheiro de pipoca e álcool em gel: a reabertura do Belas Artes na pandemia

Petra Belas Artes reabre as portas na última quinta-feira (24) - Divulgação
Petra Belas Artes reabre as portas na última quinta-feira (24) Imagem: Divulgação

Tiago Dias

Do TAB, em São Paulo

27/06/2021 04h01

O sol de inverno estava a pino quando o cinema Petra Belas Artes abriu novamente na última quinta-feira (24), na esquina da rua da Consolação com a avenida Paulista. A pesada porta de metal estava abaixada desde o dia 5 de março, quando o governo de São Paulo anunciou que, em alguns dias, a cidade entraria na fase emergencial do plano de contenção de uma pandemia que completava um ano.

O hall amplo e iluminado estava literalmente brilhando e os funcionários estavam de máscaras a postos na bombonière, enfeitada com bandeirinhas coloridas em razão das festas juninas. Mas no lugar do cheiro de pipoca, o local rescendia álcool em gel.

A expectativa da equipe do cinema era de que a cena da fila na calçada, na primeira reabertura em outubro de 2020, se repetisse. Na ocasião, todos os cinemas ficaram fechados por sete meses, num esforço de conter a disseminação do vírus e evitar aglomerações. Dessa vez, porém, não havia ninguém esperando, nem mesmo o pipoqueiro Leo, cujo carrinho na calçada da frente parecia ser uma extensão do cinema tombado pela prefeitura. Ele pegou as coisas e foi para o Nordeste, conta o segurança na porta.

O primeiro ingresso não demorou a ser vendido. Marcello Cascino, 23, estava ali porque viu na internet que "Sonhos", de Akira Kurosawa, estava em exibição. "Eu fui o primeiro a comprar? Nossa!", disse, com um violão nas costas. "Sou meio viciado, costumo levar porque vai que eu tenho que esperar." Nem tirou da capa.

Cascino sequer sabia que se tratava da reabertura, mas comemorou o retorno a um de seus programas favoritos. "A música ficou mais difícil de se fazer na pandemia. Fiquei assistindo a streaming em casa, mas sala de cinema é outra coisa", diz. Só agora se sentiu tranquilo em frequentar o espaço: já teve covid-19 e, recentemente, foi vacinado por trabalhar com musicoterapia. "Eu ia muito a cinema. Senti muita falta."

Marcello Cascino passa por casal que observa os filmes em cartaz no Petra Belas Artes - Roberta Ribas/Divulgação - Roberta Ribas/Divulgação
Dono do primeiro ingresso, Marcello Cascino passa por casal que observa os filmes em cartaz no Petra Belas Artes
Imagem: Roberta Ribas/Divulgação

Passeio intermunicipal

Algumas horas antes, André Sturm foi de sala em sala para checar o processo de sanitarização pelo qual o espaço passou. Diretor do Belas Artes, ele havia dito um dia antes, à Folha de S.Paulo, que garantia que ali ninguém pegaria covid-19.

"O pessoal aqui achou que isso podia pegar mal, mas é isso mesmo. Eu quero garantir que a pessoa que se sentir confortável em sair de casa, porque já está indo ao restaurante, que aqui é um dos espaços mais seguros", explica. Estava animado. "Fiquei até ansioso de manhã. A gente reabre na hora certa."

O Belas Artes foi um dos últimos cinemas a voltar, depois que a cidade entrou em nova flexibilização. Dessa vez, os cinemas ficaram apenas um mês fechados. Mas ali foi diferente. "A gente sabia que dessa vez a gente só abriria quando sentisse segurança", ele explica.

Com a vacinação focada na faixa etária dos 40, ele acredita que a maior parte da terceira idade já está com a segunda dose em dia. Apesar da frequência majoritariamente jovem, o cinema tem nos sessentões um público muito cativo. Por isso também estão em cartaz nesta semana, além de pré-estreias, filmes clássicos, como "Apocalypse Now" e "Uma Rua Chamada Pecado".

No caixa, uma senhora bem agasalhada tentava ouvir melhor as informações da atendente por trás do acrílico de proteção. Com o ingresso na mão e um saquinho de pão de queijo na outra — "pra forrar o estômago"—, ela entra no elevador em direção à sala 6. Conta que ficou monitorando quando o cinema ia abrir. "Vim lá de Guarulhos. É ônibus, metrô e metrô", disse Lygia Silva, 81. "Isso aqui faz falta. O cinema perto de casa, no shopping, não passa nada que preste."

Fazendo as vezes de ascensor do elevador, o atendente Gerson Henrique, 20, comentou: "Pô! De Guarulhos até aqui!". Ele mesmo achou que não faria mais o trajeto entre Capão Redondo, onde mora, e aquela esquina da Avenida Paulista com a Consolação. "Comecei a trabalhar aqui em fevereiro e quinze dias depois fechou de novo", conta. Acabou sendo dispensado e chamado novamente aquela semana. "É bom sair de casa, ver pessoas novas. Eu ia muito ao cinema, mas depois da primeira onda, não voltei." Confessa que vive a insegurança de perder o posto novamente — e ironiza os fechamentos seletivos na cidade. "Busão é o unico lugar que não pega covid-19, né?"

André Sturm comemora reabertura do cinema após segundo fechamento durante a pandemia - Roberta Ribas/Divulgação - Roberta Ribas/Divulgação
André Sturm comemora reabertura do cinema após segundo fechamento durante a pandemia
Imagem: Roberta Ribas/Divulgação

Fidelização

Outra senhora parece encantada com a foto de Marlon Brando nos totens digitais em cima da bilheteria. Do outro lado do acrílico, Rosa Cavalcante, 35, a reconhece. "Ela vem, pega informações, anota os horários e depois volta para maratonar três filmes no dia. Passa a tarde, toma café, bate papo com a gente. Ela tem esse perfil, a gente sabe de longe."

Coordenadora operacional, ela tem, entre idas e vindas, 15 anos de Belas Artes. Na história recente do espaço, ela estava ali quando o cinema fechou por anos por falta de patrocínio. Quando a pandemia chegou, sentiu um impacto diferente. "Não tem como não pensar nas pessoas que perderam seus empregos e familiares", diz.

Sandra Carvalho, 60, se aproxima. Quer saber se o cinema estava "realmente" aberto. "Que maravilha! Vim à dermatologista e passei aqui em frente", diz. Antes de comprar o ingresso, pergunta se alguém vai se sentar ao seu lado. Rosa explica que a sala está operando com 30% da sua capacidade. "Pode escolher os assentos verdes", indica a atendente.

Na tela, os 274 lugares estão vagos. "Mas está tudo verde..." Rosa confirma: os nove espectadores estavam todos na sessão de "Sonhos". "Ai, eu adoro ficar sozinha no cinema, não tem gente conversando", comemora. "Pode escrever aí que estou felicíssima."

Em breve, ela e outros cinéfilos terão mais uma opção de cinema de rua. É o que espera também o empresário Marcelo Lima, que desde o início do ano pretende inaugurar o cinema do Conjunto Nacional, a algumas quadras dali, na avenida Paulista.

A sala está de pé desde 1963 e ganhou os mais diversos nomes, conforme a gerência e os patrocinadores entravam e saíam: Cinearte, Cine Bombril e Cine Livraria Cultura. No meio da pandemia, foi anunciado que voltaria a funcionar em março como Cine Marquise. A notícia foi recebida com surpresa pelo setor, preocupado em manter os espaços existentes vivos entre o abre e fecha.

A inauguração não aconteceu como imaginado e a reforma atrasou por conta da questão econômica. "Com a máxima certeza, num ambiente sem pandemia, as cotas de patrocínio teriam sido fechadas muito mais cedo. Nosso plano de negócios tem criado interesses, mas o orçamento deles está curto, eles preferem não investir no momento", explica Lima.

Agora, com dois patrocínios em andamento, volta a ficar otimista. "Vem a ansiedade de inaugurar esse lugar icônico para a cidade. Não temos data definida, mas temos uma expectativa nossa que seja ainda esse ano."

Para o Belas Artes, Sturm espera, em breve, chegar a 30% da frequência que o espaço tinha antes da pandemia. No período anterior a março, ele conta que viu esse número aumentar com mais consistência, chegando a 15%. "Acho que nem se trata de reconquistar o público. O cinema de rua tem um público fiel demais para abandonar. Tenho certeza que entendendo a segurança, eles voltarão."