Mulheres de presos usam TikTok para unir quem espera 'a liberdade cantar'
Ao som de "Dança da Mãozinha", do Tchakabum, Giovanna Padoan, 20, indica com o dedo no ar o lado bom de ter um marido preso: faz tatuagem com seu nome, vira poeta, é romântico e tem medo de ser abandonado.
A cena, gravada para seu perfil no TikTok, aconteceu em fevereiro — quando Giovanna deixou de visitar o então namorado, preso havia dois meses. Por conta do agravamento da pandemia de covid-19, o Centro de Detenção Provisória (CDP) da Praia Grande, na Baixada Santista, em São Paulo, suspendeu as visitas presenciais e introduziu a visita por videoconferência, limitada a cinco minutos, através daquela mesma tela do seu celular. "Mas você não consegue falar nada, tem um agente penitenciário do lado. Só dá para perguntar se está tudo bem", explica. O sentimento na época era de "tristeza e impotência", ela diz.
A ideia surgiu quando viu outra mulher fazendo "meme" com aquela mesma situação. A hahstag #mulherdepreso na legenda lhe mostrou um outro mundo. "Eu nunca tinha visto um TikTok falando sobre a realidade que eu estava vivendo atualmente. De certa forma, eu me senti acolhida. Não é todo mundo que expõe essa realidade. A gente é muito discriminada, mesmo sem ter culpa de nada, só por ser familiar de um preso", desabafa.
Hoje, o vídeo do "lado bom" da distância forçada soma 8 milhões de visualizações. "Eu peguei uma coisa ruim e levei pro lado bom, porque obviamente não tem lado bom. É um meme, uma forma de distrair minha cabeça." É o post mais criticado no seu perfil com 78 mil seguidores, mas também o que mais rendeu comentários de quem se reconhece na sátira.
A hashtag #mulherdepreso abrange um conteúdo amplo sobre o assunto. Informações, sentimentos e momentos que não aparecem quando detentos e presídios estão no noticiário. São vídeos românticos cheios de emojis, registros da ida e vinda aos presídios e informações que a ajudam de muitas formas — desde entender o sistema prisional no Brasil até tutoriais de montagem de "jumbos", como são chamadas as caixas com mantimentos e itens de higiene e limpeza para o detento, que fica a cargo de seus familiares.
"Jumbo agora é por Sedex", Giovanna explica, enquanto mostra a foto do último montado para o marido: bisnaguinhas, desinfetantes, sabonetes, bolo, chocolate, leite em pó e aparelho de barbear. "Vai um dinheirinho [pra montar]. Agora, nessa época de frio, meu esposo pediu mais uma coberta, mais um moletom, porque é muito frio lá e eles tomam banho gelado."
Quem vê trend, não vê corre
Quando o namorado foi preso, em dezembro passado, Giovanna ficou 15 dias sem informações. Ligou na unidade onde novos detentos aguardam julgamento. Não conseguiu localizá-lo. "A primeira vez que eu precisei de informações foi um baque, eu estava perdida. Cada um fala uma coisa, depende do agente penitenciário que te atende", diz.
Ela só soube a razão do sumiço quando entrou em um grupo de WhatsApp chamado "fiel de um réu". Ali, cunhadas (como as mulheres de preso chamam umas às outras) e mãezinhas (mães de detentos) explicaram que os novatos ficam 15 dias de quarentena, longe das celas e dos raios da prisão. Seu companheiro, depois, confidenciou que a experiência foi "a coisa mais terrível do mundo". Foi ali também que descobriu como conseguir visitá-lo. Tinha que fazer a Declaração de Amasia para comprovar a união estável.
"Por causa da pandemia muita coisa mudou no SAP [Secretaria da Administração Penitenciária]. Era como montar um quebra-cabeças de informações. Acaba sendo um grupo de apoio para ter informações que você só vai saber quando vive aquela realidade."
É com esse objetivo que Andrezza Mendonça, 25, mantém o perfil "Princesa de um Detento" há mais de um ano no Instagram. Ela não faz conteúdo próprio e prefere não expor seu rosto e sua história, mas compartilha dancinhas de TikTok e mensagens de incentivo — que circulam acompanhadas de outras hashtags, como #LiberdadeVaiCantar, #SoltaOPresoSeuJuiz e #AmorAtrasDasGrades.
Andrezza explica: "Por causa da pandemia, o TikTok se tornou viral. Tem gente que fala de maquiagem, tem gente que fala de comida, mas nós, mulheres de presos, gostamos de falar do que vivemos. É uma ajuda para que não desistam da caminhada e não se sintam sozinhas", conta. Moradora do Rio de Janeiro, ela diz que o contato com mulheres de outros estados a faz entender melhor os processos. "São casos diferentes, mas a lei é a mesma. Estamos sempre a par dos benefícios."
"Até eu estou começando a entender. Certas palavras antigamente não estavam no dicionário", explica Giovanna. Ela conta as últimas notícias vindas do grupo das cunhadas da Praia Grande, enquanto se encaminha para o trabalho numa pizzaria, "job" recém-conquistado: "Estou aqui de olho porque a SAP prometeu definir a situação da visita presencial essa semana. Teve uma mini-manifestação na SAP, em Santana, as meninas entraram e disseram que eles iam se pronunciar sobre."
Dias depois, as visitas foram realmente liberadas no CDP da Praia Grande. Após quatro meses, Giovanna irá rever o companheiro no próximo domingo.
Um dia eu volto...
Milka Melo, 21, mora em Cariacica, no Espírito Santo, e é mulher de preso há pouco mais de um ano. Diferente de muitas cunhadas, ela diz ter afinidade com assuntos jurídicos. "Desde pequena eu quero ser advogada. Algumas coisas eu não entendo e pergunto para os advogados que eu conheço."
Aos poucos, seus vídeos quase semanais no TikTok fizeram a caixa de mensagens se tornar um espaço para desabafos e dúvidas. "Muitas vezes estamos em outro Estado, mas estamos no mesmo barco", observa.
Ela faz dublagens que exploram sua rotina: da ansiedade em dia de visita íntima a recados para quem diz que o marido vai deixá-la assim que sair do presídio. "Uma menina me perguntou hoje, tinha medo que o marido dela fizesse isso. Eu respondi pra seguir o coração. As pessoas vão te julgar se você for visitar ou se você o abandonar", diz.
O vídeo que mais viralizou, no entanto, é uma edição que reúne declarações de amor, imagens do casal antes da prisão e uma do marido no dia em que ele foi levado para a Penitenciária Estadual De Vila Velha. Na época, aprendeu no grupo de WhatsApp "Guerreiras do PVV2" detalhes da remição de pena para condenados que estudarem e trabalharem no presídio. "Já coloquei ele pra fazer as duas coisas", diz. "Me ajudou muito, muitas se tornaram amigas de vida. Tenho contato salvo."
Hoje, Milka mora sozinha e mantém uma agenda de postagens, de olho nas "trends" da plataforma. "Recebo mensagens dizendo pra eu não parar, porque isso ajuda elas. E as mensagens que eu recebo são uma mais linda que a outra", conta. E desabafa: "A gente pode até se divertir, mas quando você fica sozinha em casa, a realidade vem. Choro todo dia à noite." Ultimamente, a insônia vem pela demora na definição do juiz após a audiência. "Já tem um mês e eu sei que isso não costuma demorar."
O marido ficou sabendo da fama dos vídeos no TikTok no último sábado, quando a cunhada (verdadeira) foi visitá-lo. "Ela disse que ele estava famoso no TikTok e ele riu", diz Milka. "Ele achou que eu ia sumir. Então ele me agradece toda vez, seja por carta ou pessoalmente."
Enquanto aguarda o posicionamento da Justiça, Milka fez questão de lembrar da promessa feita pelo marido após a prisão. Está registrada na "bio" do seu perfil no TikTok: "Um dia eu volto e te faço a mais feliz do mundo."
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