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Dona de hospedaria conta histórias de uma Paranapiacaba (SP) do além

Zélia Maria Paralego, dona da Hospedaria dos Memorialistas, em Paranapiacaba (SP) - Priscila Gorzoni/UOL
Zélia Maria Paralego, dona da Hospedaria dos Memorialistas, em Paranapiacaba (SP)
Imagem: Priscila Gorzoni/UOL

Priscila Gorzoni

Colaboração para o TAB, de Paranapiacaba (SP)

19/09/2021 04h01

Às 9h, o sol já esquenta as ruas de paralelepípedo. Zélia Maria Paralego, 70, aparece animada na porta da Hospedaria dos Memorialistas.
De marcantes olhos claros, movimentos largos e fala rápida, agitada e ofegante, ela conversa com o funcionário que retoca a pintura branca das janelas.

A Hospedaria combina com o resto da parte baixa do distrito de Paranapiacaba, que pertence a Santo André e fica próximo à Serra do Mar, na descida ao litoral. É uma ex-casa de ferroviários, com paredes de tijolos aparentes e madeira vermelha. Zélia está animada para contar histórias de uma "Paranapiacaba paralela" que ela diz ter vivenciado, em meio às brumas do lugar.

Zélia adotou Paranapiacaba como sua após várias idas e vindas. Nasceu em Cornélio Procópio (PR) e foi para lá com a família em 1966, quando sua mãe, uma italiana, apaixonou-se pelo local. Foram sete mudanças, até que, por fim, ficou, depois de viver algo "do além". Foi aí que compreendeu que "tinha uma missão": a de ser uma depositária de histórias.

Dessa paixão nasceu o envolvimento com a defesa da herança de Paranapiacaba e o livro "Do Alto da Serra a Paranapiacaba", que será lançado em outubro, em que reúne depoimentos dos filhos dos ex-ferroviários do distrito. Muitas histórias por ali são inventadas: a proximidade com a mata atlântica e a constante formação de névoa criam um clima propício para visões fantasmagóricas. Por isso, Zélia decidiu ouvi-las. Ela mesma, aliás, também viu e sentiu coisas que não consegue explicar.

Paranapiacaba - Priscila Gorzoni/UOL - Priscila Gorzoni/UOL
Imagem: Priscila Gorzoni/UOL
Zélia Maria Paralego, que vive em Parapiacaba e colhe histórias mal-assombradas do distrito - Priscila Gorzoni/UOL - Priscila Gorzoni/UOL
Zélia Maria Paralego, que vive em Paranapiacaba e colhe histórias mal-assombradas do distrito
Imagem: Priscila Gorzoni/UOL

Parte alta, parte baixa

Cercadas por casas de ferroviários, placas antigas e cercas feitas com o reaproveitamento dos trilhos, Zélia me explica que Paranapiacaba é dividida em duas partes. De um lado fica a parte baixa, em que se concentra a porção "inglesa" do município. De outro, a parte alta, com casas coloridas sem quintal e arquitetura portuguesa.

Zélia passou a infância com os pais na parte alta, e a vida adulta na baixa. Mas suas histórias mais fortes estão ligadas ao mundo paralelo de Paranapiacaba, aquele que poucos veem, "apenas os que têm mais sensibilidade", costuma dizer.

Uma das histórias mais fortes de Zélia aconteceu em abril de 1988, no 5 funicular (caminho de ferro para subir áreas elevadas). Ela me leva até o local com um andar agitado e olhos atentos aos trilhos antigos abandonados.

Ao final da trilha, diante de uma escada enorme e antiga, cheia de musgo, Zélia para, arregala os olhos para baixo e parece sentir algo estranho. Respira, silencia.

Zélia Maria Paralego anda pelos trilhos de Paranapiacaba (SP) - Priscila Gorzoni/UOL - Priscila Gorzoni/UOL
Zélia Maria Paralego anda pelos trilhos de Paranapiacaba
Imagem: Priscila Gorzoni/UOL

Primeira e última

Curiosamente, o tempo mudou. O sol deu lugar a um vento frio e a névoa, o fog de que tanto falam, envolveu a paisagem em ruínas.
Zélia havia dito, antes de iniciarmos a caminhada, que em um mesmo dia pode-se ter sol, chuva e névoa nos céus de Paranapiacaba, embora o ritmo aqui passe muito lentamente. Ela retoma o relato.

Em 1988, começou a trabalhar no funicular — sempre teve fascínio por trens. Sua tarefa era monitorar as excursões escolares nos pontos turísticos da cidade.

Assim que chegou ao topo de uma escada, olhou para frente e sentiu que a quinta máquina começava a funcionar. "Me senti transportada para uma outra época: vi aquela máquina funcionar pela primeira vez, vi as pessoas com roupas de época e voltei no tempo, tudo em preto e banco. Foi interessante, porque minha ligação é muito grande com a ferrovia", relembra.

Quando Zélia desceu as escadas, Toninho, o maquinista real, parou a máquina -- os funcionários estavam lubrificando os cabos de aço --, e chamou Zélia. "Aquela seria a última vez que a locomotiva funcionaria. Caí em um pranto de uns 10 minutos, e as crianças da escola lá embaixo. Não consegui mais monitorar o pessoal. Tenho certeza de que a visão que tive foi a da estreia da locomotiva. Vi o funicular funcionando pela primeira e última vez", conta.
A partir dessa experiência, certa de que tinha uma missão em Paranapiacaba, decidiu ficar definitivamente. Fundou a ONG Sociedade de Preservação e Resgate de Paranapiacaba e passou a ser defensora e guardiã do patrimônio local.

Zélia Maria Paralego, em frente ao 'Castelo': ao fundo, a janela onde a colega de trabalho viu a 'mulher de branco' - Priscila Gorzoni/UOL - Priscila Gorzoni/UOL
Zélia Maria Paralego, em frente ao 'Castelo': ao fundo, a janela onde a colega de trabalho viu a 'mulher de branco'
Imagem: Priscila Gorzoni/UOL

Caixão lacrado e missa campal

A paixão de Zélia pela ferrovia se confunde com as próprias memórias — muitas delas, vividas da infância, seriam impressionantes para um adulto, que dirá para uma criança.

Desde o primeiro caixão lacrado que viu na vida, aos 9 anos, de um senhor chamado Cunha que foi dilacerado pelas rodas do 5 funicular, até as missas campais de 7 de setembro, criadas pelos moradores em homenagem a um ferroviário, morto também em um acidente de trabalho.

A mesma energia que a tomou naquele dia em que foi o 5 funicular do passado faz Zélia sentar-se na escada de pedra, fechar os olhos e tentar se recuperar. "Aqui temos duas forças, puxando para lados opostos. A cidade é o encontro desses dois planos."

Os céus de quando deixamos o funicular é névoa pura. Mal enxergo o final da ponte. Zélia me guia até o Castelo, que é a nossa próxima parada.
Aos poucos, a primeira Zélia vai voltando -- falante, gestos grandes, rosto iluminado, sorriso no rosto. Deixamos para trás o 5 funicular e seguimos pelas ruas quase vazias.

Zélia me anima, dizendo que daqui a pouco a paisagem pode mudar. Quem não está acostumado ao lugar sem horizonte realmente custa a acreditar nisso.

O Castelo, construído no fim do século 19, é uma joia arquitetônica local e hoje funciona como museu. Foi a casa do engenheiro-chefe da São Paulo Railway e fica na parte mais alta. No caminho, Zélia conta que cuidou dele durante muitos anos, após trabalhar no funicular. No local também ouviu (e participou indiretamente) de outra experiência forte.

"Existe uma energia forte ali, muitas pessoas dizem isso, não sou só eu. Certo dia, cheguei para trabalhar às 9h, como sempre. Abri o local e vi minha colega de trabalho chegar correndo, esbaforida. Ela me dizia que, lá da casa dela, viu uma moça sentada em uma das janelas do Castelo, usando um vestido branco. Correu para chegar porque imaginou que eu tivesse deixado alguém entrar. Disse que não — aquele grupo de visitantes que chegava era o primeiro do dia. Ela consultou o livro de visitas, e nada encontrou", conta.

Clube União Lyra Serrano, em Paranapiacaba, distrito de Santo André (SP) - Prefeitura de Santo André/Divulgação - Prefeitura de Santo André/Divulgação
Clube União Lyra Serrano, em Paranapiacaba, distrito de Santo André (SP)
Imagem: Prefeitura de Santo André/Divulgação

Forças opostas

O Clube União Lyra Serrano, uma das últimas construções inglesas em Paranapiacaba (os ingleses vieram para construir a ferrovia), em 1939, testemunhou outra vivência de arrepiar.

Entro com Zélia e, de fato, sinto uma energia estranha. A construção é bem antiga, a iluminação está levemente baixa, mas é possível ver que aquele clube fez sucesso e foi muito frequentado na década de 1930.

Zélia segue à frente e vai apresentando cada parte. A experiência vivida ocorreu em 1989. Ela havia acabado de fundar a ONG.
Assim que se colocou no palco do clube, na ponta dele, começa a me contar o que aconteceu.

"Eu tinha me produzido toda para o baile. Preparamos tudo e fiquei com as chaves para trancá-lo, antes do início. Meu marido desligou as luzes e o clube ficou totalmente escuro. Em seguida, senti duas mãos nas minhas costas, que me jogaram lá de cima do palco. Caí de cara no chão. Apareceu uma bolha de água do quadril até o joelho. Fiquei ruim e acabei não indo ao baile."

Zélia credita essas ocorrências a uma disputa energética em Paranapiacaba. Tem gente que acredita. Outros jogam na conta da névoa e do passado — uma cidade que recebeu imigrantes e assistiu à chegada da modernidade com os trens dos ingleses certamente presenciou fortunas e tragédias. Paranapiacaba não é um lugar qualquer.

"Em Paranapiacaba existem duas forças, uma que odeia a cidade e quer que ela acabe, e existe uma outra, que adora a cidade." Zélia enxerga assim.
Até antes da pandemia, no Clube eram realizados alguns bons eventos. Uma vez, Zélia cuidou da exposição de fotografias de um amigo, e um dia percebeu com curiosidade que as crianças que chegavam ao topo da escada não entravam no salão.

Uma menina com necessidades especiais, que morava na frente do Clube, lhe perguntou se ela não tinha medo da mulher que não deixava fazer bagunça. Zélia achou estranho, afinal ela estava sozinha no clube.

"Nós temos muito essa convivência com os dois patamares, e às vezes nos é permitido dar uma olhadinha. Para mim é normal. Muitos, apesar de não estarem mais nessa vida, não conseguem encontrar o caminho de saída. Então cada um explica de uma forma." O fato é que esses dois mundos sempre acompanharam a vida de Zélia. O lugar certamente ajuda. Faz frio.