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De torturador a torturado: troca de nome de rua em SP divide seus moradores

Tamara Neder aprovou a mudança de nome de sua rua, passando de Sérgio Fleury para Frei Tito  - Rodrigo Bertolotto/UOL
Tamara Neder aprovou a mudança de nome de sua rua, passando de Sérgio Fleury para Frei Tito Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do TAB, em São Paulo (SP)

05/12/2021 04h00

A bandeira brasileira naquela rua só existia na versão desbotada sobre o asfalto, pintada antes da Copa do Mundo de 2018. Mas no último dia 7 de setembro, quatro das 31 casas de lá foram decoradas com o pavilhão pátrio pendurado em suas fachadas. A execução a todo volume do hino nacional, saído de uma das residências, completou a manifestação, que nos dias seguintes virou bate-boca, ameaça e xingamento entre moradores que praticavam até ali a chamada "boa vizinhança".

Tudo porque, dias antes, a Câmara Municipal de São Paulo votou e aprovou que a rua Sérgio Fleury passaria a se chamar Frei Tito. A troca do nome de um dos torturadores mais famigerados da última ditadura militar (1964-1985) por um de seus muitos torturados — um frade que participava da resistência ao regime — colocou em pé de guerra os habitantes daquela via sem saída na Vila Leopoldina, zona oeste da cidade.

A placa foi trocada no final de novembro, mas não encerrou a discussão. "Ainda escuto muito palavrão quando passo na frente da casa deles. Até as crianças entraram na briga. Tem pai que proibiu a filha de brincar com os meus filhos", relata a assistente social Tamara Neder, que defende a mudança de denominação.

Já o advogado Guilherme Luiz Francisco foi contra. "Ninguém aqui idolatra o Fleury, mas a troca para o outro polo não foi legal. Por que não colocaram rua dos sabiás ou das andorinhas? Não houve discussão, a decisão não foi nada democrática. E foi só dor de cabeça, principalmente com as entregas", reclama o morador que se define como eleitor de "centro-direita".

Esse microcosmo da polarização política à brasileira obrigou Andrea Riskala, síndica da rua há 14 anos, a silenciar o grupo de WhatsApp dos vizinhos por três meses e a banir da rede social quatro moradores mais exaltados. "Quando falaram pela primeira vez em mudar o nome, eu fui contra pensando mais nas questões práticas. Depois que tive mais informações sobre a figura detestável do Fleury, me convenci que era importante trocar", conta a nutricionista.

Em 1982, o então prefeito paulistano Salim Curiati decretou que a rua da Passagem B passaria a se chamar "Dr. Sérgio Fleury", em referência ao delegado que morrera três anos antes em um afogamento em Ilhabela que nunca foi esclarecido porque não houve necropsia — uns falam em acidente, outros em "queima de arquivo".

Meu bloco na rua

Em 2013, oito vereadores de esquerda, entre eles Orlando Silva (PCdoB) e Arselino Tatto (PT), apresentaram o projeto de lei para a troca do nome. A proposta inicial previa que uma maioria simples dos moradores devia aprovar a mudança.

Após campanha de esclarecimento por parte de assessores parlamentares e de grupos de Direitos Humanos, foi feita uma votação em 2014. Dos 30 votos (uma casa estava vazia e seu proprietário não foi localizado), 12 foram a favor da mudança, e 18, contra.

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Via sem saída na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, trocou nome de torturador Sérgio Fleury pelo do torturado Frei Tito
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Não adiantou explicar que Fleury era um dos comandantes dos esquadrões da morte que atuava na periferia paulistana nos anos 1960 e que, com o guinada autoritária, passou a perseguir, torturar e matar opositores ao regime com o mesmo método. Nem que Frei Tito foi preso por participar do congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes) em Ibiúna em 1968, torturado e depois exilado na França, onde cometeu suicídio pelo abalo psicológico após violentas sessões de interrogatório que a equipe de Fleury aplicava.

Na época, o então prefeito paulistano Fernando Haddad (PT) levou à frente o projeto "Ruas da Memória", que visava rebatizar logradouros em homenagem a personagens da ditadura. A troca mais simbólica foi o Elevado Costa e Silva, presidente que decretou o AI-5, por Elevado Presidente João Goulart, mandatário democraticamente eleito e deposto em 1964. Apesar da mudança, a maioria das pessoas conhece mesmo o lugar por seu nome popular: Minhocão.

Vias tortuosas

"Foi um doutor que assassinaram", responde prontamente o estudante de programação Jeferson Félix, 24, quando perguntado se sabe quem foi a pessoa por trás do nome da rua em que mora. "Fico muitas horas no computador e adoro pesquisar curiosidades no Google", conta atrás das grades do portão e ladeado por dois cachorros que não param de latir naquele cantinho suburbano do Rio Pequeno.

Octávio Gonçalves Moreira Júnior foi delegado do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), fundador do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), acusado de torturar e matar opositores. Ele acabou morrendo em 1973, alvejado por guerrilheiros. "É verdade: teve tudo isso. É que pesquisei faz mais de dez anos, quando mudei pra cá. Tem coisa que não lembrava mais", se justifica Félix, diante dos detalhes históricos.

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O motorista José Augusto Serafim diz não se importar de morar na rua Henning Boilensen, empresário que participou em sessões de tortura
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Perto dali, no vizinho bairro do Jaguaré, uma casa ostenta na fachada de pastilhas a placa "Rua Henning Boilensen" e logo embaixo uma plaquinha de esclarecimento "administrador de empresas 1916-1971". O executivo dinamarquês presidiu o grupo Ultragaz e, além de financiar a repressão estatal, acabou reconhecido por vítimas participando, sadicamente, de sessões de tortura. Foi executado por guerrilheiros em abril de 1971 na alameda Casa Branca, região dos Jardins. Sua história foi contada pelo documentário "Cidadão Boilensen", do diretor Chaim Litewski.

"Deve ser um alemão", chuta o aposentado galego Agustín Cavadas, 92, e morador dali há quatro décadas. Vizinho, o motorista pernambucano José Augusto Serafim, 50, escuta a conversa e quer opinar. "Não me incomoda esse nome. Pra mim, é normal. Não acho certo julgar o passado pelo presente", argumenta.

Já no Jardim Japão (zona norte paulistana), a praça General Milton Tavares de Souza, militar que presidiu o órgão de repressão DOI-CODI, ganhou um nome mais apropriado a seu cenário ao ser rebatizada com o nome de Paulo Sella Neto, skatista que frequentava o local e morreu em um acidente.

Normalização ou revisão?

O debate sobre homenagens em via pública para personagens sangrentos da história reacendeu em 2020, na esteira dos protestos antirracistas motivados pelo assassinato de George Floyd nos EUA. No Brasil, um reflexo disso foi o incêndio do monumento ao bandeirante Borba Gato, na região de Santo Amaro (zona sul de São Paulo).

A localização de ruas que homenageiam torturadores e assassinos e o debate para mudar esses nomes ajudam a compreender o processo histórico. Por isso, são interessantes iniciativas como o site colaborativo Ditamapa, que aponta como figuras centrais do autoritarismo estão na paisagem do país.

Castelo Branco, primeiro presidente do regime militar, batiza 56 logradouros em 18 Estados do Brasil. Considerado o mais repressor do período, Emílio Médici tem homenagem em 33 lugares, incluindo a cidade de Medicilândia, no Pará.

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Rua de Taboão da Serra (SP) homenageia figura que serviu a duas ditaduras no Brasil, Filinto Muller
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Figura central de duas ditaduras, Filinto Muller dá nome a 17 lugares no Brasil. "Quando fui procurar o CEP daqui descobri que tinha várias ruas pelo Brasil com o mesmo nome. Só não sabia que esse cara tinha sapecado tanta gente", conta o tatuador Anderson Almeida, que montou há seis anos seu estúdio na rua Filinto Muller, em Taboão da Serra (SP).

Muller comandou a polícia política do Estado Novo, responsável por torturar e matar opositores a Getúlio Vargas — incluindo a deportação de Olga Benário, mulher do líder comunista Luís Carlos Prestes, para os campos de concentração da Alemanha nazista. Depois, ele foi senador e líder da Arena, partido de sustentação da ditadura militar.

Guerra de nomenclatura

Um estudo da ONG Transparência Brasil aponta que 90% das propostas na Câmara Municipal de São Paulo são de homenagens, incluindo o batismo de passarelas, vielas e pracinhas.

A primeira dessas proposições na cidade aconteceu em 1831 e foi rejeitada, mas com o passar dos anos os vereadores foram ficando cada vez mais com essa incumbência, manejando isso para agradar seu grupo político, seu curral eleitoral ou os seguidores da mesma linha ideológica.

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Em São Paulo, Rua Dr. Sérgio Fleury, delegado do Dops e acusado de praticar torturas nos anos 1960 e 1970, passa a se chamar Rua Frei Tito, frade dominicano preso e torturado
Imagem: Reprodução

Apesar das reclamações de quem é contra a mudança de nome, uma averbação de escritura do imóvel sai por volta de R$ 30. E os sistemas de GPS e mapas digitais atualizam os nomes rapidamente, criando transtorno com correspondência e entregas só nos primeiros dias.

Em São Carlos, interior de São Paulo, uma rua chamada Sérgio Fleury foi renomeada em 2009 como Dom Hélder Câmara, bispo defensor dos Direitos Humanos durante a ditadura. A rua era perto do campus da universidade federal UFSCar e tinha duas repúblicas de estudantes nos seus 200 metros de extensão. A mudança se deu sem tanta polêmica quanto sua versão paulistana (aprovada em 25 de agosto último).