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'Não é bode, é elfo': desfile de fantasias mistura Brasil e Egito no Rio

O carnavalesco Milton Cunha, ao lado da cantora Teresa Cristina, Rainha do desfile de fantasias de luxo, no Rio - Ricardo Borges/UOL
O carnavalesco Milton Cunha, ao lado da cantora Teresa Cristina, Rainha do desfile de fantasias de luxo, no Rio
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Valmir Moratelli

Colaboração para o TAB, do Rio

03/03/2022 04h01

Uma fila de vans e kombis cerca os fundos do palco principal da Cidade do Samba, no centro do Rio. Um grande camarim improvisado é o QG do desfile de fantasias de luxo promovido por Milton Cunha, ex-carnavalesco e comentarista da TV Globo.

Às 19h de terça-feira (1), um dos primeiros a ficar pronto é o comissário de bordo Santana Honfstter, com sua fantasia "Amon-Rá, o obscuro do universo egípcio". Não é das fantasias mais caras da noite — custou R$ 18 mi, isso porque utilizou penas recicladas. "O que encarece são os faisões, fiz algo mais em conta dessa vez", diz.

Os carnavalescos sabem os temas que mais rendem para fantasias. "Coloque um Egito faraônico ou uma Amazônia rica em flora e fauna que é garantia de sucesso", prossegue ele, destaque da Beija-Flor de Nilópolis há mais de duas décadas.

O cabeleireiro Marcelo Moreno, há 23 anos como destaque da Vila Isabel, montou-se de "Índio Nhamandu". "Eu é quem faço tudo, penso em cada detalhe, até na maquiagem", diz, com sua fantasia "em tons de verde amazônico" de R$ 60 mil. Ele veio de Campos dos Goytacazes, norte fluminense. Enfrentou quatro horas de estrada para uma apresentação de menos de dois minutos. Foi ovacionado. "Isso não tem preço. Amo demais!", diz, já de volta à coxia.

Para ser um destaque de luxo, além do investimento financeiro, o folião não pode ter alergia a penas e querer sambar. Muitos não conseguem nem levantar os braços. Também é importante que não tenha medo de altura, já que a maioria desfila no alto de alegorias.

O comissário de bordo Santana Honfstter, com o tema "Amon-Rá", na competição de fantasias de luxo no Rio - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
O comissário de bordo Santana Honfstter, durante competição de fantasias de luxo
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Procura-se o pai de Xangô

Os bastidores são tensos, assim como em uma concentração de escola de samba. As pessoas não sabem direito onde se posicionar, se vai dar tempo de ajeitar os últimos detalhes, se o público vai aplaudir de verdade. "Aqui todo mundo se conhece, não há rivalidade", diz Edmilson Paracambi, que demorou oito meses para criar "Balangandãs e Joias de Crioulos". Toda em strass e pedrarias, a vestimenta lhe custou R$ 100 mil.

Milton Cunha está no palco. Apresenta outras atrações antes do desfile. Coroa a cantora Teresa Cristina e o carnavalesco Paulo Barros como reis da noite. Entre um samba e outro, puxado pela bateria da Salgueiro, Milton surge no camarim, aos gritos. "Não quero atrasos, não me enlouqueçam. Deixem a cerveja pra depois!", berra.

Ainda assim, há atrasos. Milton começa a chamar os destaques. Em certo momento, um deles não aparece. Deixa o palco e vai lá atrás, de microfone em punho, saber onde está o "Pai de Xangô". O médico João Elder está chateado, não passa pela rampa de acesso ao palco. Precisa retirar apetrechos, como a saia com rodinhas que ajuda a locomoção. No fim, "Pai de Xangô" ganha a passarela. "Soberbo", elogia Milton.

João Elder, vestido de 'pai de Xangô', no desfile de fantasias de luxo, realizado na terça-feira (1) na Cidade do Samba, no Rio - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
João Elder desfila vestido de 'pai de Xangô'. Fantasias brancas são mais raras porque usam penas 'virgens', não tingidas para virarem outra fantasia
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Decoração de casa

Elton Oliveira trouxe a fantasia "Nobreza Cigana", com quatro metros de altura. É a mais cara do evento, avaliada em R$ 150 mil. "Seria ainda mais cara se eu não tivesse reciclado material de anos anteriores", diz ele, orgulhoso de suas penas de faisão. Uma fantasia chega a ter três mil penas. "Hoje é inviável para quem não tem o que reciclar."

Durante o ano, ele trabalha como bancário. Em casa, o cômodo maior é destinado a guardar suas fantasias. "Servem de decoração, não tem como não as exibir", diz. Para o evento, precisou contratar quatro assistentes para lhe dar apoio e alugar uma van para o transporte.

Cada destaque tem seu próprio staff. São eles que mantêm as penas intactas, além de lhes auxiliar a colocar os adereços. Depois de vestidos, os destaques parecem "alegorias humanas". Por isso, tem sempre alguém ali por perto oferecendo água na boca, por exemplo. Na noite do evento, os termômetros marcavam mais de 30°C. "Você não tem ideia do calor que faz aqui dentro, tem que ser tudo muito vagaroso", diz Amaro Sérgio, o "Guardião das Profundezas", em vinte quilos de armadura brilhosa.

Elton Oliveira, dono da fantasia mais cara da noite, durante desfile - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Elton Oliveira, dono da fantasia mais cara da noite, durante desfile
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Passado de glória

Até meados da década de 1970, os concursos de fantasias de luxo do carnaval carioca eram atração à parte, com destaque para o Baile de Gala do Theatro Municipal, inspirado no de Veneza. O evento reunia a elite do Rio de Janeiro e estrelas internacionais, como Edith Piaf, Kirk Douglas, Rock Hudson e Charles Aznavour, entre outros. O ponto alto era o concurso que elegia as melhores fantasias do ano.

A competição se iniciou em 1932, com organização da extinta revista O Cruzeiro. A expectativa era tanta que centenas de foliões acompanhavam a chegada dos convidados do lado de fora do Municipal. O traje black-tie em pleno verão carioca era exigência seguida à risca. Foi assim até o carnaval de 1975, último baile no Municipal.

A partir daí entra em cena o concurso do Hotel Glória, ícone arquitetônico debruçado na quina do Aterro do Flamengo. Hoje o hotel é um esqueleto de andaimes à espera de ressurreição, desde que foi comprado pelo empresário Eike Batista com a promessa de se tornar um hotel seis estrelas, nas Olimpíadas de 2016. No Glória, o evento se tornou midiático, com transmissão ao vivo pela TV Manchete. "Esperava acordado para assistir pela TV. Que bom que Milton trouxe de volta essa tradição que já tinha morrido no carnaval carioca. É a ressurreição da alegria", afirma o carnavalesco Paulo Barros.

Detalhe dos preparativos para o desfile de fantasias de luxo promovido por Milton Cunha no Rio - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Imagem: Ricardo Borges/UOL
Participantes na 'montação' para o desfile de fantasias organizado por Milton Cunha, no Rio - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Imagem: Ricardo Borges/UOL
Dissantine Santos se prepara antes de desfilar com sua fantasia de luxo - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Dissantine Santos recebe ajuda para vestir a fantasia
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Um Rio sofisticado

O nome mais emblemático desses tempos áureos era o museólogo Clóvis Bornay. Foi o maior vencedor das edições, ostentando fantasias com nomes escalafobéticos - como a "Plenitude da harmonia universal", de 1970. Suas roupas eram ricas em pedras semipreciosas, lantejoulas e bordados. É lembrado pelos veteranos como um ícone.

Sua fama era tanta que foi convidado para ser jurado dos programas de Chacrinha e Silvio Santos e atuou como ator em "Terra em transe" (1967), de Glauber Rocha, e "Independência ou morte" (1972), de Carlos Coimbra, no auge do Cinema Novo. Elton Oliveira, frequentador de antigos concursos de fantasias de luxo, foi amigo de Bornay. "Aquilo sim foi viver um passado de glória. Era um Rio sofisticado até quando se falava de Carnaval. Todo mundo queria acompanhar o que ele exibia na passarela."

As fantasias de Bornay foram parar no lugar mais alto das alegorias, inaugurando a figura de destaque das escolas de samba. Hoje, todo carro alegórico tem um destaque para chamar de seu.

Vera Benévolo, 69, acompanhava a filha Nana, 45, que veste sua criação, "ChicaChicaBoom". "Bornay é inspiração. Mas hoje não está mais na moda usar faisão, pavão e ema. Opto por penas sintéticas, mais ecológicas."

O fisioterapeuta Alek Belmont, vestido de 'Elfo Encantado' para o desfile de fantasias de luxo na Cidade do Samba, na terça-feira (1) - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
O fisioterapeuta Alek Belmont, vestido de 'Elfo Encantado'
Imagem: Ricardo Borges/UOL

'Não é bode, é elfo'

Na categoria originalidade, a borboleta da drag Fabiany Carraro, 23, chega a seis metros de extensão quando abre as asas. O maquiador é fã do evento desde criança. "Via pela TV. Era um requinte que me conquistou, eu queria estar ali de alguma forma. A gente faz isso por amor ao Carnaval." Amor, aliás, é o sentimento que todos citam ao explicar a dinheirama numa só fantasia.

O fisioterapeuta Alek Belmont, 47, logo corrige quem confunde a representação de sua fantasia. "Não é bode, é um Elfo Encantado!", diz ele. A veste foi toda feita com cadarços de tênis, ao custo de módicos R$ 1.000. Lentes de contato verdes compõem o visual do ser mitológico do norte europeu. "Trabalho com materiais acessíveis para mostrar que é possível se destacar sem gastar um carro por Carnaval", diz Belmont.

Mais de mil pessoas acompanharam o desfile. Dam Menezes, especialista em Carnaval, é um entusiasta do evento nesse formato mais, digamos, low profile. "É um ato de resistência perante uma sociedade em constantes crises. É o resgate ao respeito a quem faz a engrenagem da folia acontecer, os operários. E quem é essa galera? Os periféricos: pretos, travestis, trans, mulheres, gays."

Paulo Barros (rei) e Teresa Cristina (rainha) da competição de fantasias de luxo no Rio - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Paulo Barros e Teresa Cristina, rei e rainha da competição de fantasias de luxo no Rio
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Nessa edição de retomada do concurso de fantasias, Milton preferiu não escolher um vencedor. Após a interrupção do Carnaval devido à pandemia, estar de volta aos holofotes já é um prêmio coletivo. O próximo encontro é no desfile das escolas de samba, remarcado para a Semana Santa, em abril. Esse sim com direito a título.