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Jazigos furtados e ossadas expostas mostram abandono no Cemitério do Araçá

Caixão de madeira nobre é deixado à mostra no Cemitério do Araçá, em São Paulo - Marie Declercq/UOL
Caixão de madeira nobre é deixado à mostra no Cemitério do Araçá, em São Paulo
Imagem: Marie Declercq/UOL

Marie Declercq

Do TAB, em São Paulo

22/04/2022 04h01

Basta uma curta caminhada pelas ruas do Cemitério do Araçá, localizado na região central da capital de São Paulo, para notar o estado avançado de abandono. Excetuando a presença dos sepultadores e funcionários durante o expediente, um dos cemitérios mais antigos da capital abriga incontáveis túmulos sem nome. Sem nome pois os furtos das placas de identificação e das fotografias se acumularam ao longo dos anos. Atualmente, é raro encontrar um túmulo com mais de 30 anos de existência que esteja intacto.

Junto com as placas de identificação, se foram também os portões e algumas portas dos mausoléus. O motivo é que, antigamente, grande parte das placas, grades e artes tumulares eram feitas de bronze, arrancadas para converter o peso do material em dinheiro. Esses delitos se tornaram algo tão comum, quase cultural, que algumas famílias colocaram avisos e apelos pedindo para que ladrões de cemitérios poupem os jazigos.

Os furtos, no entanto, são apenas a camada superficial de um problema mais grave nos cemitérios municipais de São Paulo. Fora os furtos visíveis, também é fácil encontrar ossadas aparentes em algumas das ruas estreitas do local. A suspeita é que os túmulos sejam violados em busca de dentes de ouro e outros itens de valor.

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Por causa do volume alto de furtos de placas e estátuas de bronze no Cemitério do Araçá, família deixou um aviso para ladrões
Imagem: Marie Declercq/UOL
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Aviso fixado no portão de um jazigo no Cemitério do Araçá pedindo para que não seja alvo de furtos
Imagem: Marie Declercq/UOL

Não tem paz nem depois da morte

As ossadas aparentes não são novidade para quem já conhece o dia a dia dos cemitérios paulistanos, mas a quantidade aumentou nos últimos meses. Foi a observação feita por Nani Rezende, 43, publicitária e idealizadora do Necrotur, um perfil no Instagram, YouTube e TikTok voltado a passeios e informações históricas sobre cemitérios nacionais e de outros países.

Em fevereiro de 2022, um fotógrafo que fazia o passeio promovido pela publicitária encontrou e registrou dois jazigos violados na "parte alta" do Araçá, área onde se concentra grande parte dos jazigos de famílias abastadas e de personalidades políticas e artísticas.

"Percebi que está cada vez pior a questão do descuido em geral", avalia Athos Lisboa, 24, que registrou o estado de abandono do cemitério e costuma frequentar o cemitério para registrar artes tumulares. "O Araçá é o que mais visito e vejo que está cada vez mais degradado. Notei a mesma coisa na Necrópole de São Paulo. Já o Cemitério da Consolação é mais seguro e preservado."

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Caixão quebrado no Cemitério do Araçá
Imagem: Marie Declercq/UOL

TAB foi ao Araçá na companhia de Rezende após a publicitária publicar fotos dos jazigos violados na página do Necrotur. Fora as ossadas indicadas por Rezende, logo foram encontrados mais três túmulos quebrados com ossadas expostas. Os que estão abertos por mais tempo ficam mais expostos e é possível observar que as ossadas foram reviradas — a mandíbula fora separada do crânio e jogada no caixão.

Há um padrão: os túmulos escolhidos são bonitos, datam quase sempre de mais de 40 anos desde o último sepultamento e são quebrados nas duas pontas. "Provavelmente, o ladrão quebrou primeiro o lado dos pés e depois partiu para a outra ponta onde está o crânio", explicou Rezende, apontando para um buraco onde se vê um caixão de madeira nobre com detalhes minuciosos.

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Jazigo no Cemitério do Araçá foi quebrado por ladrões em busca de objetos de valor
Imagem: Marie Declercq/UOL

Em contato por meio de assessoria, o Serviço Funerário do Município de São Paulo explicou que o procedimento para casos de ossadas expostas ou furtos é acionar a família responsável, orientá-la para que seja feito um registro do Boletim de Ocorrência e providenciado o reparo provisório no local. No caso de furtos e roubos, explicou o órgão, a responsabilidade é da família de substituir por itens sem valor.

"Quando constatado o abandono, os familiares são notificados por carta e por meio de chamamento público, o terreno é interditado e o processo de retomada é realizado em até 1 ano, conforme o Decreto 59.196 de 2020", afirmou o órgão, por e-mail.

A segurança do local, ainda segundo o Serviço Funerário, foi reforçada a partir de janeiro de 2022. "(...) O SFMSP celebrou contrato com uma empresa especializada em vigilância patrimonial, a fim de coibir e impedir a incidência de furtos e vandalismo nas unidades cemiteriais. No período noturno, a fiscalização é realizada com rondas motorizadas e botons eletrônicos, que captam e registram a circulação do segurança, distribuídos em toda a necrópole."

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Sepulturas são abertas em busca de dentes de ouro e outros itens de valor
Imagem: Marie Declercq/UOL

Condições precárias de trabalho

A deterioração dos cemitérios municipais da capital já é pauta entre estudiosos de arte tumular, história e patrimônio, mas parece não chamar atenção do poder público. Quem acompanha de perto a rotina cemiterial afirma que a segurança, os furtos e as ossadas expostas são consequência de anos de falta de investimentos.

"O último concurso público foi em 2012, quando foram contratados sepultadores e motoristas", relembra João Batista Gomes, secretário de imprensa do Sindsep (Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo) e representante dos sepultadores concursados desde os anos 1990. "Muitos saíram do serviço por causa de morte ou de aposentadoria, mas o poder público só contratou em regime terceirizado."

A segurança, de acordo com Gomes, também não dá conta. "Ano passado, o SFMSP contratou uma empresa terceirizada para fazer a segurança, mas é uma segurança motorizada que passa de moto e está mais presente nos cemitérios mais centrais como Araçá, Consolação, Vila Alpina e Quarta Parada. Na periferia, nem mandam."

Para o representante, as condições precárias de trabalho e o estado dos cemitérios refletem também uma "política clara de sucateamento do serviço funerário municipal" a fim de justificar o projeto de privatização que já está em sua quarta tentativa na capital.

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Placas de bronze com fotos e nomes são alvos comuns de furtos em cemitérios
Imagem: Marie Declercq/UOL

Sem contar com os 200 funcionários contratados por empresas terceirizadas, 177 sepultadores concursados estão na ativa para atender aos 22 cemitérios e crematórios municipais. Esse é um número que mal dá conta de atender locais como o Cemitério da Vila Formosa, que ocupa uma área de 763.175 m² e é considerado um dos maiores da América Latina.

No Araçá, cuja área total é de 222 mil m², o representante afirma que são cerca de 15 funcionários atendendo toda a extensão.

"Em casos como os das ossadas expostas, cabe à administração do cemitério colocar tudo de volta nos caixões, mas tem tão pouca mão de obra que esse tipo de serviço fica secundarizado", explica. "A prioridade sempre vai ser o sepultamento e, a cada enterro, o funcionário precisa entrar no túmulo, checar se há espaço nas gavetas para enterrar, quebrar as paredes de concreto e ainda fazer a exumação para entrar um novo."

Um dos cemitérios mais antigos da capital de SP sofre com furtos e abandono - Marie Declercq/UOL - Marie Declercq/UOL
Imagem: Marie Declercq/UOL

Memória viva

O Serviço Funerário afirmou que uma vistoria fora realizada na manhã do dia 18 de abril, após a reportagem pedir esclarecimentos e o serviço "identificar possíveis túmulos em estado de violação e providenciar os reparos necessários" no Araçá.

A importância do Cemitério do Araçá não está só relacionada ao luto das famílias que possuem jazigos no local, mas também é histórica e patrimonial. Fundado em 1887, foi construído para dar conta da superlotação do Cemitério da Consolação, aberto em 1858. É um dos cemitérios mais antigos da capital paulista e abriga dezenas de jazigos com artes tumulares feitas por artistas como Victor Brecheret, Rafael Galvez e Eugênio Prati, encomendadas por famílias abastadas e personalidades brasileiras.

Pelo valor histórico e oportunidade interdisciplinar de contar a história da cidade, Vanessa Bortulucce, historiadora de arte e professora nos cursos de jornalismo e relações públicas na Fundação Cásper Líbero, lamenta o abandono dos cemitérios municipais. O tratamento dado a esses locais também é uma forma de entender como a sociedade brasileira encara espaços públicos, e, principalmente, como carrega uma postura de negação e estereotipada em relação à morte.

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Nani Rezende é adepta do necroturismo e defende que cemitérios sejam preservados como locais de memória
Imagem: Marie Declercq/UOL

A historiadora, ao lado de Nani Rezende, faz parte de uma pequena comunidade em torno do necroturismo, área de interesse que vem ganhando tração nos últimos anos por causa das redes sociais. Por meio de passeios, o necroturismo defende uma mudança de abordagem em relação aos cemitérios. Em vez de serem vistos como locais de tristeza, ele defende que esses locais sejam preservados como espaços de memória, preservação do patrimônio histórico e até locais públicos para se frequentar.

"Existem vários motivos que justificam a preservação desses espaços. Patrimônio é uma palavra elástica que se estende por toda a malha da cidade. Não é só dentro do museu", explica Bortulucce.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Na versão anterior da reportagem, o Cemitério do Araçá foi referido como Necrópole do Santíssimo Sacramento. A informação foi corrigida.