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Augusta, rua 'vanguardista' de SP, vive dias de nostalgia e clima 'cringe'

Esquina da rua Augusta com a Matias Aires, na Consolação, no centro de São Paulo - Fernando Moraes/UOL
Esquina da rua Augusta com a Matias Aires, na Consolação, no centro de São Paulo Imagem: Fernando Moraes/UOL

Do TAB, em São Paulo

30/06/2022 04h01

Augusta é a rua de São Paulo sempre lembrada pelo público diverso, entre estudantes, engravatados e prostitutas. Era o itinerário manjado de muitos jovens: parar no metrô Consolação, encontrar os amigos na frente do banco Safra e descer a rua rumo ao Baixo Augusta, pingando em bares e baladas noite adentro, subindo de volta lá pelas 4h40, na hora de pegar o primeiro trem na estação que reabria, e assim ir embora para casa.

Tinha sexo, drogas e rock'n'roll (indie rock), cinema, fotografia, literatura e uma atmosfera alternativa que consagrou a rua "eclética", "democrática", "diversa".

O circuito cult e kitsch virou hipster, que virou o que virou: bares pé-sujo foram repaginados, agora cobram caro na cerveja, têm garçons abordando quem passa com oferta de "caipirinha double" — como se faz nos mercados turísticos —, e voz e violão tocando "Tempo Perdido", da Legião Urbana, e o repertório "cringe" de Jorge Vercillo e Djavan. "Não sei se é cringe, mas meu tio que escolhe a trilha sonora", diz uma garçonete de uns 20 anos. Antigas casas e inferninhos foram ao chão, dando lugar a altos condomínios, Burger King, SmarFit; outros tantos fecharam na pandemia.

Uma incorporadora arrematou o anexo do Espaço Itaú de Cinema e um restaurante mexicano, que serão demolidos para construir mais prédios na área em que o aluguel de uma quitinete dificilmente sai por menos de R$ 1.700. Uma antiga agência bancária virou um mercado arco-íris que diz diversidade para "#todxs", mas cerca a entrada para afastar mendigos que buscavam abrigo ali.

Rua Augusta - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Corrente para 'cercar' um mercado movimentado no Baixo Augusta, no centro de São Paulo
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Noites nostálgicas

Cruzando a avenida Paulista, para o lado dos Jardins, a rua Augusta abriga pontos como a galeria Ouro Fino e o Cinesesc (menos frequentado por jovens na noite da Virada Cultural do que a igreja evangélica vizinha), desdobrando-se mais para frente em rua Colômbia, avenida Europa e avenida Cidade Jardim.

Do outro lado, o Baixo Augusta, que contempla os bairros Bela Vista e Consolação, viveu um boom de bares, baladas, intervenções artísticas e políticas a partir da década de 2000. "Agora só estão preservados os últimos quarteirões lá de baixo", comentou Pedro Morelli, codiretor da série "Rua Augusta", à época da estreia da produção da O2 Filmes na TNT, em 2018. "É outra vibe."

Hoje num clima de "liberou geral", como se a pandemia de covid-19 tivesse chegado ao fim, a rua voltou à ativa e recentemente ali foram abertas duas casas, com pop e funk. Há bastante movimento nos bares, mas a vibe de fato é outra. Não tão jovens assim andam pelas quadras mais próximas à Paulista, onde há "brisadeiros" (brigadeiro de maconha) à venda nas esquinas. Há endereços que resistiram ao tempo, como as galerias Le Village e Ouro Velho; a lanchonete 24 horas BH, inaugurada em 1953; e o Frevo, aberto em 1967, agora gerenciado pelo neto do fundador.

Na frente do Espaço Itaú de Cinema, era praxe encontrar o pessoal vendendo a revista "Ocas", projeto da Organização Civil de Ação Social para gerar renda de desempregados na cidade. Agora, não mais — a vidraça instalada impede a abordagem dos vendedores a quem está no vaivém do cinema, tanto que não há mais movimento para justificar um ponto ali (que migrou para o Petra Belas Artes, na Consolação), conta um dos responsáveis pela revista.

Marcelo Giacomo, dono da Augusta Discos, na Rua Augusta - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Para Marcelo Di Giacomo, da Augusta Discos, os 'tempos áureos' da rua já passaram
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Mais para baixo da rua, resistiram lojas de lingerie e sapatos de salto alto, hotéis pequenos, dois karaokês e dois "night clubs", tal como se identificam nos letreiros. Também ficaram o Casarão e o "American bar" Balneário, onde hoje há uma plaquinha azul do Memória Paulistana, projeto da prefeitura que identifica pontos de referência para a história da cidade.

"Os tempos áureos da Augusta já passaram", diz Marcelo Di Giacomo, 58, da Augusta Discos, em uma noite de sábado de junho. "Trabalho com nostalgia e glamour, se é sobre isso que você quer conversar", acrescenta ele, morador da Consolação e há duas décadas no mercado musical vendendo vinis, LPs e CDs.

A nostalgia e o glamour citados por Marcelo, na verdade, antecedem o boom dos anos 2000. A Augusta dele é outra. "O auge da rua foi a época dos carros antigos, cinemas, casas de chá, do bar Blow-Up", exemplifica. "Sabe por que gosto tanto daqui? Porque eu peguei o fim da festa, ficou o gosto de 'quero mais'."

Rua Augusta - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Ponto onde será construído mais um condomínio residencial no Baixo Augusta, próximo à Peixoto Gomide
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Uma rua histórica

Foi por volta de 2013, durante as discussões sobre o parque Augusta, no encontro com as ruas da Consolação, Caio Prado e Marquês de Paranaguá, que a arquiteta e urbanista Gabriela Krantz Cesarino, 56, decidiu dedicar sua tese de doutorado, defendida dia 7 de junho na USP, à história da Augusta. "É uma rua interessante e considerada 'única', uma ideia que está mais na memória que no presente", pondera ela, uma das autoras do livro "Ruas Paulistanas" (Alameda Editorial, 2022).

"A Augusta vai continuar existindo na memória, mas vai continuar se transformando", diz Gabriela, que atualmente mora na Vila Madalena. "Vi a verticalização acontecer ao lado da minha casa. Todo mundo queria olhar pela janela e ver a vila, só que hoje você só vê prédio. Ela se transformou. É o que está acontecendo na Augusta."

Aberta no fim do século 19, a rua Augusta se desenvolveu a partir de uma trilha de terra, pouco a pouco pavimentada e compondo os bairros Bela Vista, Consolação, Cerqueira César e Jardim Paulista. "Entretanto, o desenvolvimento não foi linear; acompanhou as transformações das vizinhanças", destaca Gabriela. O lado Consolação abrigou fábrica, casas operárias, colégios, clubes, sobrados geminados e diversos armazéns.

Um deles era o armazém do José, na esquina com a rua Caio Prado. No empório se comprava manteiga, leite e feijão roxinho, "um pedaço de fumo de rolo e a palha para cigarros para meu avô Gido", lembra o consultor aposentado Miguel Chammas, 82.

Miguel cresceu no número 291 (a casinha virou um prédio), estudou no colégio Santa Mônica (onde hoje é o parque Augusta), foi atleta na Associação Física São Paulo (demolida para dar passagem ao Minhocão), namorou, noivou e se casou pela primeira vez na rua. "Tudo o que me lembra a Augusta me desperta saudade", conta ele, um memorialista que hoje mora em São Bernardo do Campo (SP). Diz que não tem mais pernas fortes para andar e, por isso, não visitou o novo parque, inaugurado em novembro de 2021.

O armazém virou o Ca'D'Oro, um dos primeiro cinco estrelas da cidade, na década de 1970. Até os anos 1990, o hotel viveu seu apogeu, recebendo políticos e personalidades. Fechou em 2009 e depois leiloou a maioria do acervo, do mobiliário a pratarias. As últimas peças (160 lotes de taças de cristal Hering, bules, leiteiras, cremeiras de prata da alemã Wolff e aquarelas) se foram em 2021.

Rua Augusta - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Casarão, ainda se preparando para abrir, e Balneário, 'American bar' com a plaquinha azul Memória Paulistana
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Que fim levou?

O modelo de prédios de uso misto, com comércio no térreo e moradias nos demais andares, prevaleceu na rua na década de 1950, o que foi crucial para marcar a dinâmica da Augusta. A via se tornou um ponto de lazer, com cinemas, butiques e bares.

Também inspirou revista (Rua Augusta Chic, de 1957), filmes (entre eles "O puritano da Rua Augusta", de Mazzaropi, de 1965) e canções ("Entrei na Rua Augusta a 120 por hora", cantada por Ronnie Cord e Erasmo Carlos, nos tempos da Jovem Guarda). Depois viriam "Augusta, Angélica e Consolação", de Tom Zé, e "Rua Augusta", de Emicida.

Na década de 1970, passou a concentrar cortiços e prostíbulos, e desvalorizou-se. A revitalização urbana ocorreu a partir dos anos 2000, conta Alê Youssef, ex-secretário de Cultura de São Paulo, no livro "Baixo Augusta" (Letramento, 2019) — um "pedaço urbano" que teria a alma "vanguardista paulistana", nas palavras do autor, dono do Studio SP, uma das casas de shows mais famosas na região, e fundador do bloco carnavalesco Acadêmicos do Baixo Augusta.

"A Augusta mudou para melhor", diz Bebel Martins, 48, dona da Lua Cheia Sexy Hot, sex shop aberta em maio de 2021. "Ficou mais viva. E as meninas continuam na área", conta ela, que tem como "clientes top" casais e garotas de programa no negócio que administra junto aos filhos. "Até hoje pego Uber, passo o endereço e às vezes vejo um olhar no retrovisor. Digo: 'Não sou garota de programa, não, viu? E, se fosse, não teria problema nenhum'. É uma profissão como outra qualquer."

Bebel Martins, dona da sex shop Lua Cheia, na Rua Augusta - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Para Bebel Martins, da sex shop Lua Cheia Sexy Hot, a rua 'mudou para melhor'
Imagem: Fernando Moraes/UOL

As transformações deram novo gás à arte e ao ativismo nos arredores, com festas independentes frequentadas por jovens moderninhos — uma das mais memoráveis, a Voodoohop, acontecia no Bar do Netão, um pequeno pé-sujo que invadia a calçada até o amanhecer.

O bar do número 822 fechou em 2013 e voltou num novo endereço mais arrumadinho em 2016, uma vibe diferente. Também fecharam baladas como Astronete, Inferno e Vegas. "Ironicamente foi o sucesso do clube e, por consequência, da rua Augusta, que acabou por vitimar o Vegas: o galpão onde o mesmo se encontra recebeu uma proposta de compra milionária para ali ser montado um empreendimento imobiliário", dizia a nota oficial de Facundo Guerra, em 2012.

"Prédios e mais prédios subiram pelas ruas do Baixo Augusta e mesmo os negócios que não estavam arriscados a serem demolidos pelas incorporadoras tiveram seus aluguéis reajustados, com preços que dificultaram demais a vida dos empreendedores da cultura alternativa", assinalou Youssef no livro. "Entretanto, é notável como o bairro resiste", acrescentou, com esperança.

De fato, a rua mudou, gentrificou, o hype passou para os lados de Santa Cecília e Barra Funda, e para muitos restou a ressaca de uma festa que durou mais de uma década. Mas, como diz o memorialista, é a vida, ela sempre augusta.