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'Onda cigana' toma TikTok com biscoitagem e brigas sobre quem é 'autêntico'

Famosa no TikTok, Juliana Lopes mora num acampamento em Matozinhos (MG), próximo a Belo Horizonte - Julia Lanari/UOL
Famosa no TikTok, Juliana Lopes mora num acampamento em Matozinhos (MG), próximo a Belo Horizonte
Imagem: Julia Lanari/UOL

Claudia Castelo Branco

Colaboração para o TAB, de São Paulo

15/01/2023 04h00

Festas, cores, ostentação, mistério e ironia. "Para di pagar de cigana porque você não tem nem 1% doque nois ciganas temos [sic]", ironiza uma jovem enquanto movimenta o cabelo num vídeo. "Cê tem cara de metida", brinca outra cigana fazendo carão, exibindo na sequência momentos de uma vida normal tomando um cafezinho e esfregando roupa num balde.

Bastante popular, mas sobretudo estereotipada e desconhecida, a cultura cigana no TikTok vai além de "Vou Te Amar (Cigana)", hit de Luan Santana que acompanha milhares de vídeos. Uma busca simples no app entrega centenas de perfis e milhões de seguidores.

Tem de tudo: homens e mulheres em vídeos curtos com milhões de visualizações exibem visuais apurados, roupas coloridas, com uso de muito filtro e hashtags que fazem menção à cultura (#modaocigano, #ciganada). Falsas ciganas pagam de misteriosas euquanto dançam de sertanejo a funk. Outra faz previsões. E uma disputa velada opõe filhas de ciganos e "ciganas garrim" (não-ciganas casadas com ciganos). Apesar de os ciganos-raiz quererem pureza e isolamento, virou uma estética e um jeito de estar no mundo.

'Cigana de coração'

Juliana Lopes, 23, é garrim. Uma das suas motivações no TikTok é lutar contra o preconceito que o filho, de cinco anos, possa sofrer no futuro. De regra, a mulher cigana se casa cedo e os casamentos são acertados entre as famílias. Não foi assim com ela.

Em agosto de 2021, Juliana surpreendeu-se quando publicou um vídeo com imagens da sua barraca, num acampamento de Matozinhos (MG), explodiu em visualizações — até hoje, ele tem mais de 650 mil likes.

"Muita gente pergunta se eu não tenho medo porque minha casa não tem porta", narrava. No lugar de paredes dividindo os espaços, cortinas verdes. Na cozinha, panelas coloridas e areadas. Tudo aberto e sustentado por troncos de eucaliptos sob lonas. Nos comentários há elogios, ataques preconceituosos e muitas perguntas.

"Povo quer saber como conseguimos as coisas, sobre trabalho, como é a vida e principalmente sobre casamento cigano", conta ela, exibindo seus longos cabelos negros e uma borboleta dourada no pescoço. Tudo ouro, garante a cigana que não é de sangue, mas "de coração".

Entrada da casa de Juliana Lopes, num acampamento cigano de Matozinhos (MG) - Julia Lanari/UOL - Julia Lanari/UOL
Entrada da casa de Juliana Lopes
Imagem: Julia Lanari/UOL

Casada com um cigano há cinco anos, idade do filho, não se casou virgem como manda a cartilha. "As coisas mudaram, mas muitas pessoas dentro da cultura não aceitam ainda", afirma, sobre o preconceito que enfrenta fora do TikTok. No aplicativo, viu uma oportunidade para defender a cultura da qual faz parte e ama. "Como existe o preconceito de que cigano não gosta de trabalhar, não surgem tantas oportunidades. Mas tem cigano médico, cantor?", explica a autônoma que trabalha com vendas de enxoval.

Para chegar até o acampamento de Juliana, é preciso disposição e tempo. Uma corrida de carro, partindo do centro de Belo Horizonte, leva cerca de uma hora. Quando começa a estrada de chão, a lama toma conta. Tímida, não fica à vontade com a presença da reportagem. "Muita gente olhando."

Famosa no TikTok, Juliana Lopes mora num acampamento em Matozinhos (MG), próximo a Belo Horizonte - Julia Lanari/UOL - Julia Lanari/UOL
Imagem: Julia Lanari/UOL

Ela e sua família moram num acampamento formado por cinco terrenos — "dois são do Reginaldo, um do Careca, um do Cláudio e um do Carlito" (sogro de Juliana). É difícil entender. Em suma: são vários acampamentos que abrigam vários terrenos e suas propriedades que podem ser barracas, casas ou ranchos. Ali vivem aproximadamente 100 pessoas. GPS não pega, e internet, só em alguns pontos.

Com 190 mil seguidores, Juliana não tem o mesmo espaço no Instagram. Sua explicação para isso são "os famosos fãs incubados" — aqueles que falam que não gostam de ciganos e não seguem os perfis, mas não perdem um vídeo. Pelos comentários, acredita que já mudou a perspectiva de muita gente que tinha a imagem de que cigano é tudo ladrão, truqueiro e desocupado.

Acampamento cigano em Matozinhos (MG), próximo a Belo Horizonte - Julia Lanari/UOL - Julia Lanari/UOL
Acampamento cigano em Matozinhos (MG)
Imagem: Julia Lanari/UOL

'Já faz 28 anos'

Ciganas bombando no TikTok nem eram nascidas quando a novela "Explode Coração", de Gloria Perez, estreou na TV Globo em 1995. Os conflitos vividos por Dara (Tereza Seiblitz), cigana prometida para Igor (Ricardo Macchi) que se apaixona pelo empresário Júlio Falcão (Edson Celulari) através de um chat na internet, já estavam na televisão aberta quando rede social nem sequer existia.
O universo cigano se encontra sempre nesse contexto curioso de interação entre o passado com o novo.

"Que havia um boom no TikTok não sabia. Tenho muito interesse pela cultura cigana e sigo os perfis quando os encontro", disse Gloria Perez à reportagem. Um dos perfis acompanhados pela autora é o de uma moça que se casou com um cigano e usa as redes sociais para contar sua adaptação ao universo do marido. É uma história que lembra a de Juliana e, possivelmente, a de muitas outras mulheres.

Misteriosa e atarefada

Juliana foi a única cigana, entre as cinco procuradas, que topou e compareceu à conversa com o TAB. Beirando um milhão de seguidores no TikTok, Jade Kalin, 18, topou conversar, mas deu perdido na repórter diversas vezes. Primeiro porque estava a caminho de uma delegacia para prestar queixa de preconceito. Depois porque estava muito assoberbada. "Vida de cigano é assim", justificou-se, após a reportagem esperar duas horas pelo contato.

Na terceira tentativa, negou que não estivesse disposta a conversar, mas foi lacônica e respondeu por WhatsApp. "Sim, sou cigana de sangue. Na verdade, nem existe outra maneira de ser tornar cigana a não ser nascendo assim."

Algumas pessoas consultadas perguntaram quanto seria pago pela entrevista. É possível que Jade, assim como boa parte do público, não entenda a diferença entre jornalismo e publicidade. Seus vídeos, mais focados em moda e gravados no interior baiano, vez ou outra aparecem como presentes de confecções. Ela também faz sátiras para rebater preconceitos comuns contra os ciganos. No Instagram, seus números são bem abaixo do TikTok. "Ajuda aí, pessoal, eu crescer na outra rede", clama num vídeo.

A propósito, Juliana fala em "cultura" enquanto Jade fala em "etnia" — ponto levantado por outros perfis no TikTok. Mas é tudo fogo amigo e a conclusão é nenhuma. Nem todos são nômades. Nem todos são cristãos. Nem todos usam roupas coloridas. Nem todos são ricos. Nem todos são pobres. Nem todos leem mãos. Nem todos dançam ao redor de fogueiras. Mas, adotado como estilo de vida ou carregado na origem, o "ciganismo" está sendo filmado, com um bocado de ostentação.